Uma vez, o Astro Rei cansou do mundo mortal, da ganância dos homens e da dor do frio que o consumia. De onde antes só havia silêncio, fez seu próprio lar, um refúgio distante de tudo o que lhe causava sofrimento. Porém, ele não se desconectou completamente daquele mundo; com ele, criou uma passagem, um elo entre os reinos. O Portal de Solaria nasceu assim, sustentado pelo coração fragmentado de uma estrela. Sua luz pulsava entre dois pilares colossais de pedra vermelha, uma energia dourada fluindo como se o próprio sol respirasse dentro daquela estrutura. As inscrições ancestrais, entalhadas na base, brilhavam com um fulgor inquieto, vibrando com o fluxo instável de poder. Sem o Portal, Solaria ficaria isolada. E era exatamente isso que seus inimigos desejavam.
Kiran chegou tarde demais.
O arrepio veio antes da visão.
A areia estava manchada de sangue seco, e os corpos dos soldados solarianos jaziam espalhados diante do Portal, uns ainda agarrados às armas, outros tombados de rosto para o chão, como se tivessem caído tentando proteger a própria sombra.
Os poucos que restavam resistiam como podiam, disparando contra criaturas que escalavam os pilares com garras longas e movimentos sinuosos. Tinham olhos que ardiam como brasas e pareciam farejar não só carne, mas também o medo.
A cada golpe contra as inscrições, a luz do Portal vacilava. Finas fissuras se espalhavam lentamente pelas colunas, e bastou um olhar de Kiran para entender o risco. Se o selo se rompesse, não haveria retorno. Nada restaria a proteger.
Ele puxou as rédeas com força, saltando antes mesmo de Ouro parar. O cavalo relinchou e recuou alguns passos, mas Kiran já se movia.
A pistola saiu do coldre com um movimento sóbrio e prático. O primeiro tiro explodiu no peito de uma das criaturas, reduzindo-a a cinzas. A segunda virou o rosto a tempo de ver o clarão do disparo seguinte antes de desaparecer também.
Mas elas continuavam vindo.
A escuridão ao redor parecia ganhar forma, espessa e cheia de dentes. Mais delas emergiram das sombras, deslizando sobre a areia como predadores que já haviam vencido. E agora todos os olhos estavam voltados para ele.
Kiran avançou. Passou pelos soldados que ainda lutavam, colocou-se diante do Portal como última linha.
Respirou fundo. Sentia o coração pesado no peito, não por medo, mas por algo mais fundo, a certeza de que talvez não voltasse.
A primeira criatura saltou. Kiran atirou no ar, em pleno movimento. O corpo negro se dissolveu no impacto. Outra veio logo atrás. Ele girou, esquivou-se por um triz, rolou pela areia e atirou de costas. Um clarão. Mais cinzas.
Então, um rugido atravessou o vale.
Baixo, profundo, como trovão subterrâneo. E ele surgiu.
Uma criatura maior que as outras, negra como pedra polida, o corpo coberto de fendas incandescentes, como se o calor de dentro estivesse sempre prestes a explodir. Os olhos, dois sóis mortos, amarelos e vazios.
Mas ela não atacou. Não olhou para os soldados, nem para os corpos. Seus olhos estavam fixos no Portal.
Kiran disparou.
A bala cruzou o ar, brilhando como brasa, mas a criatura se moveu com uma rapidez brutal, desviando o corpo num giro seco. No instante seguinte, avançou.
Ele tentou recuar, mas foi tarde.
As garras atingiram seu peito num golpe seco, e o impacto o lançou para trás. Ao cair, Kiran rolou por instinto, evitando um segundo golpe que cravou as garras da criatura no chão, erguendo uma nuvem espessa de poeira.
Lutando contra o peso do próprio corpo, ele se ergueu. A respiração era curta. A dor latejava nas costelas, mas seus olhos estavam firmes.
Esperou.
Quando a criatura flexionou os membros para atacá-lo novamente, Kiran disparou, uma, duas vezes. A última bala acertou o lado da cabeça da fera, que cambaleou.
