12 de janeiro
Hoje me disseram que é questão de tempo. Adoro essa expressão: "questão de tempo". Como se o tempo fosse um recurso maleável, um cobertor que você pode puxar para cobrir os pés. Não é. O tempo tem garras, e agora elas estão cravadas na minha nuca.
Câncer. "Glioblastoma multiforme", disseram. Nome bonito, quase poético, para algo que devora sua mente enquanto você ainda está nela. Começo a quimioterapia amanhã. Não espero milagres, mas vou fingir que espero. Isso conforta as pessoas ao meu redor, mesmo que eu deteste o teatro.
17 de janeiro
A quimio é como ser engolido por dentro. Hoje o enjoo era tão intenso que precisei de um balde ao lado da cama o dia todo. Mas isso é apenas um detalhe. Algo maior aconteceu: encontrei um caderno velho no fundo do armário, com a capa toda desbotada. Decidi que vou escrever um livro.
A história será sobre um homem que está morrendo. Não, isso é óbvio demais. Talvez sobre alguém que nunca morre. Ou alguém que já morreu e não sabe. Não importa. O que importa é que, enquanto escrevo, eu não sou Adrian, o paciente com meses de vida. Sou Adrian, o escritor.
22 de janeiro
Escrever é estranho. Parece que estou conversando comigo mesmo, mas em outra língua. Hoje escrevi 15 páginas. Quinze! Para alguém que leva vinte minutos para sair da cama, isso parece uma façanha.
Meu protagonista se chama Hugo. Ele vive em uma cidade onde o tempo parou. Ninguém envelhece, ninguém morre. Hugo odeia isso. Ele quer escapar. Engraçado, não? Eu, com um tumor crescendo no cérebro, criando um personagem que faria qualquer coisa para viver um único dia a mais.
5 de fevereiro
Hugo encontrou uma saída. Uma porta escondida sob as raízes de uma árvore. O problema é que, para atravessá-la, ele precisa deixar algo para trás. Memórias, talvez. Hugo está hesitante. Eu também estaria. Afinal, o que é uma vida sem memória?
Enquanto escrevo, sinto as dores de cabeça voltarem. Mais fortes, mais constantes. É quase engraçado como o câncer vai te roubando aos poucos, peça por peça, até você nem se reconhecer. Mas Hugo ainda tem uma chance. Eu, não.
18 de fevereiro
Os médicos aumentaram a dosagem dos remédios. Minha visão está embaçada, mas continuo escrevendo. Preciso terminar antes que minha mente desista de mim. Hugo atravessou a porta hoje. Ele não sabe o que o espera do outro lado, e nem eu. Mas é isso que torna tudo emocionante, não é?
Minha mãe me pegou chorando enquanto escrevia. Perguntou se era a dor. Disse que sim, mas era mentira. A verdade é que estou com medo de que, quando Hugo alcançar o fim de sua jornada, eu também alcance o meu.
3 de março
Terminei o livro. Hugo encontrou um campo vasto do outro lado da porta, com céu aberto e grama que parecia brilhar sob a luz de um sol dourado. Ele não se lembra de quem era, mas não parece importar. Ele está em paz.
Guardei o caderno na gaveta ao lado da cama. Não quero mostrá-lo a ninguém. Esse é o nosso segredo, meu e de Hugo. Quando o tempo decidir terminar o que começou, espero que eu também atravesse uma porta como a dele.
Até lá, vou reler essas páginas. Elas me fazem sentir vivo. E talvez, só talvez, isso seja suficiente.