O Mulato e a Filha do Patrão
Numa região abastada e sertaneja no interior do estado de São Paulo, há um alqueire de terra que ninguém ousa tomar por conta de uma intrigante história que a assombra.
Os habitantes que vivem próximo dali há muito tempo contam que houve uma época em que aquele terreno um dia foi uma das mais exuberantes plantações de cana, produto que foi importante na exportação durante o período imperial e primeira-república brasileira, referência no país.
Mas, misteriosamente, nenhum plantio prosperou mais naquele solo pelos últimos sete anos de vida do proprietário coronel Lourenço de Oliveira, morto em 1926, ali mesmo em sua casa. Não se sabe a verdadeira causa de sua morte, mas há quem diga que houve uma maldição sobre ele e sua propriedade, por conta de remorso.
O que se tem ali agora, ainda nos dias de hoje, é só um casarão de estilo colonial em ruínas tomado por um matagal que chega alcançar o parapeito das janelas do segundo andar. Ninguém mais viveu ali desde então. Mas aqueles que se aventuram por aquele lugar, relatam que durante as noites de lua cheia é possível ouvir os risos de uma criança de cabelos loiros, acompanhada de um homem mulato, correndo e brincando por onde houvera o canavial.
E a triste história de quem eram os dois e o motivo de estarem ali, começa em 1918, no dia em que dois mundos completamente diferentes se encontraram…
……
Tião não tinha o que reclamar de sua vida. Apesar de ter nascido entre a criadagem da fazenda, fazendo desde muito cedo todo tipo de serviço para os Oliveira, vivia mais que alegremente.
Um mulato belo e carismático, conhecido pela cidade por ser um alegre destemido. Sempre muito boêmio, rodeado de amigos e, por vezes, das amantes com quem muito se aventuravam. Não tinha medo de ninguém e zombava dos perigos. Quando não estava acompanhando seu patrão ou cumprindo algum serviço como peão na fazenda, era visto no boteco bebendo, ora tocando viola e fazendo graça.
Muitos diziam que Tião jamais mudaria, por ser do tipo que não se apegava a nada nem a ninguém, somente ao seu trabalho. Mas um dia, isso mudou…
Certo dia, Bianca, a filha única do coronel, estava retornando para a fazenda depois de passar longos anos na capital a fim de concluir seus estudos. Lourenço, que era rígido e muito conservador tanto como homem quanto político, quis garantir a segurança na chegada de sua filha embora não pudesse estar na estação para recebê-la.
Tião, que por vezes atuava como jagunço muito requisitado pelo coronel, se prontificou a aguardar pelo trem. A princípio ele não fazia a mínima ideia de como Bianca aparentava, mas depois que chegou e observando atentamente, sentiu pela primeira vez um temor dentro do peito ao avistar uma bela moça de cabelos loiros e olhos de um cristal tão profundo quanto o luar, descer do transporte. Nunca havia conhecido uma mulher tão bela antes na vida.
E isso era mal…
Levou um tempo, mas decidiu se aproximar. Deveria confirmar e deduziu que talvez aquela seria mesmo a filha do patrão.
— Sinhazinha Bianca…?
— Sim…
A moça respondeu com um breve sorriso.
Ao confirmar, Tião acenou depois de abaixar seu chapéu.
— Vosso pai pediu para buscá-la.
Disse e depois recolheu as malas ali perto, colocando todas debaixo dos braços sem se queixar.
— Certo, obrigada. – E iniciando a caminhada, começou a mover o seu leque rosa para espantar o calor. – E onde o senhor Lourenço meu pai está?
— Na fazenda, ocupado organizando a campanha desse ano.
— Ah, sim…
A resposta não soou nada contente.
E desde então houve silêncio entre os dois até que a garota resolveu fazer uma pergunta ao mulato que, apesar de concentrado conduzindo a carroça, a observava ler.
— Gosta de Casmurro?
— Quem?
Ao ouvi-la, desviou o olhar tentando disfarçar e não se perder naqueles deslumbrantes orbes cristalinos e do riso melodioso que soou de seus lábios carnudos e rosados.
