Gabriel riu, mas não havia humor em seu riso.
— É isso que você acha? Que eu te escolhi por acaso?
Melissa franziu a testa.
— O que você quer dizer?
Ele passou a mão pelos cabelos, frustrado. Caminhou até uma estante antiga, puxou um livro de capa preta e o jogou sobre a mesa. Quando ela se aproximou, viu um envelope dentro dele.
— Abre — ele disse, sem encará-la.
Melissa pegou o envelope com mãos trêmulas. Dentro, havia uma foto antiga, desbotada. Era ela. Pequena. Devia ter uns seis ou sete anos. Ao lado dela, outra criança. Um garoto de olhos azuis e expressão séria. Gabriel.
— Isso... não é possível. Eu não lembro disso.
— Eu lembro de tudo — ele disse, agora olhando diretamente para ela. — Aquele orfanato. Os gritos à noite. Os castigos. As promessas que fizemos um ao outro.
— Mas... eu fui adotada ainda pequena. Me disseram que meus pais morreram num acidente.
Gabriel assentiu.
— Foi o que te fizeram acreditar. Mas a verdade... é muito mais suja que isso. E todos os que tentaram esconder… vão pagar.
Melissa sentia o chão sumir sob os pés.
— Por que você me procurou agora?
Ele se aproximou, a mão acariciando o rosto dela com gentileza contrastante.
— Porque você é a única coisa pura que restou na minha memória. A única luz naquele inferno. Mas se você ficar perto de mim, Mel... vai se machucar. Porque eu vou até o fim com isso. E não vai sobrar nada de mim quando acabar.
Ela o encarou em silêncio por longos segundos.
— Então me deixa escolher. Eu não vou fugir.
Gabriel fechou os olhos por um momento, como se lutasse contra tudo dentro dele. Então a puxou de novo, apertando-a contra o peito.
— Você não sabe no que está se metendo...
Ela sussurrou, com a voz firme:
— Não, mas quero descobrir. Com você.
E foi ali, naquela sala escura, com a chuva tamborizando nas janelas e os fantasmas do passado rondando à espreita, que Melissa percebeu: o perigo não era Gabriel.
Era ela mesma, por querer cada parte dele — até as partes que ninguém jamais deveria amar.
A noite caiu como uma cortina pesada sobre o internato. A tempestade havia passado, mas o ar continuava denso, quase sufocante. Os corredores estavam vazios — um silêncio artificial pairava, como se o prédio inteiro prendesse a respiração.
Melissa observava a janela do quarto de dentro do seu cobertor, olhos arregalados, mesmo sem sono. As imagens daquele momento no refeitório ainda giravam na sua cabeça — o toque na pele, o olhar de Gabriel, e aquele calor que não vinha de fora, mas de dentro dela.
Algo dentro dela estava… ativando?
Ela sussurra para si mesma:
— Isso não era pra acontecer…
Mas ela não sabe o quê, exatamente.
Clara, na sua ausência física, parecia mais presente que nunca. Um sussurro da lembrança. Um vazio que pressionava o peito de Melissa, como se dissesse:
"Cuidado. O que matou a mim... pode estar começando em você."
Ela levanta devagar, pega o caderno antigo da irmã escondido no fundo do armário e se senta na cama com as pernas cruzadas. As folhas amareladas escondem anotações desconexas. Palavras riscadas. Frases interrompidas.
Mas uma delas, escrita à mão com força, chama sua atenção:
> “Se sentir demais… eles te caçam.
Se sentir de menos… você já está morta.”
A pele de Melissa se arrepia.
Ela fecha o caderno de súbito.
Lá fora, passos ecoam. Não pesados como os de um adulto. Nem desorganizados como os de estudantes. Há precisão neles. Como um relógio quebrado que ainda insiste em andar.
Melissa caminha até a porta do quarto, colando o ouvido. Nada. Depois, tudo. Um som leve, metálico, arrastado. Um arranhado de algo frio no piso.
E então…
— Você devia estar dormindo — diz uma voz baixa atrás dela.
Ela se vira em choque.
Gabriel está encostado à parede do corredor, braços cruzados, olhos semicerrados. Ele veste uma blusa cinza, larga demais, como se tivesse saído de um lugar onde os corpos não importam. Há algo sujo em sua expressão. Algo que não combina com a escola. Nem com esse mundo.
— O que você está fazendo aqui? — ela pergunta, sem dar um passo para trás.
— O mesmo que você. Fugindo dos fantasmas.
Ele se aproxima lentamente.
— Mel… você já sentiu que tem algo dentro de você que não foi colocado por escolha?
Ela hesita. O nome dela na boca dele tem um gosto estranho. Doce e cortante.
— Todos temos memórias — ela responde.
— Eu não tô falando de memórias.
Ele encosta um dedo no próprio peito.
— Tô falando de programação.
Silêncio.
Ela engole seco. O olhar dele é fogo e espelho. Reflete e queima.
Ele estende algo pequeno, dobrado.
— Achei isso nos arquivos do bloco antigo. Tinha seu nome. E o da sua irmã.
Melissa pega o papel com mãos trêmulas. Mas antes que possa abrir, um alarme discreto ecoa do corredor leste. Um som quase inaudível — exceto para quem já o ouviu antes.
O chamado dos Mascarados.
Ela arregala os olhos.
— Eles estão aqui?
Gabriel assente, tenso, agora sério.
— E vieram por você.
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Atualizado até capítulo 50
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