04

Hensel a desamarrou. Marcas avermelhadas feriram a pele pálida da garota. Ela estava tão fraca que mal tinha forças para nada. A ideia de levá-la a algum lugar próximo para fazer suas refeições estava completamente fora de cogitação; ninguém ainda poderia vê-los juntos.

Aproveitando a ausência dos soldados, o capitão aproveitou o momento para retirá-la de onde estava e levá-la até seu carro. Desta vez, ela não iria no porta-malas.

...(...)...

Fraca e imóvel, ela mais parecia uma morta-viva deitada no banco traseiro. Seus olhos entreabertos estavam fixos ao teto do veículo. Ela não sabia o que estava acontecendo. Por vezes o carro chacoalhava e com isso novas dores despertavam em seu corpo.

Um perfume indiferente preenchia o espaço. Hensel exalava um cheiro bom, mas para ela tudo aquilo se tornava repugnante. Uma lágrima solitária escorreu sobre sua face. Tudo estava acabado. Tudo. Talvez a única ganhadora nesse maldito jogo de perseguição foi a pequena Edith. Ela havia perdido o pai, a mãe, a irmã e agora ela mesma estava se perdendo.

...~•~•~•~...

Hensel tinha as mãos firmes no volante. O Kübelwagen preto trafegou com tranquilidade pelas amplas ruas de Berlim. Para evitar possíveis contratempos, Rudolf pegou um atalho. Diferente dos outros oficiais do exército, ele se negou terminantemente em residir nas estalagens da guarnição. Ele preferira mil vezes o conforto maior que sua casa poderia oferecer. E aos contrário do que muitos poderiam pensar, Rudolf morava em uma rua tranquila, afastada de toda a agitação do centro.

A casa era simples, sem muitos caprichos, mas bastante acolhedora. Tinha um jardim na frente: rosas vermelhas cresciam lindamente. Era bom estar em casa de novo, depois de tantos dias imerso nos ofícios de seu trabalho.

— Reconheci o barulho do carro de longe. – Hensel fora surpreendido. O portão se abriu de repente e uma mulher saiu, de braços cruzados e uma expressão nada amigável. — O que você quer aqui?

— Eu moro ainda aqui, sabia?

Aquela era Gretel Hensel, sua irmã mais velha.

— Custava ter atendido as minhas ligações? – ela disse, os braços cruzados e a expressão de profunda desaprovação.

— Ah, sinto muito, mas arranquei todos os fios do telefone na última vez que você me perturbou. – ele respondeu, abrindo a porta do veículo e se lançando para fora.

A garota no banco traseiro continuava imóvel, os olhos fixos ao teto do veículo. Apesar de tudo, sua respiração era regular. Seu peito subia e descia lentamente.

— Você é uma pessoa péssima, sabia?

— Sei disso. E eu preciso de uma ajudinha sua.

Gretel não encarou com bons olhos aquele pedido do irmão. Hensel era sempre muito imprevisível; ela sabia que o irmão era capaz de se meter em qualquer confusão apenas pelo mais puro prazer, mas desta vez ele havia ido longe demais.

Ao abrir a porta que dava acesso ao banco traseiro, Gretel paralisou completamente. Seus olhos não podiam acreditar no que viam.

— Ela é judia. – ele disse sem a menor cerimônia. — Ela e outros judeus estavam tentando fugir pelo rio Elba. Tinha uma embarcação clandestina para levá-los. Eu a vi de longe e cheguei a tempo para capturá-la.

— Não é perigoso demais ficar com uma judia em casa? – ela questionou. — Se eles descobrirem, vão matar vocês dois!

— Não vão descobrir. Ela não parece em nada ser uma judia. – Hensel a puxou para fora do veículo, trazendo-a para a luz. — Veja. Ela parece ser uma pura ariana. Ninguém irá desconfiar.

Gretel, em silêncio, a observou atentamente.

A garota tinha a estatura ideal para mulheres. Possuía longos cabelos loiros, lindamente dourados, contava ainda com uma pele alva, lábios rubros e um nariz simétrico. Hensel tinha razão: ela parecia ser uma mulher comum, o padrão exigido pela sociedade nazista.

— Eu não sabia que você tinha amigos judeus. – Gretel disse, ainda muito assustada. — Como ficou sabendo que iriam fugir pelo rio Elba?

— Eu não sabia, mas chegou até mim essa informação. Hoje em dia, qualquer um se vende por alguns tostões a mais.

Gretel se calou. Estar frente a frente com aquela garota naquele estado era deprimente. O vestido fino que seu corpo magro estava sujo e seus lábios estavam ressecados. Ela estava mal, e Hensel sabia disso.

...(...)...

A garota foi levada para dentro da casa. Gretel foi a encarregada para cuidar de tudo. Hensel apenas despiu sua casaca cinzenta, sentou-se em uma cadeira e ficou observando tudo. Havia comida pronta para a refeição, no entanto não era suficiente para três pessoas. Gretel não sabia que o irmão voltaria, tampouco sabia que o mesmo traria consigo uma garota praticamente morta pela fraqueza considerada extrema.

A irmã do capitão deu toda a comida que fizera para saciar a fome da garota. E então, sob o olhar neutro do homem na cadeira, próximo a mesa, a garota, em um gesto instintivo, abriu a boca para receber a primeira colherada de comida. O gosto era bom, mas ela não sabia exatamente o que era.

— Qual é o nome dela? – Gretel quis saber enquanto esperava pacientemente a garota terminar de mastigar.

Hensel suspirou e se remexeu com inquietação.

— Ainda não sei.

— Como assim não sabe?

— A única conversa longa que tivemos, ela não me deu chance de perguntar. – ele respondeu, dessa vez o tom de voz indiferente. — A única coisa que ela fez foi me desafiar a minha paciência. É uma garota de língua afiada.

Mais colherada cheia. A garota devorava tudo às vezes sem nem ao menos mastigar, engolindo pedaços inteiros. Gretel notou as marcas nos pulsos e nos tornozelos que já começavam a adotar um tom arroxeado.

— O que você quer com essa garota, Rudolf?

— Ela apenas é perfeita para mim. Só isso.

— Você não está fazendo nada contra a vontade dela, não é? – a mais velha quis saber, embora a resposta fosse tão óbvia.

— Ela não tem escolhas. Se ela não aceitar o que quero fazer, eu mesmo a prendo junto com todos os outros. É duro ter que desperdiçar um ser tão raro, mas apenas as minhas condições estão em jogo agora.

Uma expressão indiferente surgiu na face da garota. Gretel teve a leve impressão de que ela havia entendido o que seu irmão estava dizendo. Um nó se formou em sua garganta. Ela era apenas uma garota; tinha tudo para ter uma vida livre e boa, mas que infelizmente caiu nas mãos da pessoa errada.

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