Desde criança, sonhava em ser alto e forte como os homens da roça, aqueles que carregavam feixes de cana nos ombros e riam com a garganta suja de poeira. Meus pais, analfabetos e encolhidos pela terra, acreditavam que a cidade me moldaria melhor. "Vai repetir nosso ciclo de vida", diziam, como se eu fosse um vaso quebrado que precisasse de outro barro. Aos seis anos, me enviaram para a casa da tia Maria, onde a cidade grande cheirava a gasolina e os primos me chamavam de "Boneca".
Na primeira noite, me enfiaram num quarto com paredes descascadas. Trouxera na mala uma foto dos meus pais e um vestido azul que minha mãe costurara para eu "brincar". Não sabia então que o vestido seria meu primeiro caixão. Os primos o encontraram escondido sob a cama. "Olha a Boneca enfeitada!", gritou o mais velho, rasgando a barra com uma faca de cozinha. Riam enquanto eu chorava, e a tia, na cozinha, batia panelas como se estivesse surda.
Aos 18, recebi a notícia por telefone: meus pais foram mortos por um ladrão que buscava o dinheiro enterrado no quintal. A faca que os atingiu era igual à que rasgara meu vestido. Na delegacia, disseram que o assassino fugiu com uma bolsa de plástico — dentro, apenas moedas e um crucifixo de lata. Chorei pouco. Talvez a culpa fosse minha: eu os trocara por um ciclo que não me quis.
Agora, aos 39, observo meu reflexo no espelho rachado do banheiro do bar. Meus cabelos longos emolduram um rosto que ainda confunde os bêbados: "É homem ou mulher?", perguntam, e eu aposto com eles. Aposto em tudo: cavalos, cartas, o número de passos até minha casa. Perdi as economias, o crucifixo dos pais e três dentes. Sobrou a pele pálida, os olhos opacos e o hábito de sussurrar para o vestido azul (recosturado, manchado de vinho) pendurado no armário.
Na noite passada, sonhei com a roça. Meu pai cavava a terra e minha mãe cantarolava, seus dedos encardidos acariciando a foto de um menino magro que não era eu. Acordei com gosto de sangue na boca. No espelho, tentei encontrar o ódio de sempre, mas por um instante — apenas um — vi algo diferente: uma fratura delicada, como vidro soprado, sustentando o peso de tudo que não quebrei.
Que vida frágil.