A CELA SOLITÁRIA
A cela está mais fria que o normal. Tento dormir. Na escuridão, uma voz vem, doce e grave: a voz do Pastor Paulo.
— Victor.
Não. Não. Para mim não dá mais, pastor. Estou sujo. Vazio. Vinea não vai sair sem o que dei pra ele. Nem Deus pode me livrar agora. Eu rejeitei. Eu escolhi.
E agora... só o inferno me espera.
VISITA DE RAPHAEL
Dias depois, na sala de visitas atrás do vidro à prova de balas, ele entra. Raphael. Não é mais o policial intacto. Há olheiras profundas, um cansaço da alma.
Pega o interfone. — Eles disseram que você pediu. Que queria me ver. Antes. — Pausa. — A Elara... nos últimos dias, ela sonhou com você. Acordava gritando. Só dizia que você... a chamava.
Olho fixamente para ele. Um misto de sentimentos brota.
— Aquele policial de merda veio aqui só para isso? — penso, observando seus olhos. — Não... olha os olhos dele... Está quebrando.
Um sorriso genuíno se forma em meus lábios. Não de alegria, mas de deleite. — Você se deu o trabalho de vir aqui me dizer isso?
Fixo o olhar nele. Seus olhos são de cordeiro em frente ao lobo faminto…
— Raphael, Raphael... não importa o que você diga, seu medo já mostra que no fundo eu consegui o que queria... te quebrar. — Minha língua passa pelos lábios. — Se cuide... pois é fácil terminar de quebrar o que está rachado.
Ele fica em silêncio. Sua voz sai rouca, mas firme.
— Quebrar? Talvez. Mas você está atrás do vidro, Victor. Eu ainda respiro o mesmo ar que ela respira. Você só respira a conta regressiva.
Inclina-se para frente.
— Você acha que ganhou porque vejo você nos meus pesadelos? Ela está comigo Victor. As partes boas. Você... é só o monstro debaixo da cama. Um monstro que vai morrer daqui a pouco. E eu... vou ter que viver com isso .
Solta um ar meio riso, meio suspiro.
— Você não quebrou nada que já não estivesse rachado pelo próprio mundo. Só deu um rosto e um nome pra rachadura. ‘Victor’. E daqui a algumas horas, nem isso vai sobrar.
Começa a se levantar. Pausa. Sussurra para o interfone, quase para si mesmo: — Durma bem, Victor.
Desliga. Dá as costas. Sai.
E eu, com voz dupla, num sussurro enquanto as luzes piscam:
— Vejo Elara na banheira mais tarde... hahahaha.
Vejo seu corpo congelar na porta. Ele se vira. Seus olhos estão arregalados de horror puro. Ele leu meus lábios. A imagem — íntima, específica — atingiu como uma faca. Ele desaparece pelo corredor, cambaleando.
DISCUSSÃO COM VINEA
De volta à cela de isolamento. Vinea está... aborrecido. Sua voz é um zumbido de insetos no fundo do meu crânio.
"Uma piada? Você usou nosso último suspiro de influência para uma piada?"
— Para de chatice, Vinea — resmungo. — O maior terror é destruir o espírito do inimigo. E tem mais: Você não cumpriu o acordo até agora! Caramba!? Mais de quatorze anos te aturando e nem pra isso é eficiente??
O silêncio que se segue é de escândalo absoluto.
"CHATICE?! Eu, que testemunhei o primeiro fratricídio, sou chamado de chato? Por um primata que prioriza o timing cômico?"
Sinto uma pressão dentro do crânio, como se fosse rachar.
"Você quer eficiência? Tudo bem. O acordo era sua alma em troca da sua vingança. O Raphael está destruído? Maravilha. Contrato cumprido. Minha parte feita."
A voz fica perigosamente doce, gelada.
"Isso significa que você está em débito. A entrega é iminente. E eu vou ser eficientíssimo na cobrança."
— Negativo — me mantenho firme, sentado na beira da cama. — Quem cutucou Raphael fui eu... e o acordo eram os dois... Elara comigo e o idiota acabado... Sou de palavra. Não me importo de ir com você, só quero o que me prometeu.
Vinea cala-se por um longo momento. Quando responde, soa diferente. Interessado. Lógico.
"Muito bem. Aceito a emenda. Você terá sua vingança completa. E a Elara... com você. Afinal, o que é a posse, senão uma questão de... proximidade eterna?" Aguarde o seu prêmio… - a voz de Vinea era gelada e sussurrante.
CENA 4: O INTERROGATÓRIO
A sala de avaliação é fria. Dois homens me encaram: o Dr. Elias, com seu bloco, e o Detetive Ramos, com ódio nos olhos.
Ramos corta direto:
— Poupa tempo, Doutor. Victor, você estava em pleno controle quando fez o que fez com a Elara, ou não?
O Dr. Elias ignora, mantendo o olhar em mim.
