Por que sofremos tanto quando nossos desejos mais íntimos tomam forma e proporção no plano real e de repente, são arrancados de nós por sonhos maiores? Enquanto o sentimento é palpável excita, amedronta, esmaga e afaga, e a gente só se joga esperando algum tipo de suporte embaixo de nossos pés, um que não machuque, não quebre, não mate. E eu mergulhei, me afoguei e nasci, sim, nasci daquela agonia interna que apenas nós nos lembraríamos.
Nossos caminhos se cruzaram em uma tarde vestida de cinza, sob o teto abobadado de um coreto solitário no campus, num dia em que o céu decidiu chorar tudo o que vinha guardando há semanas. As nuvens se amontoavam em camadas densas, e o vento soprava imponente, espalhando folhas molhadas pelas calçadas da universidade.
Eu corria com livros apertados contra o peito na tentativa de não deixar a água estragá-los, os cabelos castanhos grudados na testa, os pés já encharcados. Quando alcancei o coreto, ofegante, quase tropecei nos degraus escorregadios. Eu, caloura da literatura comparada, encharcada e trêmula, buscava abrigo da chuva de outubro. Foi então que o vi. Ele, veterano da turma de arquitetura, trazia nos óculos as gotas cristalinas como pequenas lembranças da tormenta, os cabelos rebeldes colados ao pescoço e os olhos — ah, os olhos — profundos e escuros como madrugadas de estudo, onde a inteligência ardia em silêncio, como uma xícara de café preto recém coado. Estava encostado na coluna central, como se o mundo não estivesse desabando ao redor. Um aluno experiente, com a postura de quem já decifrara os segredos das construções e dos silêncios.
Por um instante, o tempo pareceu suspenso. O som da chuva virou música de fundo, e o coreto, palco de um encontro ao acaso. Ele me olhou com um sorriso contido, como quem reconhece algo familiar em meio ao desconhecido.
— Está tudo bem? — perguntou, a voz grave e serena, como se falasse com as paredes de uma catedral.
Assenti, sem saber se tremia mais de frio ou de algo novo que nascia ali, entre palavras tímidas e respingos de chuva. Sentamos lado a lado, em conversas tímidas e olhares entrecruzados, corados pelo contato visual, compartilhando o abrigo e a estranha intimidade que só os temporais sabem criar. Éramos dois corpos molhados, dois olhares curiosos, dois destinos que se esbarraram sob aquele teto — o coreto virou mundo. E o mundo, apenas cenário.
Nos dias que se seguiram, nos encontrávamos entre aulas e cafés, entre páginas e projetos. Ele me mostrava os traços invisíveis das cidades, eu lhe revelava os labirintos das palavras. O que crescia entre nós era como a chama que não teme o vento, mas o consome para se tornar labaredas — ardente, intenso, quase imprudente.
Fizemos daquela construção vitoriana nosso universo secreto: beijos roubados na biblioteca, bilhetes deixados entre os livros, promessas sussurradas sob árvores centenárias. Ele desenhou para mim um coreto imaginário, com colunas de versos e cúpula de metáforas. E eu escrevi para ele um poema sobre seus olhos de obsidiana.
Mas o tempo, esse velho arquiteto cruel, começou a desenhar distâncias. Ele foi aceito em um estágio fora do país, eu ainda tinha dois anos de curso. Eu fiquei tão feliz por ele, seus olhos escuros brilharam como a vastidão do universo com todas suas estrelas e prometemos resistir. Cartas, chamadas, saudades. Mas o amor, por mais ardente que seja, às vezes não vence fuso horários.
O último encontro foi no mesmo coreto, agora iluminado por um sol tímido. Eu cheguei com um vestido azul, ele com um caderno de desenhos. Sentamo-nos como antes, lada a lado, os olhares ainda corados, mas sabíamos que o tempo não voltaria.
— Se eu pudesse redesenhar o mundo, faria um onde você estivesse sempre ao meu lado — ele disse, seus olhos escuros agora marejados, como um lago profundo na noite mais escura do ano, capturando até o mais fino feixe de luz.
— E eu escreveria um final onde não tivesse que te deixar ir — eu respondi, segurando sua mão. Meu coração ardia, destroçado não pela partida, mas por tudo que poderíamos ter sido juntos. Aquele que eu amei por tempos infinitos, que me amou como um dragão ama seus tesouros, estava prestes a ir e tudo que se passou seria uma história para contar em noites angustiadas banhadas por Wisk e uma cara embriagada no espelho do banheiro.
Nos beijamos como quem tenta eternizar um instante, seu corpo clamava pelo meu, sua boca reivindicava a minha e eu me afogava, queria me afogar, perder a consciência e não abrir os olhos, não ter que ver a imagem turva do meu amor indo embora. E depois, partimos. Ele para longe, eu para dentro de mim mesma, encolhida como uma tartaruga em seu casco. Eu chorei as tempestades de outubro, desabei os dilúvios divinos, meu coração cortado e sangrando sofria todas as dores dos condenados a amar o inalcançável por toda a eternidade. O peso era esmagador, inquietante, o medo visceral de nunca mais ver aquelas obsidianas me olharem profundamente, banhadas pela meia luz do quarto. A sensação de ausência das mãos que tocavam meu corpo com doçura e desejo, que afagava meus cabelos castanhos entre os nós dos dedos, o abraço apertado e caloroso nas noites de amor, e a quietude que vinha depois. Ele por inteiro seria minha cicatriz, hoje e sempre.
Todas as noites, quando o frio e a escura solidão finalmente me alcançavam, eu olhava para o céu noturno e me pegava imaginando por onde estariam vagando aqueles olhos de obsidiana e se sua brilhante e ocupada pensava em mim. E em todas as vezes meu ar escapava repentinamente dos pulmões, meus olhos transbordavam em angústia e saudades doloridas e eu adormecia, desidratada e cansada de soluçar e lamentar. Passei muito tempo assim, apenas me deixando ser carregada pela correnteza e eu nunca mais soube dele.
Anos depois, eu voltei ao coreto. A chuva caía como naquela primeira tarde. Sentei-me no mesmo degrau, agora mais madura, mais silenciosa. Abri um livro, e entre as páginas, encontrei um bilhete antigo:
“O amor que vivemos não cabe num final. Ele vive nas entrelinhas.”
Sorri ao lembrar daquelas mãos grandes rabiscando os papéis. E deixei que a chuva molhasse o bilhete, como se fosse um reencontro. Ele ainda era minha cicatriz, ainda hoje e pelos dias que ainda estariam por vim.