Durante sua vida, Julieta foi uma mulher pertencente à aristocracia mexicana sendo muito invejada e desejada por sua beleza ímpar, especialmente pelos seus profundos olhos azuis-celestes. Mas em contrapartida, era também uma mulher muito vaidosa, arrogante, ambiciosa e malandra oportunista.
Nascida pobre em uma pequena vila remota no interior do que hoje é conhecida como a cidade de Tihuana, desprezava aquele estilo de vida sonhando um dia se casar com um homem rico para viver no conforto do luxo. Um objetivo que cumpriu com sucesso ao conquistar o amor de Hector de La Ventura, um viúvo comerciante muito rico que vivia na capital, Cidade do México, que também foi um influente político a favor do partido conservador do império mexicano em medos do século XIX.
Julieta durante muito tempo não se importou em fazer nada mais em sua vida do que desfrutar de festas, suas jóias e seus importados vestidos vitorianos entre outras futilidades. O que não tinha nenhuma dificuldade de obter de seu marido, mas Hector muito lhe cobrava de apenas uma coisa: de que lhe desse filhos.
A princípio ela ignorava esse pedido, dizendo que quando fosse a hora, iria acontecer. Mas os anos passavam e Hector já era um homem de certa idade que temia por não conseguir deixar herdeiros para continuar seu legado antes de morrer. Essa frustração só o fazia se sentir mais desgostoso com seu casamento até que, certo dia, tentou tomar uma decisão que fez Julieta agir com muita imprudência.
O início de toda a sua maldição…
Um calor insuportável pela campina de Campo Santo, fez a senhora de La Ventura acordar bem mais cedo que o costume naquela manhã. Julieta resmungou logo cedo, sentindo uma ressaca latente batendo ruidosamente na cabeça. Julieta se arrependeu nesse instante de ter exagerado no vinho na noite anterior.
— Buenos días, señora Julieta. – Saudou uma criada que surgiu no aposento logo quando a patroa despertou, arrancando um asco de sua parte. — Perdoe-me, mas o señor Hector pede que compareça no escritório, imediatamente.
— Diga a ele que estou com alguma indisposição no momento, Dona.
Desdenhou a criada enquanto se sentava sob a penteadeira e começou a escovar seus ondulantes cabelos e admirando consigo mesma.
— Mas, señora, é o tabelião… Ele está aqui!
Julieta arregalou-se e jogou um olhar incrédulo à criada, muito preocupada com o que a presença de um tabelião podia significar. E, na pior das hipóteses, o que se tratava definitivamente não era nada bom…
Julieta exigiu que Dona a ajudasse a pôr uma roupa mais adequada, e, assim feito, apressou o passo atravessando pelo casarão até a biblioteca, onde encontrou Hector em prosa com um senhor sentado à mesa, redigindo um documento. Certamente era o tabelião da cidade.
— Julieta…
Hector a saudou com formalidade, gesto que vem sendo tratado por ele nos últimos meses. Já parecia que nem eram marido e mulher mais.
— Señores… – Mantendo a compostura sob controle, os cumprimentou. — Pois então, meu marido, o que é tão urgente?
— Pois serei direto. Pedi a presença de dom Martino, para que ele formalizasse a um requerimento a meu pedido… de desquite.
— Desquite…?
O ar faltou no peito de Julieta e ela sentiu vontade de chorar. Não podia acreditar, mas estava acontecendo o que mais temia.
— Pela lei, – manifestou o tabelião tomando a palavra, — o marido tem direito a anulação do matrimônio na falta de descendentes. Como não houve nenhum filho em registro, o senhor de La Ventura está no seu direito em exigir um desquite.
— Não pode fazer isso, Hector…
A mulher cerrou os punhos com força e choramingou pela misericórdia do marido.
— Lamento, Julieta, bem sabe o quanto gostaria que fosse de outra forma. Mas serei piedoso, lhe deixarei a terra das colinas de Saragoia para que não fique desamparada e…
— Não pode!!! – Ela berrou no desespero, mas tentando conter o nervosismo sem parecer uma maluca, precisou inventar no que dizer. — Não pode, pois acabo de descobrir nesta manhã que estou grávida.
Mentiu, mas fez parecer autêntico de que estava grávida pondo a mão na altura de seu ventre.