— Ignore a pergunta do detetive, Victor. Me fale sobre a Elara. Quando você a viu pela primeira vez... era apenas a ‘isca’? Ou você sentiu algo mais, antes que o ‘sócio’... Vinea... ditasse os termos?
Ele pausa.
— Meus relatórios dizem que você a observou por semanas. No mesmo café, mesmo horário. Isso é meticulosidade de um predador... ou a dúvida de um homem que precisava de um empurrão?
Ramos solta um som de descrença.
Vinea murmura: "Cuidado. Ele está cavando."
O Dr. Elias se inclina, voz confidencial:
— Antes do ‘contrato’. O que você fazia quando a escuridão vinha? Quando não havia ninguém para culpar? Você... rezava?
A palavra paira. Ramos franze a testa.
E é então que ela volta. A imagem dela. A lembrança mais bonita e mais dolorida.
Olho fixamente para o policial... Um misto de sentimentos brota.
— No fundo, Elara era a lembrança mais bonita... e a mais dolorida. — A voz me falha. — Doutor, meu passado não importa, eu sou o que sou agora...
Suspiro fundo.
— ...Ela é a única luz que desejei, mas por burrice minha deixei escapar... — Inclino-me para frente. — Não a cerquei como falou aí, imbecil! Eu a amei...
A voz me falta.
— Eu a amei... e eu mesmo a mandei embora... e não achei lugar por conta daquele maldito policial!!
Ramos aproveita, com desprezo triunfante:
— Então foi isso? Ciúme de corno? E aí inventou essa história de demônio e pacto pra se fazer de importante? Patético. Elara escapou de você, é isso. Escapou viva.
Vinea rosna dentro de mim. "AMOR? Para ELES? É ela ou eu. ESCOLHA."
O Dr. Elias vê a rachadura:
— Você a amou. E a perdeu. Para o Raphael. E isso... isso o transformou. Não o Vinea. A rejeição. O ciúme. A humilhação de ver quem você queria com outro.
A pressão de Vinea é uma dor latejante. "Eles estão reduzindo você a um homemzinho! NEGUE!"
E então, perco o controle.
— Corno?? — A palavra ressoa mais potente que a entidade. Olho fixo para Ramos. — Acha que isso seria motivo para 14 anos de caça? Para tudo que eu construí?
Rio sarcástico. Coloco as mãos algemadas sobre a mesa.
— E se não fosse demoníaco... como explica isso? — Minha voz começa a se distorcer. — 14 anos... e vocês apanharam igual cães velhos. HAHAHAHA!
O ar fica frio. As lâmpadas piscam. Um cheiro de sangue velho e incenso queimado toma o ar.
Vinea está aqui.
Me levanto. Algo se levanta. Quando ergo o rosto, vejo o reflexo no olhar do Dr. Elias: meus olhos, totalmente negros, com um puxão, as algemas em meus pulsos se quebram.
— Vocês deveriam acreditar no mal... — a voz não é minha, é de muitos. — ...caro Ramos. Principalmente você.
Ramos empalidece, recua.
— Que como esse aqui, também tem ficha suja... — um sorriso não natural estica meus lábios. — ...ou melhor: cabeça suja...
Ele para de respirar.
— Ramos... há um tempo, descobriu uma traição da esposa. Nunca contou a ninguém. É duro imaginar ela nos braços de outro? Curtindo um prazer que já não pode dar a ela?? — a gargalhada saindo fundo das minhas entranhas.— afinal seu amigo não ajuda?— meu olhar de deboche sobre Ramos é tão pesado que ele empalidece… nossa voz sai ,como um sussurro íntimo, venenoso. — Foi divertido coroar sua cabeça.
Minha risada final — "HAHAHAHA!" — vem das paredes, do teto.
As lâmpadas estouram. A sala mergulha na escuridão, só a luz vermelha de emergência vazando.
Na penumbra, o som de Ramos caindo de joelhos, um soluço de terror. O Dr. Elias grita por guardas.
Quando as luzes de emergência se estabilizam, estou sentado. Tudo normal. Meus olhos são meus.
Cruzo os braços. Olho para Ramos, destroçado, e para o Dr. Elias, que me encara como um fantasma científico.
— Foi divertido brincar com o diabo, amigo? — minha voz está exausta, vitoriosa. — Para mim foi.
O doutor, tremendo:
— Isolamento total! Ele... será estudado.
A porta de aço se fecha com um baque.
Do outro lado, o sussurro quebrado de Ramos: — Como ele sabia... como ele podia saber...
O FIM NO VAZIO
O isolamento total era uma cela branca, insossa, monitorada 24 horas por câmeras e olhos desconfiados. Nada aconteceu. Nenhuma voz, nenhum cheiro de enxofre, nenhum piscar de luzes. Apenas silêncio. O silêncio de Vinea, que após aquele
espetáculo no interrogatório, recuou para as profundezas da minha mente, como um animal satisfeito, digerindo o medo que causou.
Mas eu sabia. Ele estava apenas esperando.
