Era apenas um sussurro no começo. Algo quase doce, como o tilintar de taças num jantar à luz de velas. O tipo de coisa que se confunde com carinho, com cuidado. Mas cuidado demais é controle disfarçado.
“Coloca essa blusa, amor, você sabe que não gosto quando te olham.”
“Você parece cansada, não precisa sair com suas amigas hoje.”
“Se me ama mesmo, por que precisa de mais alguém além de mim?”
Camila acreditou. Acreditou porque queria amar, porque o amor às vezes parece uma dívida. E Rafael sabia disso. Ele tinha o tipo de presença que tomava espaço, como água invadindo frestas, entrando em cada canto da mente dela. Até que ela se acostumou a respirar menos.
Os dias viraram semanas, as semanas, meses. As janelas da casa pareciam menores. A luz do sol já não alcançava direito o chão da sala. Ela não lembrava da última vez que riu sozinha. A casa estava sempre limpa, porque Rafael gostava de tudo em ordem. A bagunça o irritava. Ele nunca gritou — não precisava. O silêncio dele doía mais do que qualquer tapa.
Às vezes, Camila achava que sonhava com gritos. Acordava suando, com a impressão de ter alguém parado na porta do quarto. Rafael dormia tranquilo, braços ao redor dela como algemas de carne.
Um dia, encontrou um caderno escondido entre os livros antigos. Era dela. Letras trêmulas, páginas manchadas. Uma frase se repetia ao longo das páginas como um mantra esquecido:
“Essa casa não é minha. Esse corpo não é meu.”
Ela não lembrava de ter escrito aquilo.
Camila começou a ouvir sussurros nos espelhos. Vozes suaves, femininas, como se as versões antigas dela — aquelas que riam alto, que usavam vestidos amarelos e dançavam na rua — estivessem presas ali dentro, tentando escapar. Ela trancava a porta do banheiro para ouvir melhor. Um dia, uma delas disse:
“Você está desaparecendo.”
Quando contou a Rafael, ele sorriu. Um sorriso leve, perigoso.
"Meu amor, você está ficando louca. Talvez devesse parar com esses livros... com essas ideias."
Naquela noite, os espelhos foram cobertos com lençóis.
Camila começou a escrever bilhetes para si mesma. Escondia dentro dos bolsos, no fundo da geladeira, entre as páginas do calendário. Frases como:
“Você é real.”
“Ele não te ama. Ele te molda.”
“Lembra de quem você era.”
Mas os bilhetes sumiam. Sempre. Como se a casa os engolisse. Como se Rafael os encontrasse antes.
O ponto de ruptura veio em uma noite chuvosa. Camila estava na cozinha, a faca na mão, olhando para uma maçã. Só uma maçã. Mas ela tremia. Porque se sentia observada. Porque escutava passos — e Rafael dizia que estava dormindo.
Quando virou-se, viu algo no corredor. Uma sombra. Uma mulher. Olhos fundos, roupas manchadas. Era ela mesma. Uma versão dela que parecia... quebrada.
“Sai enquanto ainda pode.” — sussurrou a figura.
“Ele vai apagar você.”
Camila gritou. Rafael apareceu, com os olhos calmos demais.
“Você está assustada, meu amor?”
“Eu cuido de você. Sempre cuidei.”
E ela acreditou, de novo. Chorou nos braços dele. Pediu desculpas.
No dia seguinte, todos os espelhos da casa estavam quebrados.
Camila não escreve mais. Não sai de casa. As vozes se calaram. Os bilhetes desapareceram. Rafael está sempre ao lado, sorrindo. Ela está sempre sorrindo também, mas o sorriso dela nunca alcança os olhos.
Às vezes, no silêncio da madrugada, algo em seu reflexo pisca com atraso. Como se não fosse mais ela ali dentro.
Como se já fosse tarde demais.