— Dom Casmurro… Nunca leu?
Tião demorou para responder.
— Não sei fazer isso.
— Oh, claro… perdoe-me. – Foi então que ela se deu conta, lembrando que homens como ele não tinham acesso a estudos. — Posso ensiná-lo um dia, se quiser.
O mulato franziu.
— Acho que o coronel não ia gostar disso…
— Ele deveria era deixar de se importar consigo mesmo. – Bianca revirou os olhos indignada, fechando o livro em mãos entre o suspiro. — Por mim, não será problema algum, afinal me formei para isso mesmo.
Ele não quis responder. Na verdade, queria, e queria aceitar pois tinha vontade um dia de aprender a ler, mas não sabia o que dizer pois estar na presença da filha do patrão o deixava nervoso. Para um homem que nunca temeu nada, lidar com sentimentos que nunca pensou sentir antes era uma balança muito difícil de se equilibrar.
Não tinha medo do coronel e o que ele faria se o visse de graça com sua filha, não, mas sim por saber que pertencia a um mundo muito diferente do dela, dois opostos que jamais seriam unidos.
O silêncio voltou a reinar entre eles até que enfim chegaram na fazenda e Bianca foi instruída a aguardar seu pai na sala de estar. Quando Lourenço enfim desocupou seu escritório momentos mais tarde, deu as boas vindas a sua filha.
— Você cresceu muito bem, menina.
Comentou ele depois de abraçá-la, de maneira frígida.
— E o senhor não mudou nada, meu pai.
— Sim, pois ainda mantenho a ideia de que agora tem idade para cumprir com suas obrigações.
— ...Obrigações?
Bianca franziu confusa.
— Sim. Sua vontade de se formar numa faculdade não fazia parte dos meus planos, mas sua insistência nisso me fez pensar que pode se tornar um bom atributo para atrair um pretendente digno.
— Espera, vai me casar? – Arregalou, espantada. — M-mas eu esperava começar a trabalhar como professora, já que acabei de me formar e…
O velho Lourenço aumentou o tom de voz, mais duro do que o costume.
— Pois esqueça isso! Não criei uma filha para ser libertina. Deve se casar para continuar o meu legado, é para isso que está de volta… Ou prefere a deserção?
— Jamais! – Bianca se espantou com aquela ideia.
— Então estamos entendidos. Roberto Alcântara, um amigo da política, virá esta noite para conhecê-la. Esteja pronta a tempo para o jantar, entendeu?
Lourenço esperou por uma resposta em meio ao silêncio da filha, até que ela assentiu cabisbaixa, o que já satisfez o seu pai. Tião olhou toda a cena sentido por ela percebendo o quanto o patrão havia sido cruel, o que era irônico de se importar pois o mesmo era conhecido por agir dessa maneira.
À noite, enquanto o jantar no casarão acontecia, Tião tomava suas doses de cachaça sentado sob o luar da praça, tendo a privacidade que precisava para refletir sobre os lamentos. Ora, para um homem conhecido por sua felicidade inabalável estar naquela condição, algo perturbador realmente o acometia.
Deveria esquecer-se de Bianca, afinal desde quando achou que teria alguma chance?
...........
Era tempo de colheita e o serviço no campo agora era imprescindível. Os peões açoitavam habilmente as canas conforme a demanda exigia logo cedo a tempo da alvorada. Tião estava lá fazendo seu serviço, certamente, mais que disposto e despreocupado. Estava trajado apenas as calça e botinas, enquanto que a camisa estava amarrada como um turbante sobre a cabeça para aparar o suor que escorria devido a exigência do serviço, apesar de não estar tão quente naquela época do ano.
Ele só não esperava pela presença de Bianca que surgiu entre as copas trajada por um vestido branco e simples, enquanto os longos fios loiros esvoaçavam rebeldemente ao vento.
— Oi. – Saudou ela, e ao reconhecê-lo se aproximou com um sutil sorriso.
— Sinhá… Algum problema?
Ele perguntou realmente preocupado.
— Por favor, me chame pelo meu nome ok? – Exigiu ela em gesto de atenção, antes de abraçar os próprios braços e arcar em suspiro. — E não, está tudo bem, eu só… precisava dar uma volta. Desculpe atrapalhar.
