A chuva corria forte lá fora. De minha janela, no topo do meu castelo, podia vê toda a chuva molhar minhas flores no jardim. Um jardim do qual era meu refúgio fluorescente de cores sem sentido e solidão. Em mim, uma máscara que eu jamais ousaria tirar, um silêncio e palavras não ditas que formavam um sussurro em minha mente sem fim. Vaga-lumes com suas lindas luzes debaixo das roseiras e gotas que caíam sem cessar por todo o chão. Ao olhar, vejo um reflexo de mim mesma. Eu sou um vaga-lume, daqueles que observam as roseiras felizes com a chuva, enquanto eu não posso sair para não me molhar, pegar um resfriado e me adoecer mais.
As peônia e Lírio-da-paz, então,
tão deslumbrantes, mas que eu nunca ousei tocá-los. Acho que eu sou mais um cacto. Não posso ser abraçado. Ou talvez eu possa ser um cravo. Não sei ao certo, pois nem lembro da minha verdadeira face.
Enquanto observava, com meus olhos cheios de olheiras fundas, eu o vi pular o muro do meu jardim. Um garoto que eu chutaria ter a mesma idade que a minha, talvez um ano mais velho ou um a menos. Não sei ao certo. Ele estava todo encharcado com toda aquela tempestade. Ele se aconchegava como podia no meio daquelas flores, tremendo como se o corpo dele lutasse para se manter vivo. O frio lá fora não estava amigável, mas eu não sinto pena dele. Ele talvez fez por merecer essa chuva intensa em cima dele. Eu me viro de costas para a janela, mas, antes que eu possa da mais algum passo, eu escuto uma voz ressoar de forma trêmula em minha direção:
— Ei, você aí!
Eu me viro, olhando para baixo. Foi aquele garoto que gritou, mesmo com sua fala prejudicada pelo frio. Eu coloco meu rosto em frente à janela e vejo ele levantar, vindo em minha direção, enquanto tenta dizer algo:
— Por. Favor. Me. Ajuda. Eu não tenho. Para onde. Ir… — Suas palavras saem de forma soletrada, enquanto ele cai logo à frente.
Eu não deveria ajudar um desconhecido. Nem sei quem é ele. Mas deixá-lo congelar nesse frio no meu jardim até a morte não é uma boa opção. Eu me viro em direção ao meu guarda-roupa e o abro, pegando um cobertor quente. Vou até a janela, abrindo e jogando o cobertor em sua direção.
— Muito. Obrigada. Moça!
Ele fala enquanto pega o cobertor e corre até o gazebo para se cobrir da chuva. Agora eu posso ir deitar. Fecho a janela e vou para a minha cama, esperando mais um dia que o sol irá nascer.
Não demorou tanto para chegar o novo dia. Talvez eu já esteja acostumada com a insônia em meio à noite e madrugada. Ainda com a claridade do dia baixa, eu desço até o jardim para olhar minhas flores depois da tempestade da noite passada. No gazebo, está o cobertor dobrado, ainda húmido, mas acho que foi de boa serventia, mesmo um pouco molhado pelo sereno que pegava ainda aqui embaixo. O garoto não se encontrava mais no local. Então arrumei tudo com calma e fiquei o dia ali, esperando a noite vir. E ela logo chegou, novamente, monótona como sempre. A mesma rotina. Quando eu estava voltando para dentro daquele castelo, ouvi alguns arranhões do lado de fora e palavras que não conseguia deduzir. Então me escondi em alguns daqueles arbustos que havia no jardim e aguardei. Não demorou muito e um rosto coberto de terra surgiu logo acima do muro. Era um garoto, e ele pulou para dentro do meu jardim. Aquelas roupas gastas não me eram diferentes… Era o mesmo garoto da noite anterior. Ele foi direto para a fonte e começou a se lavar, tirando toda aquela terra do seu rosto. Eu tentei me aproximar, ainda por dentro dos arbustos, para conseguir vê-lo, mas, por um descuido, tropecei e caí para fora deles.
— Oh, é você?
Apenas o olhei, sem dizer uma palavra, enquanto levantava.
— Machucou? Deixa que eu te ajudo.
Ele se aproximou de mim, colocando suas mãos no meu braço, mas eu me afastei dele em silêncio, levantando sozinha.
Ele deu um passo para trás, um pouco sem jeito.