Mas não caiu.
Ela rugiu e avançou com mais fúria.
Kiran tentou esquivar-se, mas as garras o alcançaram. Uma mão gigantesca o agarrou pelos ombros com força sufocante. Os dedos apertavam como presas. E então a criatura saltou.Kiran foi arrastado junto.
O Portal reagiu com um clarão súbito, como se todo o seu poder tivesse despertado. A luz envolveu os dois num círculo incandescente. A última imagem que ele viu foi o pânico no rosto de um soldado, e depois, só branco. A luz engoliu tudo.
...***...
Atravessar o portal foi como mergulhar no centro de uma tempestade sem vento. Durou apenas um instante. Mas foi o suficiente para que ele perdesse a noção do tempo, do corpo, do próprio nome.
Quando o impacto veio, foi seco.
O chão o recebeu como pedra. A pancada arrancou-lhe o fôlego, espalhando uma dor aguda pelo tórax e ombros. Ficou ali, imóvel por alguns segundos, tentando reaprender a respirar, sentindo o gosto metálico na boca. O mundo girava devagar ao seu redor, como se tudo estivesse fora de eixo.
Então ouviu o rugido. Grave, próximo, carregado de raiva e dor.
A criatura atravessara o Portal com ele.
Ela surgiu entre os últimos vestígios de névoa luminosa, os olhos como carvões incandescentes cravados em um rosto de sombras. Assim que o avistou, avançou sem hesitar.
Kiran não pensou. O corpo agiu por conta própria. Com esforço, puxou a pistola com dedos trêmulos e, ainda caído, ergueu o braço e atirou.
O disparo cruzou o ar num traço dourado. A bala acertou o peito da criatura, que cambaleou, o corpo tremendo como se por dentro estivesse se rompendo. Rachaduras finas se espalharam por sua pele, revelando um brilho fraco e instável. Em poucos segundos, ela começou a se desfazer em fragmentos escuros carregadas pelo vento.
Quando o último vestígio da criatura desapareceu, o silêncio tomou conta.
Kiran permaneceu no chão por mais alguns segundos. O coração disparava no peito, e sua respiração vinha curta, rasgando a garganta. Tentou se mover. Os músculos protestaram, mas ele conseguiu se apoiar nos cotovelos e erguer os olhos.
O Portal havia sumido.
Não havia mais sinal do deserto de Solaria, nem calor, nem areia, nem céu azul queimando o horizonte.
Em seu lugar, estendia-se um mar vasto e imóvel. As águas refletiam um céu cinzento, completamente estático, sem nuvens, sem luz, sem vento. Não havia som de ondas, nem farfalhar de brisa. Apenas aquele espelho líquido, estendendo-se até onde a vista alcançava.
Atrás dele, os restos de uma ponte colossal se erguiam como uma ruína de tempos esquecidos. A estrutura rompia-se justamente no ponto onde ele havia caído, os arcos despedaçados desaparecendo dentro da névoa distante.
No horizonte, além da névoa baixa, surgia uma faixa de areia clara. Mais adiante, um porto abandonado. Embarcações antigas balançavam lentamente, como se ainda estivessem presas a uma rotina esquecida. Ninguém às guiava. Nenhum som. Nenhuma vela içada.
Um arrepio percorreu sua espinha.
— Onde diabos eu estou? — murmurou, mais para si mesmo do que para qualquer presença invisível.
Levantou-se com cautela. As pernas vacilaram, e o corpo reclamou com dores agudas nos ombros e costelas. Mas ficou de pé. Olhou ao redor mais uma vez, como se buscasse alguma lógica naquele lugar. Nada fazia sentido.
Atrás de si, a ponte despedaçada. À frente, o mar e a faixa de areia. Tudo ao redor parecia parte de algo parado no tempo, como se estivesse preso dentro de um quadro antigo, uma lembrança esquecida pelo próprio mundo.Ficar ali não era uma opção.
Então, deu o primeiro passo.
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