— Isso é… verdade?
Hector não poderia estar mais impressionado em ser esperançoso, sendo surpreendido com a novidade. Julieta então reforçou sua mentira ao descrever alguns dos sintomas de uma gravidez, chegando a comprometer sua criada como uma testemunha de seu álibi, confirmando que as suas indisposições eram os sinais.
Certamente que Hector ficou contente e com isso desistiu de prosseguir com a assinatura do documento de divórcio. Julieta tinha o amor e o bom tratamento de seu marido novamente, tornando a recheá-la com os presentes que mais adorava, flores e jóias.
No entanto, deveria saber que estava metida em uma grande encrenca, pois os riscos de ser pega na mentira eram maiores desta vez. Usar a desculpa de um aborto espontâneo tempos atrás fez Hector tomar todas as precauções agora. Julieta foi impedida de manter seus maus hábitos e seria colocada constantemente sob cuidados médicos para garantir uma boa gravidez.
Por sorte, o médico que ficou responsável em fazer os primeiros exames, mesmo certo de que não existia nenhuma criança em seu ventre, foi convencido a mentir no diagnóstico graças às facilidades dela em seduzir até mesmo os homens mais incorruptíveis.
Mas ela sabia que deveria descobrir logo uma maneira de tornar aquilo verdade. Para o seu caso, talvez só um milagre.
E se não Deus para isso, somente uma pessoa podia…
Madre Miranda.
………
Julieta já tinha ouvido falar daquela mulher uma vez, enquanto vivera na zona suburbana da cidade antes de conhecer Hector.
A igreja local sempre repugnava durante as missas a respeito de uma seita herege composta por seguidores de uma mulher, que se dizia ser a própria Maria de Guadalupe (Virgem Maria mexicana).
Mas os boatos que se espalharam entre o povo das ralés mais sinistras, é que seus "milagres" de fato seriam reais… Desde de cegos voltarem a enxergar até de ressuscitação de mortos. Certamente que tinha poder de atender o apelo de Julieta.
Ela só esperou a oportunidade em que Hector estaria dois dias fora da cidade a respeito de negócios, para fugir da casa e procurar pelo local onde essa tal "santa" vivia. Logo a noite, foi conduzida por um carroceiro até um rancho bastante isolado no meio de uma floresta, onde só havia uma grande cabana de madeira estilo capela. Chegando lá notou que já havia uma fila de algumas pessoas, todos pobres e moribundos de alguma maneira, esperando por um atendimento com a Madre.
Julieta se sentiu repugnada ao ver uma velha senhora com alguma doença de pele horrenda, deixando a aparência dela cadavérica e tomada por bolhas, como uma praga. Esse tipo de doença estava ficando bem comum, e parecia não ter nenhuma cura, e claro, ninguém ousava chegar nem perto.
— Preciso falar com Madre Miranda… é urgente.
Julieta, agindo discreta sob um véu branco sobre a cabeça para não chamar atenção, atravessou o corredor até o altar, e falou com o vigia que controlava a passagem de quem entrava e saia através de umas cortinas.
— Doña, todos que estão sentados também desejam por isso. – O sujeito não agiu muito gentilmente. — Aguarde sua…
— Deixe ela entrar, Guzmán, pois está me é uma convidada muito esperada…
Uma voz feminina soou através da cortina, fazendo o vigia se calar e ergueu uma parte da cortina e dar a passagem. Assim, Julieta atravessou deparando-se com um cômodo grande e muito decorado. Muito, muito decorado mesmo, como uma diversidade de itens antiquados entre o colorido e o mórbido.
Julieta não viu ninguém ali, mas ficou mais tentada em notar como haviam muitas caveiras por ali, de diversos formatos estrategicamente espalhadas em um canto ou outro.
— Julieta Castilho de La Ventura… não imagina o prazer de recebê-la em minha santa casa.
Madre Miranda surgiu quando a outra menos esperava. Julieta arregalou ao se deparar com a figura feminina vestida com um longo bordô negro sob um manto de cabeça rendado de mesmo tom. Sobre sua cabeça, uma coroa de rosas vermelhas e folhas de louro prateadas. Mas o que foi assustador mesmo, era a máscara negra no lugar de seu rosto, uma parte de uma caveira adornada com pedras preciosas entre rubis, safiras e diamantes encravados no osso. Madre Miranda parecia ser uma La Catrina bem mais sinistra e autêntica.