O tempo passou. Um dia, um mês, um ano. A data da execução foi adiada indefinidamente por “razões de estudo”. Eu era um fenômeno. Uma aberração a ser dissecada em papéis acadêmicos. Raphael nunca mais apareceu. A vitória que senti ao quebrá-lo agora tinha gosto de cinza.
Até que, numa noite sem qualquer marcação, adormeci na cama dura. E não acordei.
Despertei em lugar nenhum.
Um vácuo cinza, sem chão, sem céu, sem temperatura. Não era escuro. Era a ausência de tudo, inclusive da escuridão. E diante de mim, materializando-se da própria neblina do nada, estava Vinea.
Não era a presença grandiosa e aterrorizante que habitava meus ossos. Era uma figura alta, vestida num traje cinza antiquado e puído, o rosto indefinido, como visto através de um vidro embaçado. Seus olhos eram dois poços de uma ausência que dava vertigem. Ele parecia... diminuído.
— Então — disse minha voz, estranhamente clara nesse silêncio absoluto. — Você veio me buscar. Finalmente. Cadê ela? Cadê o resto do meu pagamento?
Vinea não se moveu. Quando falou, a voz não vinha dele, mas do vácuo ao redor, fraca e plana, sem o eco de poder de antes.
“Não há ‘ela’ para você, Victor. Nunca houve.” A frase pairou. Eu não entendi.
— O que você está dizendo? O contrato...
“O contrato”, ele interrompeu, e houve um tremor em sua forma, “é nulo. Inexequível. O objeto do seu desejo... estava sob uma proteção que meu assinatura não podia anular. Eu... fui barrado.”
A palavra ecoou no vazio. “Barrado.”
Um frio que não era físico tomou conta de mim. O vácuo ao redor pareceu se contrair.
— Barrado? Por quê? Você é um demônio! Você tinha minha alma!
“Sua alma comprou uma promessa. Não a posse. A posse dela... estava guardada.”
Ele fez um gesto vago com uma mão translúcida. O vácuo ao nosso redor se iluminou com imagens que não eram imagens, eram impressões diretas na minha consciência.
Vi Elara e Raphael. Não como fantasmas. Como ideias vivas, entrelaçadas por um fio de luz dourada e inquebrável. O voto deles. A aliança. A promessa feita diante daquilo que eles chamavam de sagrado. E ao redor deles, uma muralha de silêncio e paz tão sólida que fazia o mármore da minha cela parecer papel.
E entendi. Não com a mente. Com a alma que eu tinha vendido.
Eles não venceram por serem mais fortes. Venceram por estarem guardados. O amor deles — aquele amor simples, banal, conjugal — havia sido consagrado a algo maior. E aquela consagração era um domínio onde Vinea, e seu contrato de ódio e ciúme, não tinha jurisdição.
Eu vendi minha alma por nada. Pior: vendi-a por um prêmio que estava trancado num cofre ao qual nem o demônio com quem negociei tinha a chave.
O grito que saiu de mim rasgou o silêncio do vácuo, mas não fez som. Foi um espasmo de agonia pura, da raiva de um homem que descobre que o jogo inteiro estava viciado desde o início.
Vinea observou, sua forma trêmula.
“O acordo, no que tange a posse, falhou”, disse, sua voz agora um mero sussurro de vento em um túnel abandonado. “Mas a cláusula da sua alma... essa permanece. A entrega já foi feita há muito tempo.”
Ele estendeu aquela mão pálida. Não era uma ameaça. Era um convite. O convite de um perdedor para outro.
“Parceiros até o fim. Sem Elara para você. Sem triunfo para mim. Apenas... isto. E um ao outro.”
O vácuo ao nosso redor se solidificou no que só podia ser descrito como um inferno administrativo. Não havia fogo, nem gelo, nem gritos. Havia a ausência total de significado. A solidão que não era sequer reconhecida como solidão, porque não havia memória de companhia para contrastar.
E nós dois, Victor e Vinea, começamos a caminhar. Não havia para onde ir. Não havia o que fazer. Apenas caminhar, no vácuo, um ao lado do outro.
O demônio que eu temi, que eu achei que era o ápice do poder das trevas, era apenas um burocrata celeste falido. Um colecionador de almas que tinha sido barrado na porta por um “Não perturbe” divino.
E eu? Eu era o tolo. O tolo que achou que seu ódio era grande o suficiente para mover montanhas sobrenaturais. Que sua dor era única. Que seu pacto importava.
O verdadeiro castigo não era o sofrimento. Era a irrelevância.
Enquanto caminhávamos naquele nada eterno, a última verdade se instalou em mim, mais aterradora que qualquer visão de inferno:
O amor deles — simples, protegido, chato — tinha sido mais forte. Tinha anulado meu ódio épico com um simples e eterno “não” celestial.
E Vinea, o terrível Vinea, caminhava ao meu lado, um lembrete mudo de que no grande esquema das coisas, meu mal, meu pacto, minha grande vingança...
...nunca foram grandes o bastante para sequer serem notados. (FIM