Gabriela terminou o último gole de café e se levantou para colocar a xícara na pia, quando Fiorella se endireitou na cadeira com um brilho determinado nos olhos.
— Me espera um minutinho, cara mia. Vou me arrumar. As velhas da vila têm língua afiada demais pra eu sair assim.
Antes que Gabriela pudesse responder, Fiorella já estava de pé, desaparecendo pelo corredor com passos apressados e decididos. Não demorou nem dez minutos, mas o suficiente para voltar transformada. Usava um vestido midi floral ajustado na cintura, brinco de argola dourado, batom vermelho impecável e um óculos escuro grande que dava um ar de diva do cinema italiano.
— Pronta. Que venham as línguas afiadas.
Gabriela sorriu, impressionada.
— Se isso é se arrumar rapidinho, fico com medo do que é se preparar pra um casamento.
Fiorella apenas deu de ombros com um sorrisinho satisfeito.
— Mulheres italianas não perdem guerras... nem fofocas.
Passando pela sala, Fiorella se virou para os filhos, que estavam entretidos com um joguinho de cartas na mesa.
— Matteo, Leonardo, comportem-se. Nada de brigar, nada de destruir a casa e às onze quero o Matteo fazendo as tarefas da escola. E não, não aceito desculpas. Leonardo, confio em você pra isso.
Leonardo ergueu os olhos e assentiu com um leve movimento de cabeça. Matteo apenas bufou, mas não disse nada.
Com isso, Fiorella puxou seu carrinho de feira de rodinhas colorido, que fazia um leve chiado conforme deslizava, e saíram juntas pela porta. O sol da manhã dourava a vila com uma luz suave, aquecendo os muros de pedra e as floreiras já repletas de gérberas, lavandas e manjericãos. As ruas estreitas de paralelepípedos tinham cheiro de pão fresco e terra molhada. Cães sonolentos dormiam sob a sombra de varandas, e bicicletas encostadas em postes pareciam parte da paisagem.
A cada esquina, uma nova figura surgia. Um senhor de boina e bigode acenou para Fiorella:
— Buongiorno, bella! Faz tempo que não te vejo na feira.
— Estava guardando a beleza pra hoje, Luigi. Apresento minha nova hóspede, Gabriela, do Brasil.
Luigi tirou a boina num gesto respeitoso e sorriu para Gabriela.
— Encantado. Bem-vinda à vila.
Gabriela agradeceu, tentando não se perder nos detalhes ao redor. Algumas janelas se abriram de leve conforme passavam, e as cortinas se mexiam num movimento sutil demais pra ser o vento.
Na pracinha central, três senhoras estavam sentadas em um banco, cada uma com um terço nas mãos e olhos atentos.
— Olha só quem resolveu desfilar hoje... Fiorella. — disse uma delas, com um sorriso enviesado.
— E com companhia! — sussurrou outra, inclinando o corpo para frente.
Fiorella não se intimidou. Endireitou a postura, tirou os óculos escuros como quem está em um tapete vermelho e sorriu com todos os dentes.
— Bom dia, senhoras! Espero que a vista esteja boa. Porque o café da manhã de vocês hoje vai ser movimentado.
Gabriela mal conteve o riso, e as três senhoras apenas se entreolharam, fingindo rezar com mais fervor.
Continuaram pela rua, passando por uma vendinha com frutas frescas na calçada, e logo chegaram à feira. O som era de conversas animadas, vendedores anunciando seus produtos, risadas e o tilintar de moedas. Fiorella cumprimentava a todos como se fosse a prefeita da vila, recebendo sorrisos e tapinhas nas costas.
Gabriela sentia que havia entrado em um mundo que parecia tirado de um filme antigo, mas com a energia e cores de algo muito vivo. Ali, cada gesto parecia ter uma história, cada olhar carregava memórias e segredos.
E ela, de algum jeito, fazia parte da cena agora.
A barraca da peixaria exalava o cheiro salgado do mar misturado com o das ervas frescas que enfeitavam alguns cestos ao lado. Fiorella analisava os peixes com olhos experientes, quando uma voz animada ecoou por trás das outras freguesas:
— Fiorellaaa! Ma guarda chi è viva!
Fiorella ergueu o rosto com um sorriso instantâneo.
— Carlotta, sua danada! — exclamou, abrindo os braços como quem reencontra uma irmã de sangue.
Carlotta surgiu por entre duas senhoras, com seu coque impecável e brincos dourados balançando ao ritmo de seus passos largos. Trazia uma sacola ecológica estampada com cactos e um olhar afiado que já varria Gabriela de cima a baixo antes mesmo das apresentações.
— E essa aí do seu lado? Leonardo agora tá trazendo turista pra casa, é? — perguntou, meio rindo, meio curiosa, com o ar típico de quem sabe provocar só pra arrancar história.
