Ano: 1275
Local: Província de Izumo, Japão
O céu estava tingido de vermelho pelo fim do dia, quando as sombras da montanha Kurohira começaram a se estender sobre as terras abaixo. Lá, no coração da província de Izumo, uma pequena vila se aninhava aos pés do monte, rodeada por campos de arroz que brilhavam como espelhos sob o pôr do sol. A tranquilidade da paisagem contrastava brutalmente com a turbulência que se aproximava. A terra, devastada por anos de guerra civil entre clãs, era um lugar onde a honra e o sangue se misturavam na lama.
No centro desse caos, um homem surgia lentamente como uma lenda. Seu nome era Jinro Takahara, samurai sem mestre, um ronin. A história de Jinro era contada em sussurros por todo o Japão. Alguns diziam que ele era um demônio vingador; outros, que sua lâmina era guiada pelos deuses. A verdade, porém, era muito mais simples: Jinro era apenas um homem, moldado pelo peso da guerra e pela perda.
Cinco anos antes, ele servira ao clã Takeda, guerreiros famosos por sua habilidade e disciplina. Durante uma batalha crucial contra o clã Oda, sua fortaleza foi atacada, seu senhor morto, e sua esposa e filho massacrados. Jinro, lutando nas linhas de frente, voltou tarde demais para salvar sua família. Ele enterrou seu coração junto com eles naquele dia e jurou nunca mais empunhar sua lâmina por nenhum senhor.
Agora, Jinro vagava pelo Japão, evitando grandes cidades e castelos, preferindo os vilarejos esquecidos onde a presença dos clãs era tênue. Ele oferecia seus serviços como espadachim por comida e abrigo, mas recusava envolvimento em guerras políticas. Mas, à medida que os conflitos entre os clãs se intensificavam, sua espada era constantemente buscada pelos desesperados.
Naquela tarde, Jinro chegou a uma pequena vila à beira de Kurohira. Os camponeses o observaram de longe enquanto ele descia do cavalo, sua armadura simples e marcada por batalhas refletindo a luz do entardecer. Ele não carregava estandartes ou insígnias, apenas sua katana e um semblante sério. O líder da vila, um homem idoso e encurvado, aproximou-se dele com reverência.
— Mestre samurai, estamos perdidos. Bandidos descem das montanhas a cada lua cheia e roubam o que pouco nos resta. Nossas crianças passam fome, nossas colheitas são destruídas. Por favor, proteja-nos. Não temos muito, mas lhe daremos abrigo e o pouco arroz que podemos poupar.
Jinro olhou para o homem por um longo momento. Seus olhos escuros revelavam uma alma que havia visto o pior da humanidade. Mas sob a máscara de indiferença, ainda havia uma faísca de compaixão. Ele havia jurado não mais se envolver em batalhas por senhores ou ideais, mas proteger os inocentes nunca deixara de ser sua missão.
— Mostre-me onde eles atacam _Ditou, com uma voz grave e calma.
O idoso levou Jinro ao topo de uma colina que dava vista para a vila. O caminho sinuoso das montanhas era visível à distância, um ponto por onde os bandidos desciam como lobos caçando presas indefesas. Jinro passou a noite estudando o terreno e observando as estrelas, planejando silenciosamente sua estratégia.
Quando o ataque finalmente chegou, foi com a fúria de uma tempestade. Os bandidos desceram das montanhas, confiantes em sua força e número, como haviam feito muitas vezes antes. Mas desta vez, algo estava diferente. À medida que se aproximavam da vila, sombras rápidas os atacavam de todos os lados. Jinro, movendo-se como um espectro entre as árvores, emboscou cada grupo com precisão letal. Ele usava o ambiente a seu favor, a escuridão e a geografia da montanha o tornando quase invisível.
Sua katana cortava com uma destreza silenciosa, eliminando os bandidos com a eficiência de alguém que conhecia a guerra intimamente. O som do aço encontrando carne era abafado pelo vento, e os bandidos caíam antes de sequer perceberem o que os atingira.
