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Desafiando o Destino
A escuridão era tudo o que eu conhecia. Sem forma, sem som, sem tempo. Apenas o nada, frio, sufocante, interminável.
Quando a luz chegou, não me trouxe conforto.
Ela rasgou o vazio como uma lâmina, forçando meus olhos a se abrirem contra sua claridade agressiva. O ar invadiu meus pulmões com violência, como se eu estivesse engasgando com a própria vida.
Meus membros eram estranhos, fracos, como se pertencessem a outra pessoa. Tentei mover os dedos. Responderam, trêmulos, desobedientes. Sons começaram a surgir ao meu redor — primeiro abafados, depois cada vez mais nítidos. Vozes. Passos. Objetos metálicos tilintando.
— Fluxos estabilizados.
— Registros iniciados.
— Manter o monitoramento por setenta e duas horas.
Frases soltas, palavras que não faziam sentido. Abri a boca para falar, mas o ar que saiu foi apenas um sopro rouco.
— Está consciente?
— Não por completo.
Senti algo frio encostar na pele, deslizando pelo braço até o peito. Era um cristal? Um instrumento? Não sei.
— Resistência corporal dentro dos parâmetros.
— Ajustem à compressão.
Minhas pálpebras pesavam, mas lutei para mantê-las abertas. Tudo era embaçado, silhuetas se movendo como sombras. Nenhuma delas se importava com minha confusão, ou me dirigia um olhar humano.
Tentei perguntar: Onde estou?
Mas minha voz se perdeu no vazio.
Então, um silêncio pesado caiu sobre a sala. As vozes cessaram. As sombras se alinharam. Alguém havia entrado. Não consegui ver o rosto com clareza, apenas a presença. Fria. Densa. Como se todo o ar fosse sugado ao redor dele.
Ele não falou comigo. Falou sobre mim.
— Estável. Usem-no.
Essas foram as únicas palavras que registrei antes que ele desaparecesse tão rápido quanto surgiu.
Os que ficaram retornaram ao trabalho sem expressão. Nenhum gesto de acolhimento. Nenhuma explicação. Apenas anotações, medições e comandos frios. Meu corpo doía, minha mente girava, mas havia uma fagulha. Uma palavra presa em algum canto da consciência: Grey.
Era só isso que me restava.
ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ
Algum tempo depois...
O tempo não existia ali. Não havia sol, não havia céu. Apenas corredores escuros demais, portas que só se abriam quando alguém permitia, e olhares que nunca se fixaram em mim por mais de alguns segundos.
As primeiras semanas foram apenas de observação. Comer, dormir, mover o corpo, suportar exames que não entendia. Perguntar não adiantava; respostas não vinham.
Até que ele apareceu.
Pele escura, olhos ardendo em vermelho, dois chifres curvados para trás como lâminas negras. Armadura refletindo a luz fria da sala, capa longa roçando o chão.
Diferente dos demais — que se escondiam atrás de pranchetas e cristais —, ele caminhava como se o chão pertencesse a ele.
— De pé. — A ordem cortou o ar.
Hesitei, mas obedeci. Meus músculos tremiam, ainda fracos.
— Fraco demais — murmurou.
— Quem é você? — minha voz era um fio, mas carregava a pergunta que engolia há dias.
— Não importa. O que importa é que, a partir de hoje, você vai se mover quando eu mandar.
Ele deu um passo à frente, seus olhos examinando cada detalhe meu.
— Preciso transformá-lo em algo que sobreviva. Se vai odiar isso ou não... não muda nada.
Virou-se para sair.
— Comece a andar. Amanhã, você não terá escolha.
Naquele momento, eu não sabia seu nome, nem sua posição. Só sabia que ele tinha a chave do que viria a seguir. Mais tarde, ouvi os outros chamá-lo de Cadell.
O som metálico das portas se fechando ecoou depois que ele se foi. Fiquei ali, sozinho, respirando fundo pela primeira vez sem o peso das mãos deles sobre mim.
O ar era frio e metálico, carregado de um silêncio que doía nos ouvidos. Dei alguns passos, tentando entender o espaço: paredes de pedra escura, linhas finas gravadas nelas pulsando com um brilho fraco, quase vivo. Não sabia onde estava. Não sabia por que.
Levei a mão à cabeça. Nada. Apenas fragmentos soltos — ecos de sons, de dor, de vozes que eu não reconhecia.
Então, um reflexo.
Olhei para a superfície polida de um painel de vidro escuro. Minha imagem estava ali, distorcida.
Minha pele era pálida, quase sem cor, refletindo a luz fria da sala. O rosto — ainda jovem, de um garoto de não mais que dez anos — tinha traços suaves, mas não inocentes. Os olhos dourados brilhavam intensos, profundos, como se escondesse algo muito maior do que um simples menino deveria carregar.
Passei a mão pelo rosto. Era delicado, mas já havia nele uma sombra de rigidez, como se o tempo tivesse esculpido maturidade antes da hora. A expressão séria, os olhos estreitos e atentos me davam uma estranheza desconfortável, como se eu não me encaixasse na própria idade.
Meus cabelos longos, cor de trigo, desciam até os ombros em fios lisos e ligeiramente desalinhados. Sob a luz, cintilavam como ouro pálido, contrastando ainda mais com a fragilidade do pequeno corpo. Minhas mãos, pequenas e finas, estavam marcadas por linhas escuras nos punhos — marcas que pulsam levemente quando fechei os dedos.
Não era o corpo que eu lembrava. Mas o antigo não vinha à mente. Apenas a estranha certeza de que aquilo também não era inteiramente meu.
Dei um passo para trás, ainda fitando a imagem no vidro. O peito subia e descia rápido, a respiração curta, irregular.
Quem sou eu agora?
O silêncio foi quebrado pelo som das portas se abrindo novamente. Os passos pesados ressoavam pelo chão, firmes, inconfundíveis.
Cadell entrou. Imponente como sempre, sua presença preenchia o espaço com um peso quase sufocante. Os olhos em brasa me examinaram com calma cruel, como se cada detalhe fosse uma peça a ser avaliada antes de ser usada.
Ele parou diante de mim, estudando meu corpo franzino de cima a baixo.
Sua voz grave ecoou pela sala:
— Está de pé. Bom sinal.
Engoli em seco, mas não desviei o olhar.
— O que vai fazer comigo? — arrisquei, a voz falhando no fim.
Cadell inclinou a cabeça, e por um instante um sorriso duro surgiu em seus lábios.
— Não vou apenas treinar você. Vou moldar você. Treinamento é para guerreiros. Você ainda é apenas barro esperando para se tornar algo.
A palavra atravessou-me como lâmina. Moldar. Não havia escolha.
Ele se virou em direção à porta lateral, que se abriu sozinha ao seu comando.
— Siga-me. O que você foi antes não tem importância.
Minhas pernas hesitaram, mas obedeceram. O corpo ainda parecia estranho, desconectado, mas mesmo assim me movi. Cada passo era pesado, como se fosse levado mais pela força da vontade dele do que pela minha.
Enquanto o seguia, uma pergunta latejava em minha mente:
“Se o que fui não importa, por que dói não lembrar?”