Era duas e trinta e quatro da madrugada. Eu e meu irmão estávamos jogados no sofá da sala, cada um com seu celular, assistindo a vídeos aleatórios. A TV à nossa frente exibia um documentário sobre algum animal, mas nem me dei ao trabalho de prestar atenção. O dia estava gelado, o vento fazia as janelas tremerem e o aquecedor lutava para aquecer a casa em meio à neve. As tábuas de madeira das paredes e do chão estalavam com o frio.
Aquela era minha primeira vez saindo do Brasil, nunca pensei que iria a outro continente, mas desde que meu irmão se mudou para o Canadá, minha visita se tornou uma obrigação, que não pode ser mais adiada. Éramos próximos quando criança, agora que crescemos ficamos mais distantes, meus pais me obrigaram a ir ver como meu irmão mais velho, assim como obrigaram Jack a me receber em sua casa. Essa era nossa primeira noite juntos depois de no mínimo quatro anos, ainda assim depois de duas horas botando o papo em dia, o silêncio infelizmente se estabeleceu.
A sala era ampla e espaçosa. O sofá estava encostado na parede, onde havia uma janela ao fundo. À nossa frente, localizava-se a TV e depois dele, estava a porta que dava acesso à cozinha. À esquerda, havia uma porta que dava acesso ao exterior, e à direita, um corredor que levava a um quarto e a um banheiro.
O silêncio não era constrangedor para ninguém, mas também não era amigável. Tanto eu quanto ele já estávamos ficando cansados daquilo. Não estava exausto, mesmo depois da viajem longa, já tinha dormido algumas horas antes. Eu provavelmente iria ficar no quarto de Jack, enquanto ele ficaria no sofá, então de qualquer jeito eu estava impedindo meu irmão de dormir, se bem que ele também não parecia querer. Era um tédio que não dava sono, mas sim corroia a alma, nem mesmo a comida seria capaz de ajudar pois já tínhamos jantado.
–Ei! Josh – Jack começa. – Eu estava vendo uma trend de um jogo, que tal a gente experimentar.
–Ta. – Não me parecia uma má ideia. – Igual quando éramos crianças.
–Exatamente.
Olhei para ele esperando instruções.
–Você lembra daquela brincadeira, que uma pessoa fica apagando e acendendo a luz e o objetivo do outro é chegar perto do outro.
–Estátua? – Completei.
–Esse era o nome?
Jogamos uma rodada. Eu comecei. Ficava no final do corredor e meu irmão no começo. Eu apagava a luz e ele se aproximava, quando acendia Jack ficava parado como estátua. Parecíamos duas crianças bobas. Não consigo dizer o porquê, mas quanto mais próximo ele chegava, mais me apavorava. Era como um calafrio subindo pelo corpo. Até meu irmão vencer a brincadeira, naquela hora eu dei um pulo.
Aquele era um jogo entediante, depois de cinco rodadas, já tinha perdido a graça. Eu olhei para meu irmão e não precisei falar nada, ele já sabia que eu não queria mais continuar. Tudo poderia acabar aí, mas não foi isso que aconteceu. Jack um dos maiores amantes do terror iria inventar algo para arrepiar a alma.
–Que tal a gente fazer algo mais assustador.
–Como o que?
Meu irmão parou e pensou por um tempo, formulando o que iria fazer, até que ele se iluminou com uma ideia.
–Minha vizinha tem uma boneca de pano sinistra e se a gente pedir essa boneca emprestado.
–Acho que tá muito tarde pra isso. – Não queria admitir, mas não tinha vontade de prosseguir com essa brincadeira. Ele sempre tentava envolver o sobrenatural e eu sempre ficava com medo. Não gosto dessas coisas.
–Relaxa, a gente já tem intimidade.
–A gente poderia fazer isso outro dia.
–Que nada, faz tanto tempo…
–Ok, busca aquela boneca.
Ele deu um sorriso de satisfação. Jack pegou o seu celular e ligou para sua vizinha. A voz da mulher no outro lado da linha tinha um tom de cansaço, mas aparentemente emprestou aquela boneca, já que meu irmão foi para a casa ao lado e voltou com aquela coisa.