Na manhã seguinte, a vila estava silenciosa. Os corpos dos bandidos jaziam espalhados pelo campo, e Jinro, ensanguentado, mas intacto, permanecia em pé no topo da colina, olhando para a neblina que começava a se levantar das montanhas. O velho líder da vila se aproximou dele mais uma vez, ajoelhando-se com gratidão.
— O senhor nos salvou. Nós nunca poderemos pagar tamanha bondade.
Jinro apenas acenou com a cabeça, seus olhos fixos no horizonte distante.
— Os bandidos eram apenas peões. O verdadeiro inimigo ainda está lá fora, esperando sua oportunidade.
As palavras de Jinro se provaram verdadeiras. A notícia de sua vitória se espalhou rapidamente pelas aldeias vizinhas e, com isso, atraiu a atenção de inimigos mais poderosos. Clãs rivais que controlavam as montanhas de Izumo começaram a ver Jinro como uma ameaça. Para eles, ele era mais do que um homem; ele estava se tornando uma lenda, um símbolo de resistência e vingança.
Os confrontos continuaram, cada vez mais brutais. Jinro, sempre em menor número, usava táticas de guerrilha, emboscando e destruindo seus inimigos com precisão mortal. Ele se tornava um espectro nas montanhas, movendo-se com a habilidade de um predador que conhecia cada curva do terreno. Seus inimigos começaram a chamá-lo de "O Lobo Negro de Kurohira", um nome que logo se espalharia como um conto de terror entre os samurais inimigos.
Com o passar do tempo, Jinro foi deixando de ser um homem comum e se tornou uma figura mitológica. Diziam que ele era imortal, que sua espada era amaldiçoada e que os espíritos da montanha o protegiam. Cada aldeia que ele libertava aumentava o mito, e logo as canções sobre o Lobo Negro de Kurohira se espalharam por todo o Japão.
Mas Jinro sabia a verdade: ele era apenas um homem. E, como todo homem, seu tempo um dia chegaria ao fim.
Anos se passaram, e os clãs finalmente se uniram em uma última tentativa de matá-lo. Enviaram seus melhores guerreiros, e a batalha final ocorreu nas encostas da montanha Kurohira.
Naquela manhã, a neve recém-caída cobria o sopé da montanha Kurohira, transformando a paisagem em um mar branco e silencioso. Jinro, com seus cabelos grisalhos presos num rabo de cavalo e o rosto marcado pelo tempo, vestia uma armadura simples e desgastada. Ele olhou para o horizonte, sentindo o vento frio cortar sua pele como lâminas invisíveis. Diante dele, os homens do clã Matsudaira se preparavam para o ataque final.
Jinro estava em desvantagem numérica. Eram pelo menos cinquenta samurais do clã, liderados por Nobuhisa Matsudaira, um comandante conhecido por sua crueldade. Jinro, sozinho no topo da colina, sabia que aquele seria seu último combate. Ele havia preparado o terreno à noite, escondendo armadilhas e estudando os pontos fracos da montanha.
Quando o ataque começou, ele foi rápido e implacável. Movendo-se como o vento, Jinro emboscou pequenos grupos de guerreiros, os atraindo para passagens estreitas, onde seu número não importava. Sua katana cortava com precisão cirúrgica, abrindo gargantas e perfurando armaduras com a experiência de um homem que vivia para a batalha. Ele esquivava-se de golpes com uma graça quase sobrenatural, seus movimentos eram fluidos, precisos.
Mas a cada inimigo derrotado, o peso da batalha se acumulava sobre seus ombros. Jinro começou a sentir as pernas fraquejarem, a respiração se tornar mais curta. Ele não era mais o jovem guerreiro que enfrentara exércitos. Agora, cada movimento parecia consumir mais de sua força vital.
Na metade da batalha, um dos guerreiros de Matsudaira, armado com uma lança longa, conseguiu perfurar o flanco de Jinro, entre as placas de sua armadura. O golpe foi profundo e mortal, mas Jinro, com uma última explosão de força, decapitou o homem antes que pudesse terminar o serviço. Ele recuou, pressionando a ferida enquanto o sangue quente escorria por seus dedos.