— Desculpe se fui invasivo. Assim, invasivo eu estou sendo mesmo. Estou dentro do seu jardim. — Ele deixou sair um sorriso desajeitado.
— Bom, você é a garota da janela, certo? Muito obrigada pelo cobertor.
Eu apenas o olhava em silêncio.
— Você não fala? Consegue me escutar?
Eu assenti com a cabeça duas vezes, pois, mesmo querendo muito respondê-lo, já fazia tanto tempo que eu não falava com alguém que eu não conseguia deixar palavras saíram de dentro de mim.
— Ah, então, eu me chamo Zayn! É um prazer conhecê-la. Não nos conhecemos de uma forma muito convidativa para uma amizade, mas eu não sou tão sem noção como aparento ser.
Eu o olho diretamente em seus olhos e saiu para dentro do castelo, sem dizer uma única palavra. Ao entrar no meu quarto, fico em transe, pois já faz um ano que não tenho contato direto com pessoa alguma. Depois que meus pais faleceram, eu convivi algumas vezes apenas com meus irmãos. Eles que cuidam de tudo. Eu sou apenas uma garota qualquer com uma coroa nesse mundo de famílias poderosas que dominam tudo sem se preocupar com os outros. Mas eu não sou diferente deles. Eu também não me importo. Não quero ouvir, falar e muito menos sentir. Inconsciente, ajudei alguém, mas não sinto diferença nisso. Eu apenas não queria ver um corpo sem vida dentro do meu lugar de conforto. Novamente eu fui deitar e aceitar mais um dia repetitivo se formar.
O dia amanheceu com o sol mais forte dessa vez. As flores desabrocharam melhor. Dessa vez, o garoto estava dormindo ainda no jardim, o que era estranho. Fui até lá certificar que ele não tinha sucumbido no frio da noite passada.
Me aproximando dele, sinto sua respiração quente, mas ele estava fora do cobertor. Então o acordei, batendo o cobertor nele.
— Ei! Calma! — Disse ele, enquanto levantava, apressado — O que foi isso? Sei que estou errando em dormir aqui, mas não precisava me bater. Doeu.
Por algum motivo que eu não conheço, eu acabei soltando um riso desajeitado.
— Isso foi uma risada? Nossa, acordou de bom humor e com força para bater alguém. Tudo bem. Agora irei indo.
O vejo escalando o muro, mas ele parecia mais abatido que ontem à noite. Então algo inconscientemente saiu:
— Oi.
— Você falou? — Com sua voz e aparência espantada. Ele sentou-se em cima do muro e ficou me olhando enquanto acenava — Oi! Você realmente sabe falar. Eu achei que você só escutava. — Falava com um sorriso que irradiava no sol.
— Está com fome? — Falei sem jeito.
— Oh, um pouco. Estou saindo para comer agora. E você? Não está com fome?
— Sim.
— Então vai comer! Nesse casarão, eu duvido muito que não tenha comida, princesa.
Sinto meu rosto esquentar de vergonha quando ele me chamou de princesa, mas conseguir conter, pois lembrei: “eu sou uma princesa”, mesmo não achando isso, pois princesa são felizes ou têm um final feliz. E eu não acho que eu conseguiria ter.
— Tem. Você vai comer onde?
— Vou procurar por aí. — Contou ele, depois de dar uma pausa antes de falar.
— Ah. Tchau! — Me despedi, enquanto caminhava para dentro do castelo, dando-me de costas para ele. Mas escuto ele dizer: “Até mais tarde, princesa.”
Depois de muito tempo, eu pensei em cozinhar algo e assim fiz, ainda meio sem jeito com talheres, fogo e cortes. Fiz ovos mexidos, torradas e alguns legumes que já estavam com uma cara ruim, mas arrisquei cozinhá-los.
Fritei algumas cebolas, tomate e couve-flor. Fiz os ovos mexidos e as torradas.
Tomei café e tentei escalar o muro para ver como era do outro lado. Fazia mais de um ano que não olhava a cidade, ao não ser por trás daquela janela de vidro escuro. As pessoas passavam pela estrada, ainda longe do castelo, mas dava para sentir o sorriso delas. Crianças correndo com seus pais e irmãos. Até os cachorros recebiam carinho pelas pessoas que passavam. Enquanto isso, eu perdia minha vida ali dentro. Ali, naquele momento, foi quando eu descobri que tinha uma doença sem fim. Meu corpo já estava apodrecido por dentro.