Jack me falou que o nome daquela boneca era Junc e sua amiga tinha ganhado ela quando era pequena, ela não quis se desfazer daquela boneca pois foi sua avó falecida que deu aquele presente. Aquela figura era realmente medonha, sua pele era branca, o cabelo era chanel, não tinha boca, seus olhos eram grandes e pretos, usava uma roupa de colegial, ela tinha o tamanho real de um adolecente e o que mais me aterrorizava: sobrava tecido como se tivessem tirado quase toda a espuma, fazendo com que aquela figura ficasse magra.
–Ta e agora?
--Agora a gente conta enquanto ELA. -- Ele apontou para boneca. -- Tenta vencer o jogo, ok?
Não gosto desse tipo de jogo. Tudo o que tenho que fazer é jogar uma ou duas partidas e quando meu irmao se cansar a gente devolve a Junc e vai fazer qualquer outra coisa que não envolva o sobrenatural.
Eu coloco a boneca sentada em uma cadeira no começo do corredor. Deixando ela em uma posição largada, sem ajeita-la muito. Depois vou ao encontro de Jack no final do corredor. As luzes da casa estão todas apagadas, menos a única lâmpada do ambiente que separava eu e aquela aberração. Atrás da boneca só tinha um breu irrefutável e sombrio, deixando o clima mais macabro.
--Você pode começar. -- Me adianto tentando evitar meu envolvimento o máximo possível.
Jack toca no interruptor causando o sumiço da única fonte de luz. Ficamos nessa escuridão por mais ou menos dois minutos. Recuei para trás até encostar na parede, meu medo era inegável. Não conseguia me mexer então só restava rezar para que meu irmão acendesse a luz. Sei que ele estava fazendo charme, estava embolando justamente para me aterrorizar. Nada de estranho como fantasmas já apareceu para mim, mas mesmo assim temo o outro lado, pois acredito que exista, diferente de Jack que é cético. Ele decidiu parar de graça e tocou novamente o interruptor. A boneca não tinha se mexido, é claro. Suspirei de alívio.
--Já era esperado. -- Jack falou com decepção. Tive a esperança que as coisas parassem por aqui. --Vamos mais uma vez! Você começa.
Engoli em seco. Olhei para aquela coisa, cerrei o punho e apaguei a luz. Em minha cabeça repetia:”Ela não pode se movimentar, não pode, é só um objeto”. Meu coração saltava, como uma tentativa falha de sair do meu peito. Não tinha passado nem dez segundos e eu já ia encerrar aquela rodada quando eu senti uma respiração no meu ombro. Com um salto acendi a luz. Junc continuava no seu lugar, mas seu braço estava apoiado no seu colo, essa não era a posição que eu a deixei. Fui levado pela irracionalidade por alguns segundos até pensar o óbvio: “Jack tinha feito isso”.
--Muito engraçado, irmão. -- Falei com uma voz descontraída e nervosa.
Ele fez um olhar confuso, que me parecia genuíno.
--Do que você está falando eu não fiz nada, não daria tempo de ir e voltar.
Infelizmente o que ele disse era verdade, eu não tinha escutado nenhum ruído e o tempo era muito apertado para atravessar um corredor tão extenso.
--Então o que você sugere? que a boneca se mexeu sozinha?
--Você é um bom ator Josh, mas vamos ver se consegue fazer sua mágica de novo, agora é minha vez.
Novamente tudo ficou preto, não dava nem mesmo para ver qualquer tipo de silhueta. Senti uma respiração no meu ombro novamente.
--Jack pode parar de ficar tão perto de mim.
Aquela sensação continuou, então dei um empurrão na reta do meu ombro, minha minha mão atravessou o ar, não tocou em ninguém e sensação cessa por completo. Um arrepio sobe pelo meu corpo, como alguém se desvia tão rápido? A iluminação volta olho para o lado, meu irmão está pálido, miro minha atenção para frente e vejo a boneca sentada exatamente como antes, só que com o braço que estava no colo agora estava balançando no ar. Eu ia acusá-lo de bater na mão da Junc, mas ele falou primeiro.
--Você viu aquilo? -- Jack falava sussurrando, ele parecia realmente assustado.
--O que?
--Quando eu acendi a luz tinha uma sombra no batente da porta, atrás da boneca.
--Eu não vi nada.
--Ela saiu logo depois.
Sei que meu irmão queria me assustar, mas sua expressão parecia verdadeira.
--Medonho-- Comentei qualquer coisa genérica só para acabar com aquela discussão.
-Eu… Eu acho melhor a gente parar por aqui.
Pela primeira vez Jack queria dar uma trégua, mas por que? será se ele realmente viu algo? ou ele quer pregar uma peça em mim?