— Como sabe meu nome…?
— Eu sei muitas coisas sobre você, amada filha. Inclusive pelo motivo que está aqui.
Miranda tinha uma voz doce e serena como de uma bondosa senhora mãe, e seus gestos delicados sempre unidos na altura do peito. Julieta a princípio estava cética, quis testá-la.
— Então pode realmente me ajudar?
— Certamente que posso. Mas deve se lembrar que para conseguir o que deseja obter de mim, o pagamento será muito alto…
— Pagarei o preço que for. – Julieta jogou um saco aos pés de Miranda, que se abriu revelando o brilho de algumas das jóias que ganhara durante sua vida. — É o suficiente?
Miranda olhou e pouco depois se moveu, mas não para pegar as jóias no chão e sim para avançar o passo, atravessando por cima do saco e se aproximando da outra. Ela tocou no rosto de Julieta com ternura.
— Todas as jóias e dinheiro no mundo não pagam pelo quê a verdadeira natureza tem a oferecer… – dizia, e desfazendo do toque começou rodear em torno de Julieta. — Deus criou o mundo na sua mais pura forma, da própria natureza de sua essência. Mas os homens se corromperam e perderam essa pureza… No entanto, há maneiras infinitas de recuperá-la. Mas para tê-la de volta, é preciso uma troca.
Madre Miranda tornou para a sua posição inicial, antes de concluir. Julieta mal havia se mexido de seu lugar, estava intimidada demais. Mas também ficou muito fascinada, não sabia bem como explicar.
— Que tipo de troca?
— Se tirar da natureza, deve assim devolvê-la… A condição infértil tua e do teu marido foram retirados pelas próprias corrupções de vossas almas. Se deseja gerar filhos, então ambos devem se entregar para a própria natureza.
Julieta engoliu em seco, não entendendo bem o que queria dizer com aquilo.
— E como faremos isso?
— Simples. Você e Hector devem tomar essa poção antes de se deitar com ele, em prazer.
Madre entregou um pequeno frasco com algum líquido incolor dentro, Julieta estranhou franzindo pelo modo de ser tão simples.
— E o que devo dar em troca?
— Saberá no dia em que voltaremos a nos encontrar… – De repepente Miranda surgiu perto do pé do ouvido de Julieta e sussurrou morbidamente… — Daqui a três anos.
Julieta sentiu um arrepio de terror tomar a espinha e tremeu com isso, quando seu conta de si em seguida já havia retornado para casa, encarando o frasquinho em mãos. Muitas vezes ela ficou na dúvida a respeito de tudo o que viu, chegando a crer que Madre Miranda foi apenas uma coisa da sua imaginação. Mas o frasco estava ali, ali estava a prova… O que certamente resolveu se certificar quando Hector retornou de viajem.
Julieta serviu em um chá em agrado ao marido que reservou-se em outro aposento para resguardar a saúde de Julieta.
— Deveria estar na cama, mi cariño.
Hector sermou ao vê-la invadindo o quarto com uma bandeja de chá em mãos. Ela o encontrou lendo à cabeceira, já em seu traje de sono.
— Não irá acontecer nada ao nosso bebê se eu for uma esposa amorosa.
Refutou com certa graça nas palavras antes de beber sua xícara, no fim o mesmo bebeu do chá deixando de se preocupar quando a botou trajada de sua camisola rosada, a mais fina e sugestionável. Hector amava vê-la naquela peça, pois fazia lembrar do tempo em que se apaixonou por ela, quando a viu pela primeira vez.
Não houve dúvida que, Julieta, sempre sabendo usar seu charme, acabou por terminar a noite nos braços de seu marido, nus. Agora, apenas bastava aguardar pela verdade.
Dito e feito.
O médico retornou para diagnosticá-la tempos depois, e se surpreendeu em dar como resultado uma gestação já bem avançada. Julieta não podia estar mais impressionada, pois Madre Miranda realmente havia feito um milagre.
