Eu me lembro do perfume da minha irmã. Era doce e suave, como uma manhã de primavera. Ela sempre parecia carregar um pouco de paz com ela, como se aquele cheiro de morangos frescos e algo doce que eu nunca consegui identificar tivesse o poder de afastar qualquer coisa ruim. Quando eu estava ao lado dela, me sentia seguro, como se nada pudesse me machucar.
Mas isso foi antes do acidente.
Eu tinha seis anos. Estávamos no banco de trás do carro, meus pais na frente, minha irmã ao meu lado. Ela estava cochilando, e eu sentia aquele cheiro familiar e tranquilizador. Foi aí que, do nada, um aroma estranho surgiu. Era algo que eu nunca tinha sentido antes – amargo, como metal enferrujado, e ao mesmo tempo, azedo. Eu me lembro de franzir o nariz, de tentar entender o que era aquele cheiro e de me virar para perguntar aos meus pais… mas não deu tempo.
O barulho do impacto foi a última coisa que ouvi. Depois, houve apenas o silêncio e aquele cheiro horrível, que pareceu impregnar tudo ao meu redor. Minha irmã não sobreviveu. E eu saí do hospital com uma sequela na perna, que mesmo depois de todos esses anos ainda me faz mancar. Mas o que ficou impregnado em mim foi o medo: aquele cheiro estranho que surgiu no exato momento em que tudo deu errado.
Com o tempo, comecei a notar que sempre que alguma coisa estava prestes a dar errado, algo como aquele cheiro voltava. Era um presságio silencioso, um aviso. Eu costumava sentir o cheiro ruim quando estava próximo de pessoas que estavam muito doentes, era normal sentir esse cheiro em hospitais, por isso sempre evito esses lugares, porque sei que quando sinto esse cheiro a morte está por perto.
Meus pais achavam que era trauma, que eu estava imaginando coisas. Mas eu sabia que não era só imaginação. Eu sentia o cheiro. E, sempre que o sentia, algo ruim acontecia.
Eu aprendi a confiar no meu olfato. Como naquela vez, no ensino médio, quando meus amigos me convidaram para uma festa. Eu estava pronto para ir, mas, de repente, senti aquele cheiro amargo e metálico de novo, como se o perigo estivesse bem ali, espreitando. Desisti de sair. Na manhã seguinte, descobri que a festa foi invadida por assaltantes. Um dos meus amigos foi baleado. Foi assim que percebi que meu olfato de alguma forma era um aviso.
Os anos passaram, e eu fui me isolando cada vez mais. Estar perto de muitas pessoas me deixava nervoso, sempre atento a qualquer sinal, a qualquer aroma que pudesse indicar perigo. Então, um dia, tudo mudou. Eu conheci alguém, a Clara.
O cheiro dela era tão doce que trazia uma calma profunda, me lembrava do cheiro da minha irmã. Era como se eu estivesse protegido de tudo ao lado dela, como se o mundo ficasse mudo e seguro. E pela primeira vez em muito tempo, eu me senti em paz
Sempre que eu estava ao lado dela, o mundo parecia melhor, como se nada pudesse me machucar. Logo me apaixonei perdidamente.
Até o dia em que tudo mudou.
Estávamos em um trem fazendo uma viagem escolar para uma pequena cidade fora da capital. Eu não gostava de lugares lotados, mas Clara me convenceu de que seria uma viagem divertida. O vagão estava cheio, e nós nos sentamos juntos, rindo de qualquer coisa, aproveitando o momento. Mas, no meio da conversa, senti um cheiro.
Era fraco no início, como uma nota azeda se misturando ao perfume dela. Pensei que fosse algum tipo de problema no vagão, talvez algo na cozinha do trem. Mas então o cheiro ficou mais forte, mais intenso, um misto de metal enferrujado e carne queimada, algo que prendia minha respiração, que me fazia lembrar do acidente, daquele dia no carro.
Olhei ao redor, mas ninguém parecia notar. Todos estavam tranquilos, conversando, olhando pela janela. Mas, para mim, era como se aquele cheiro estivesse explodindo, preenchendo cada espaço do vagão. Era o cheiro mais intenso que eu já havia sentido, como se o próprio ar tivesse apodrecido.
Me virei para ela, e o sorriso ainda estava em seu rosto, mas eu mal conseguia olhar para ela com aquele cheiro. Sussurrei que talvez devêssemos descer na próxima estação, que algo estava errado, mas ela apenas riu e segurou minha mão, como se quisesse me acalmar. Mas o cheiro... o cheiro era tão forte que tudo ao meu redor começou a girar, a escurecer
Enquanto conversávamos, um homem entrou no vagão. Ele era alto, e o sorriso que ele tinha no rosto era desconcertante. O cheiro horrível começou a se intensificar, um fedor que invadia minhas narinas e me fazia querer vomitar. Aquele sorriso... ele parecia estar feliz, mas aquele olhar doentio indicava que algo não estava certo. Olhei para Clara tentando encontrar conforto, mas até doce perfume dela não conseguia esconder aquele cheiro.
O cheiro que emanava das outras pessoas ao nosso redor começou a mudar, tornando-se semelhante ao do homem. O ar estava cheio de tensão e desespero, e o doce aroma de Clara foi rapidamente sufocado pelo cheiro nauseante que se espalhava pelo vagão.
Aquilo ficou tão intenso que meus olhos lacrimejavam, e eu comecei a sufocar, sem conseguir respirar.
O coração começou a disparar em meu peito. O homem sorriu. E foi nesse momento que o odor alcançou seu auge. Ele puxou uma arma do bolso da blusa, e eu percebi que a paz que sentia ao lado de Clara estava prestes a ser destruída.
Me dei conta de que não havia escapatória, que aquele cheiro de morte era absoluto. A sensação me atingiu com tanta clareza que a aceitação era inevitável.
Naquele instante, não havia dúvida: a morte já estava conosco.