Agora encurralado no topo da colina, Jinro sabia que seus inimigos logo o alcançariam. Mas ele não tinha medo. Enquanto respirava com dificuldade, seus olhos percorriam o campo de batalha. A neve estava tingida de vermelho, corpos de samurais espalhados como folhas caídas. Ele havia derrubado muitos, mas ainda restavam dezenas.
Nobuhisa Matsudaira se aproximou, com uma postura imponente. Sua armadura era pesada e dourada, brilhando sob o sol da manhã. Ele sorriu, sabendo que estava diante de uma lenda, mas também acreditando que aquele dia seria o fim do Lobo Negro.
— Jinro Takahara _A voz profunda ecoava pelo vale. — Os contos sobre você viajaram até as terras do meu clã, mas hoje elas terminam. Você morreu no momento em que se rebelou contra os poderosos.
Jinro apenas olhou para Matsudaira, sem dizer uma palavra. Suas mãos, firmes apesar da dor, ainda seguravam a katana, agora pesada como o destino. Ele sabia que não sobreviveria àquela luta, mas estava determinado a levar consigo quantos inimigos pudesse.
Quando Matsudaira avançou, acompanhado por seus homens mais leais, Jinro soltou um grito de guerra e lançou-se para a última investida. Sua lâmina brilhou enquanto cortava o ar, atingindo o pescoço de um dos guerreiros que o cercava. Ele dançava entre os golpes dos oponentes, movendo-se com a habilidade que o tornara lendário. Mas seu corpo estava enfraquecido, e seus reflexos, outrora perfeitos, começaram a falhar.
Um segundo golpe o atingiu no ombro, derrubando-o de joelhos. O frio da lâmina penetrou sua carne, e ele sentiu o sangue escorrer pelo braço. Jinro grunhiu, resistindo à dor, mas sabia que estava no fim. Ele levantou-se uma última vez, com esforço, e enfrentou Matsudaira diretamente.
O comandante riu, brandindo sua espada longa. Os dois se encararam por um momento que pareceu durar uma eternidade. Então, com uma velocidade surpreendente, Matsudaira atacou. Jinro conseguiu desviar do primeiro golpe, mas o segundo foi certeiro: a lâmina de Matsudaira atravessou seu abdômen, perfurando profundamente.
Jinro cambaleou para trás, sua visão ficando turva. Ele sabia que aquele golpe era fatal. Caiu de joelhos, a katana ainda firmemente em sua mão. O sangue jorrava da ferida, tingindo a neve ao seu redor. Mas, mesmo com a morte à espreita, Jinro ergueu a cabeça e olhou para o céu. O vento frio da montanha acariciava seu rosto pela última vez, e ele sentiu uma estranha paz.
Com sua última força, Jinro fincou sua espada no chão à sua frente, usando-a como apoio para se manter ajoelhado. Ele olhou para Matsudaira, seus olhos ainda brilhando com determinação, e sussurrou:
— A morte não silencia uma lenda.
E então, com um último suspiro, Jinro Takahara, o Lobo Negro de Kurohira, se foi.
Matsudaira olhou para o corpo sem vida do samurai por um longo momento. Mesmo morto, Jinro parecia invencível, como se o espírito de Kurohira vivesse dentro dele. Nenhum de seus homens ousou se aproximar do cadáver, e, naquela noite, o corpo de Jinro foi deixado ali, ao lado de sua katana cravada no solo, como um monumento à resistência.
Os camponeses da vila, que assistiam à batalha à distância, enterraram o Lobo Negro na montanha que ele tanto protegeu, e sua história, como Jinro previra, se tornou lenda. Ninguém mais ousou atacar as aldeias de Kurohira, e o nome de Jinro Takahara foi sussurrado por gerações, como o espírito do guerreiro que jamais poderia ser derrotado.