— Imagina, não atrapalhou.
Mentiu, mas o mulato voltou a se concentrar no seu serviço de arrancar a cana, apesar de se sentir acuado na presença dela e naqueles malditos olhos de luar.
O silêncio se fez presente entre eles como sempre. Nisso, Bianca decidiu fazer algo e começou a tentar arrancar uma cana pela raiz com as próprias mãos, o que era difícil ainda mais para alguém com uma força tão frágil quanto o dela.
— O que está fazendo?
— Tentando ajudar?
Tião deixou escapar um riso de dentes claros por vê-la passando vergonha. Ele se aproximou e mostrou a ela como cortar usando a ferramenta certa. Quando ela conseguiu fazer sozinha, se vangloriou disso.
Foi só depois que o mulato percebeu que tocava a pele macia e alva dos ombros patroa, coisa que jamais deveria ter feito. Ele se afastou tão rápido quanto voltou a retomar seu trabalho.
Bianca entendeu o que aconteceu e também se sentiu desajeitada por ter estado tão perto de um homem assim. Porém não quis ir embora, não queria aturar o clima ruim dentro da casa das constantes discussões com seu pai.
— Sabe. Nunca mais o vi pela casa... Por acaso andou muito ocupado? rs.. – Bianca continuou a conversa, questionando em tom entretida. — Aliás, nem sequer me respondeu se quer mesmo aprender a ler…
— Acho que já é tarde para querer agora, afinal vai se casar com o amigo do patrão.
Mencionar seu noivado forçado a fez mudar da água para o vinho, desfazendo do sorriso.
— Não desejo me casar com Roberto. Pensava em fazer isso com alguém que amasse de verdade. Mas meu pai não me deu escolhas…
— O patrão teve suas razões.. mas acho que deveria ter sido menos duro.
— Ora, ora, quem diria… você, discordando dele?! Logo você, o capataz do coronel Lourenço de Oliveira...
Bianca zombou do criado e o mesmo se franziu com indignação, preocupado com o que ela estava dizendo com isso. Tão ingênuo que não percebeu que ela estava usando isso a favor de uma brincadeira.
— Ei, não falei nada disso!
— Olha, tive uma ideia… Posso te ensinar a ler e escrever e eu prometo que não vou contar pra ele o que você discorda. Só precisaremos ser discretos.
Ela esticou a mão e o mulato hesitou a princípio, desconfiado se seria uma boa ideia.
— E onde vamos fazer?
— Aqui mesmo, às noites, naquela tenda… O que me diz?
Tião não demorou demais dessa vez e aceitou o contrato, e logo a noite daquele mesmo dia, as aulas começaram. E foi assim, noite após noite, durante semanas até que ficaram mais próximos. Tão próximos que foi impossível não crer que o sentimento que possuíam um pelo outro era tão arrebatador quanto proibido.
A situação ficou tão insustentável que, certa noite, o mulato surgiu na tenda apenas para avisá-la que não continuariam mais se encontrando, pois confessou estar apaixonado e a lembrou o quão errado isso soava. Bianca ficou tão devastada que chorou, e entre a lágrima escorrendo sobre a pele alva e corada também confessou seu amor.
Os dois eram cientes de seus fardos, mas arrebatados por tamanha atração, não se arrependeram jamais por se entregar um aos braços e lábios do outro, entrelaçando seus corpos sob a luz do luar na sua forma mais pura, nua e crua.
...........
Coronel Lourenço podia ser cego de um olho devido a um incidente que ocorreu durante seu tempo como militar, porém ele não era um homem para se subestimar demais por ser tão esperto quanto velho. Nada passava despercebido sobre o que acontecia em torno de suas preciosas terras.
Bianca e Tião conseguiram omitir o romance por um bom tempo, mas uma hora ou outra, os criados mais curiosos iriam cochichar sobre esses encontros e a fofoca alcançaria os ouvidos afinados do patrão de alguma forma. Pois foi o que aconteceu, logo a poucos horas do casamento de Bianca e Roberto acontecer.