…………
Os meses seguintes fizeram da gestação de Julieta um marco realizador, não apenas para Hector que se enchia de expectativas assim como para Julieta que se descobria uma mãe apegada com a espera.
Para alguém que nunca se importou com nada a não ser apenas a bens materiais, era um avanço na maturidade e tanto.
E os gêmeos, uma menina e um menino, vieram no tempo certo e com uma saúde invejável. Hector não poderia estar mais do que estonteante e a nova mamãe, aliviada, sabendo que seu sonhado casamento agora estava salvo, e garantido.
E durante os três anos nada abalou aquela família, os negócios do marido chegaram a melhorar significativamente. Apesar de muitas coisas melhorarem, certos maus hábitos não se perderam, pois os interesses ainda eram importantes. Até que, depois de darem um passeio pelas ruas de Campo Santo, Julieta avista aquela senhora com a doença de pele medonha, encolhida do outro lado da rua, afastada da população. A mendiga parecia ter reconhecido Julieta também, pois ficaram se encarando um bom tempo antes da senhora apontar com o indicador na direção dela.
— Ela está vindo… e tomará vossas vidas como pagamento por vossos pecados! Ouça o que eu digo.. Ouça!
Julieta arregalou-se, sabendo exatamente de quem aquela mendiga dizia. Hector questionou com repúdio a atitude, e Julieta informou ao marido que precisavam ir até a igreja, urgente. O homem, não sabendo exatamente o que isso significava, deixou ter seu braço tomado pela esposa fazendo-o correr acompanhando-a até lá.
Conversando com o padre, ele descobriu o porquê. A esposa sabia onde se localizava o esconderijo da "criminosa" Madre Miranda, e, não demorando ainda naquele dia, um mutirão de religiosos munidos de tochas e armas de diversos tipos, invadiram o rancho e incendiaram tudo, sem nenhuma piedade.
Agora tudo estava em plena paz, tanto para as diferenças religiosas quanto para a sanidade daquela família. Quando voltaram para casa, ele não insistiu em saber como Julieta conheceu essas informações, pois ela se recusou a contar mesmo depois de, durante a noite, quando foi acometida por um terrível pesadelo que roubou a paz da mulher. A imagem diabólica de Madre Miranda, que ao invés de véu e rosas sobre a cabeça agora era tomada por chamas e chifres, aterrorizou Julieta açoitando-a pelo erro que cometeu ao tentar livrar-se de sua dívida.
“O que eu estou fazendo é pouco perto do sofrimento que irá passar de agora em diante, pois eu lhe disse: a natureza dá, a natureza toma!”
Julieta despertou transtornada e desse dia em diante, tudo virou ruínas. Logo em poucos dias, Hector faliu drasticamente. A família de La Ventura perdeu tudo. Em poucos dias, não sobrou nada – nem mesmo aquele velho terreninho inóspito em Saragoia. Julieta foi obrigada a vender seus presentes caríssimos para ter um mínimo de sustentação sobre seus filhos e também da casa por um tempo, mesmo logo depois de Hector falecer por um mau súbito sem explicações.
A vida de Julieta agora como viúva estava mais do que amaldiçoada, mas ela não esperava pela terrível doença de pele – a mesma horripilante daquela mendiga – começar a brotar tão rápido quanto ela chorava de desespero. Julieta chegou a tentar se disfarçar sob diversos mantos e véus, mas decidiu nunca mais sair da casa e se isolar com seus filhos, que por sinal também começaram a ser infectados.
Nesse momento ela entendeu que seria inútil tentar lutar contra o inevitável.
Olhando para seus dois filhos chorosos pela doença incurável que começava a brotar, ela não viu outra saída. Sem condições mentais nem de poupá-los, ela os afogou sob a água da banheira, como uma sádica fria. Quando não sobrou mais nenhum resquício daquelas duas pobres vidas, Julieta atravessou o corredor do segundo andar absorta por lágrimas dolorosas e inconsoláveis, e não demorou a hesitar em se jogar da sacada, tirando de vez assim sua própria vida...
Dizem que o choro de Julieta podia ser ouvido por toda a campina, um choro tão agonizante e sinistro, que podia ser ouvido por repetidas noites, aterrorizando tanto as pessoas quanto as histórias que atravessaram épocas, até os dias de hoje.
Fim.