Eu percebi que não era apenas vitimismo. Eu realmente sentia que eu poderia morrer, e nada mudaria. Ninguém sentiria. Eu estava sozinha. Me abaixei e chorei ali, escondida novamente. Mas qual seria o sentido de manter tudo isso? Eu já estava cansada de tudo isso há muito tempo. Eu estava apenas existindo, e eu não queria mais isso.
Corri pela aquela estrada, em meio à chuva que começou a cair sem nenhum aviso ou previsão. Ela molhava os meus pés. Então parei e caí de joelhos, clamando por uma salvação, pois eu estava perdida. À minha frente, tinha um enorme mar, e suas ondas estavam agitadas. Nessa hora, pensamentos sóbrios percorrem a minha mente. Um “E se” começou a se formar. Mas eu recebi algo mais; você apareceu e brilhou para mim, como se eu não estivesse em trevas.
Seu sorriso, tão lindo quanto diamante, mostrou que poderia não ser o fim de uma vida, mas o fim de uma fase ruim. A partir daquele momento, outra frase surgiu: um “Não vai embora. Fica aqui.” Pois o que mais me perturbava era a solidão de viver uma vida sozinha e sem ninguém. Sem ter com quem contar e nem conversar. A dor do abandono e solidão são uma das piores dores que um ser humano, que nasceu para viver em conjunto, pode sentir.
Meu coração e alma ansiavam por alguém que ficasse, mesmo quando me visse em trevas.
E assim você fez. Você ficou.
— Princesa, o que aconteceu? Por que você está aqui? — Ele me olhou com um rosto de pena, mas com vários sentimentos misturados.
— Eu não sei. Eu não sei. Apenas sair andando. — Minha voz enfraquecida e perdida ecoava junto com o barulho da chuva que batia no chão.
— Vamos. Eu te levo para casa. — Ele segurou em meus ombros e me ajudou a levantar, e me levou junto a ele para aquele lugar.
— Por que você não abre a porta?
— Só entrou coisas ruins, quando eu abri. Meus pais saíram e não voltaram mais.
— Vamos pular o muro, então.
Ele me ajudou a pular, e eu o convidei para entrar.
— Tem certeza que eu posso entrar?
— Sim, por favor.
Entramos e eu fui pegar algumas toalhas e cobertores para ele se enxugar.
— Obrigada. Se não fosse por você, eu não sei o que teria acontecido.
— Não precisa agradecer. Eu sei o sentimento da solidão, e sei da sua história também.
— Minha história? — Perguntei, em dúvida.
— Bom, a princesa Myla, que foi esquecida depois da morte dos seus pais. Seus irmãos foram gananciosos e ficaram com tudo, enquanto você apenas se prendeu aqui sozinha. Não deve ter sido fácil para uma adolescente de dezessete anos.
— Não mesmo. E você? O que aconteceu com você? Se quiser falar, claro.
— Meus pais morreram quando foram pescar. O barco virou e eu fiquei aqui sozinho. Morávamos de aluguel, mas eu não consegui pagar e fui despejado. Por isso dormir algumas noites no seu jardim. Desculpe-me.
Depois de tanto tempo, eu vejo que a minha vida não era a mais infeliz. Ele sofreu tanto quanto a mim…
— Me desculpe por não tê-lo ajudado.
— Você me ajudou! Geralmente, moradores de rua são tratados como lixo. Você ainda me entregou um cobertor. Me senti até importante. — Ele solta uma risada enquanto enxugava o seu cabelo.
Depois que nós enxugamos, fomos cozinhar algo para comer. E dormimos ali mesmo, na sala, depois de comermos dois lamen com ovos. O dia amanheceu diferente dessa vez. Eu havia dormido uma noite inteira depois de chorar bastante e comer. Eu comecei a ouvir, falar e sentir. Principalmente sentir. Aquele garoto, cuja alma foi machucada, me trouxe a luz de volta que um dia eu perdi. Ele olhou para minha alma machucada e disse: “Estou aqui.”
Agora que ele veio até mim,
meus dias tornaram-se felizes. Duas almas solitárias, em um corpo com apenas 18 anos, recomeçando a vida com o apoio um do outro. Pois, às vezes, o que mais precisamos é de alguém que fique, e nós ficamos, depois que nossas almas tiveram seu reencontro nesse corpo e nesse mundo.