— Aquele preto imundo!!! – Gritou enfurecidamente, derrubando toda a porcelana francesa e outras coisas que que jaziam sobre a mesa de jantar. — Como ele pôde cometer essa perversidade pelas minhas costas?!?!
— Papai! – Bianca, que, naquela manhã, havia reforçado sua decisão convicta de uma vez por todas de não se casar, jamais esperaria por aquela reação a respeito de seu caso com Tião. — Ele não tem culpa de nada disso. Eu é que nunca desejei esse casamento!
— Mentirosa! Eu sei muito bem o que você queria, sua cria do diabo… Queria é me matar de desgosto, pois é o que sempre fez! – A loira se espantou pelas palavras de seu pai em plena cólera. — Eu vou matá-lo!!!
— Papai, não!!!!
Lourenço rompeu pelo casarão afora com passos pesados. Bianca o seguiu tentando impedi-lo agarrando braço, roupa ou qualquer coisa que o faria parar. Sem muito sucesso, porém, o coronel desembainhava a sua inseparável pistola .45mm do coldre da calça à procura de seu criado traidor.
O mulato naquele momento se encontrava no depósito do engenho conduzindo a máquina à manivela até que ouviu os gritos ao longe. Curioso, decidiu sair e dali da porta já avistava a figura de seu patrão e de sua amada entre o corredor das copas de cana.
Podia adivinhar nesse mesmo instante pelo que se tratava todo aquele alvoroço, mas o mulato não fugiu. Ele não tinha medo do coronel nem do que era capaz de fazer, e estava ciente do que fez foi um crime imperdoável.
— Você vai pagar caro pelo o que fez, seu preto sujo desgracado!!! Como ousa manchar a honra da minha filha?!?!?
O velho coronel apontou a arma na direção do mulato.
— Papai… pare, por favor… ele não fez nada!
— Atire.
Tião o desafiou de mãos erguidas em rendição.
— Não! Tiãaaao!!
Bianca berrou em desespero.
E o disparo foi dado na direção do mulato, porém a loira foi rápida em se jogar na frente de seu amado, acabando por ser o alvo, um ato que nenhum dos dois esperava acontecer.
O tiro atingiu a moça pela barriga, mas tão perto de seu amado, a bala atravessou atingindo também o corpo de Tião atrás de si. Com isso, os dois foram jogados juntos no chão.
— O que…?!?
Lourenço deixou a arma cair de sua mão entrando em choque sem acreditar no que acabou de acontecer.
— Bianca! – Tião se apressou a ajudá-la como possível, e não acreditou que o sangue manchado em seus dedos não era o seu e sim o dela. — Chame logo ajuda, sinhô! Ela vai morrer!
Tião gritou para o outro em lamento.
— Não, Tião… me perdoe, eu... – A garota tossiu em meio a fraqueza, da vida se esvaindo.
— Shhh, não diga nada… – interrompeu acariciando o moreno polegar sobre os lábios alvos, suavemente. — Nossas vidas já estavam mesmo condenadas.
— Então que esta seja a nossa salvação. E a de nossa criança… também…
Bianca deixou aquela no ar, dando um suspiro para logo seus orbes de luar se fecharem. Tião arregalou até que soluçou copiosamente deixando sua cabeça pender sobre a testa dela, quando percebeu que não havia mais vida na sua amada. O moreno logo veio a morrer momentos depois, afinal havia se ferido também.
Aquela altura, o coronel já havia retornado ao casarão para agir na emergência como pôde, mas sendo ele um homem insensível, em momento algum chorou por sua filha. A lágrima só veio a rolar em seu enrugado rosto anos mais tarde, em estado vegetativo sobre sua poltrona, solitário, frente à grande janela do segundo andar, que lhe dava a vista do que um dia havia sido seu recheado canavial – agora um grande campo vazio, sem vida e infértil.
Foi o seu próprio orgulho que o matou…
E foi naquele momento, moribundo, que presenciou os risos alegres da criança loira de mão dadas com o mulato, assim como muitos vieram a relatar posteriormente em histórias de terror.
Fim.