Gabriela, pega de surpresa, abriu um sorriso educado, mas não teve tempo de falar.
Fiorella gargalhou, dando um leve tapa no braço da amiga.
— Ma dai, Carlotta! Não começa! Essa aqui não tem nada a ver com o Leonardo, graças a todos os santos italianos. É Gabriela, minha nova hóspede. Chegou ontem na vila, veio do Brasil.
— Olá — Gabriela se apressou, estendendo a mão com simpatia. — Gabriela Rocha, prazer. Eu tô mesmo hospedada na casa da Fiorella.
Carlotta pegou a mão da brasileira com entusiasmo e deu dois beijos exagerados nas bochechas, como manda o figurino das boas-vindas italianas.
— Prazer enorme, Gabriela! Eu sou Carlotta Gonzales. — E estufou um pouco o peito. — Dona da Casa Gonzales: il meglio della tradizione italiana con un tocco messicano
— Eu passei por lá ontem! — disse Gabriela, agora mais solta. — Fiquei encantada com a proposta. A mistura das culinárias chamou muito a minha atenção.
— Claro que chamou! — Carlotta piscou. — É porque meu marido, Roberto, é mexicano. Cozinheiro de mão cheia, te juro. Ele trouxe as pimentas e eu trouxe as receitas da nonna. É tudo feito a quatro mãos... e dois corações.
— Parece incrível. Com certeza vou querer conhecer de perto.
— Vai sim, e não vai se arrepender. Qualquer hora passa lá. Se avisar antes, a gente prepara até uma sobremesa especial fora do cardápio.
Fiorella, enquanto isso, já estava fechando negócio com o peixeiro, apontando um linguado gordo com o dedo firme.
— Esse aí tá bom pra assar no forno com limão siciliano, né?
— Melhor impossível — respondeu o vendedor, embalando o peixe.
Carlotta se despediu com mais um sorriso para Gabriela, lançando um último comentário com o tom divertido:
— E olha, se precisar de refúgio quando a Fiorella começar a querer te empurrar neto de vizinha, passa lá no restaurante. A gente protege as forasteiras.
— Vou lembrar disso! — Gabriela riu.
Enquanto se afastavam, Fiorella deu uma cotovelada leve na brasileira.
— Ela te adorou. Isso é um bom sinal.
— Ou um aviso de que vou ser tema do café da tarde de hoje.
Fiorella deu uma gargalhada, puxando seu carrinho de feira.
— Em vila pequena, amore... ser assunto é só o primeiro passo pra virar parte da história.
A volta para casa foi tranquila, com o carrinho de feira cheio e Fiorella tagarelando sobre receitas, vizinhos e pequenas histórias da vila que escapavam pelos becos como o cheiro de pão fresco nas manhãs de domingo.
Gabriela se ofereceu para ajudar assim que entraram, e logo estava com um avental amarrado na cintura, descascando batatas enquanto Fiorella preparava um tempero que parecia ter saído direto de um segredo de família. A cozinha se encheu de aromas cítricos e ervas frescas, enquanto o linguado comprado na peixaria dourava no forno com um brilho quase poético.
Leonardo e Matteo apareceram espiando, atraídos pelo cheiro.
O almoço foi simples, mas cheio de sabor. O peixe estava divino — macio, perfumado e com aquele toque cítrico que fazia cada garfada parecer um abraço no estômago. Gabriela elogiou com sinceridade, arrancando um sorriso orgulhoso de Fiorella.
— Receita da nonna, claro. — ela disse, piscando, como se isso explicasse toda a perfeição do prato.
Depois, juntas, as duas organizaram a cozinha, cada uma em seu ritmo, conversando sobre coisas leves da vida, como se fossem velhas conhecidas dividindo uma rotina antiga.
Com a louça seca e a toalha recolocada na mesa, Gabriela tirou o avental e se virou para a anfitriã:
— Acho que vou dar uma volta agora, bater umas fotos, conhecer melhor as ruas. A luz tá linda, e quero aproveitar antes do anoitecer.
Fiorella assentiu, secando as mãos num pano florido.
— Vai, sim. A vila é pequena, mas tem alma. Se ouvir música, siga. Se sentir cheiro de pão, bata na porta. E se alguém perguntar de onde você veio, diz que agora é um pouco daqui também.
Gabriela sorriu, com o coração leve.
— Volto quando o sol começar a se esconder.
— Estaremos aqui. Com café fresco e, quem sabe, um pedaço da torta da nonna que sobrou.
Gabriela pegou a câmera na mesinha perto da porta e saiu com um sorriso no rosto, cruzando o portão com passos curiosos e livres.
E ali, sob o céu claro da tarde italiana, a vila se preparava para mais um entardecer... com uma nova história começando a se costurar entre suas ruas estreitas.
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Atualizado até capítulo 80
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