No final das contas a boneca ficou em casa, a vizinha estava dormindo e falou pra devolver do dia seguinte. Meu irmão colocou a boneca sentada na mesa da cozinha. Ele falou pra gente já ir dormir, esquisitei,mas aceitei. Fui para meu quarto, coloquei meu pijama, logo depois deitei na cama. Fiquei pensativo, apenas olhando para o teto. Nunca fui de não conseguir dormir por conta de algo assustador, alguns minutos depois eu peguei no sono. A casa estava silenciosa, nada me impedia de dormir profundamente, menos o inesperado. Quando meu sonho já estava no sereno, um barulho me acordou. Fiquei desnorteado ao ponto de não identificar de onde vinha o estrondo. Olhei ao redor procurando algo que justificasse, mas acho que o som veio de fora do quarto. Me levantei bêbado de sono e fui ver como Jack estava. Quando estava saindo do quarto, uma sensação de estar sendo observado me atingiu, instantaneamente olhei para janela, uma sombra estava lá e assim que percebeu que eu olhei para ele, foi embora. Aquilo me despertou, os resquícios de sono se dissiparam imediatamente. Corri até a janela mas ao olhar para fora, não havia mais ninguém.
–Foi o Jack, certeza.-- Tentei me tranquilizar.
Andei até a sala, já procurando meu irmão. Ele não estava no sofá. Chamei ele enquanto andava. Era difícil procurar alguém naquele breu foi até o interruptor e acendi a luz. Naquele exato momento a boneca caiu no chão, bem na minha frente. Olho para ela, a mesma que estava parada como uma estátua, mas sua mão tinha congelado perto do meu pé. Aquilo tava vindo na minha direção? Não raciocinei muito, sai correndo para fora de casa. Abri a porta em um chute. Só parei quando estava do outro lado da rua. A luz que estava acesa se apagou, as janelas só mostravam a escuridão. Não podia deixar Jack lá dentro. Entrei em casa acendendo todas as luzes que via, andava devagar e atento.
--Jack, cadê você, chega de graça!
Me sentia observado e a boneca não estava mais no chão. A energia na casa caiu e as lâmpadas se apagaram. A porta da cozinha se fechou bruscamente, eu corri até ela, tentei abrir, mas era como se alguém tivesse fechado ela por fora. A única coisa que a aquela porta deixava entrar era um vento frio que gelava meus pés. Nenhuma janela tinha tamanho o suficiente para que eu pulasse. Abri a gaveta do lado do fogão e peguei uma faca. Andei lentamente pela casa procurando algo que pudesse me ajudar.
Mesmo que inútil eu ainda tinha uma pequena esperança de que tudo aquilo pudesse ser uma pegadinha do meu irmão, Tinha que ser. A cada passo que dava o estalo do piso de madeira entregava minha posição e quebrava o silêncio até que um ruído baixo começou a tomar conta da casa, era o barulho de arranhões contra o piso. Aquilo vinha do quarto. Olhei na direção do corredor, vi Junc no batente da porta, na altura do teto. Só era possível ser sua cabeça que agora tinha gotas de um líquido vermelho saindo de seus olhos pretos. Os pingos de provável sangue caiam no chão formando uma pequena poça.
Gritei involuntariamente e acabei deixando a faca cair de minhas mãos. Uma risada começou a surgir e a boneca caiu. De trás da porta saiu Jack rindo.
--Não acredito que você caiu nessa. - Falava rindo, divertindo-se com a situação, mas principalmente com a minha reação.
Suspirei, fiquei tão aliviado que tudo era mentira que não fiquei tão bravo.
--Não acredito que você fez tudo isso, como fez o apagão.
--Eu tenho um aplicativo que apaga as luzes. Você não tem ideia do trabalho que deu pra fazer esse plano.
O resto da noite foi ele explicando com orgulho como ele fez cada truque e como conseguiu fazer sua amiga da casa do lado participar da pegadinha.
--Aí depois de ter passado na sua janela quando você acordou eu esperei você sair de dentro da casa e entrei pelos fundos, peguei a boneca e pintei o olho dela. -- Ele ria a cada frase.
--Mas como você fez a boneca cair no chão quando eu acendi a luz.
--Que?
--Sabe depois de ter passado na minha janela.
--Eu só entrei depois que você saiu, nem vem tentar me assustar. Foi por isso que tirou ela de cima da mesa?