A lua escarlate pendia no céu como um olho sangrento, observando o mundo com uma impassibilidade cruel. Seu brilho mórbido refletia-se nas águas enegrecidas de um pântano esquecido, onde as árvores mortas se erguiam como dedos retorcidos, acusando o céu por sua eterna condenação. Aetheria, um reino uma vez glorioso, estava agora silenciosa, como o sopro final de um moribundo. O ar era pesado e sufocante, carregado com o cheiro de putrefação e da umidade ancestral que encharcava a terra. A brisa inexistente tornava o ambiente imutável, como uma pintura estática de um pesadelo que nunca terminava.
Kaelen havia sido levado pela escuridão, sua alma engolida pelo abismo sem promessa de retorno. Mas em meio ao vazio onde sua essência deveria ter sido consumida, algo resistiu. Uma luz tênue, quase imperceptível, pulsava no fundo de sua consciência, como o eco de uma estrela morta há milênios. Ele não estava completamente perdido.
Nos confins de sua percepção, um cheiro acre de incenso queimado invadiu suas narinas, misturando-se com o odor metálico do sangue antigo. Havia algo de profundamente errado naquele cheiro – algo primordial, como se o próprio tempo tivesse sido retorcido e apodrecido. Kaelen abriu os olhos, sentindo o peso de séculos sobre suas pálpebras. O mundo que se revelava diante dele era diferente, mais distorcido, mais cruel. Ele não estava mais no terreno sólido que antes havia sentido sob seus pés. O chão parecia escorregadio, como a carne de um cadáver há muito exposto aos elementos, e as árvores ao seu redor não eram feitas de madeira, mas de ossos e carne entrelaçados em formas grotescas.
Aetheria havia se afundado ainda mais nas profundezas do esquecimento.
Seren estava ao seu lado, mas já não era a mulher que ele conhecera. Suas vestes haviam sido corrompidas, agora um manto negro que se fundia à escuridão ao redor. Seu corpo pálido emanava uma frieza sobrenatural, e seus olhos, outrora cheios de visões, eram vazios, opacos como mármore desgastado. Ela não o olhava mais como companheira, mas como algo distante, quase como uma observadora indiferente do destino.
“Você não morreu,” ela murmurou, sem emoção. Sua voz carregava o peso de um presságio. “Mas a morte, Kaelen… A morte é misericordiosa.”
Ele se levantou, sentindo uma dor aguda percorrer cada fibra de seu corpo. As cicatrizes, antes símbolo de sua resistência, agora pareciam queimaduras recém-infligidas. Ao olhar para o horizonte, Kaelen viu o reino caído de Aetheria se estendendo como uma tumba sem fim. O céu se enrolava em torno do solo como uma serpente sufocando sua presa, e o som de correntes invisíveis arrastava-se pelo ar, um lembrete constante de que aquele mundo estava aprisionado por forças muito além de qualquer mortal.
“Por que estou aqui?” A voz de Kaelen saiu rouca, como se sua garganta estivesse cheia de cinzas. “Eu caí. Hesperos… Ele…”
“Hesperos é apenas o começo,” Seren respondeu, sua presença etérea, como uma sombra refletida na água turva. “Você foi poupado para algo maior. Ou menor, dependendo de como encara. O ciclo não terminou, mas agora, Kaelen, você deve caminhar entre os Imortos. Não como caçador… mas como um deles.”
A verdade, fria e dura como ferro oxidado, golpeou-o. A luta, suas crenças, o juramento de sua linhagem – tudo fora uma farsa. Ele não era mais um guardião das almas perdidas. Não, ele havia se tornado um dos condenados. Um Imortal. Sentiu uma bile ácida subir em sua garganta, misturada com o gosto salgado de derrota.
Seren aproximou-se, seus pés descalços não faziam som ao tocar o solo deformado. “Aetheria está morta, Kaelen, e nós estamos aqui para testemunhar seu último suspiro. Você pode tentar resistir, como sempre fez. Mas a verdade é que o destino nos amaldiçoou, e não há fuga daquilo que está por vir.”
Os olhos de Kaelen buscaram algum resquício de esperança no rosto dela, mas encontraram apenas um reflexo do mesmo desespero que o afligia. O vento começou a se levantar, trazendo com ele um som distante, como o rufar de tambores ancestrais, ecoando de algum lugar profundo dentro da terra. E então ele os viu.
Os Imortos emergiam da neblina, suas formas indistintas se movendo lentamente, como se fossem parte do próprio ar pesado que os rodeava. Suas peles eram pálidas e translúcidas, como véus mortuários, e seus olhos, vazios de vida, brilhavam com uma luz fraca, espectral. Seus corpos eram disformes, como se tivessem sido moldados e remodelados por forças que não respeitavam mais a natureza do que uma criança respeitaria um brinquedo quebrado. Eles não andavam – eles rastejavam, movendo-se em uníssono, bestas sedentas por carnes e sangues.
Kaelen sentiu a proximidade deles antes mesmo de vê-los de fato. O ar ao redor ficou mais denso, e o cheiro da morte se intensificou, como carne queimada e madeira podre. Seren se afastou, sua presença tornando-se indistinguível da própria neblina.
“Você é um deles agora,” ela disse, sua voz misturando-se aos sons de choro e raiva dos Imortos que se aproximavam. “Sua luta terminou. Você pode aceitar seu lugar ao lado deles... ou lutar por algo que talvez nunca mais exista.”
Kaelen olhou para seus braços, esperando ver o reflexo de um monstro, mas sua pele ainda era a sua, embora mais pálida, mais fria. Mas ele sabia. Sentia a mudança. A lâmina em sua mão, outrora vibrante com a energia de Eralith, agora estava fria como pedra, sem vida. Ele olhou para a lua escarlate acima, a testemunha de tudo o que havia perdido.
Aetheria estava morta. Ele sabia disso. Mas algo dentro dele, uma chama tão frágil quanto o mais leve sopro de vento, recusava-se a morrer completamente.
“Então, que seja,” Kaelen murmurou para si mesmo, enquanto os Imortos o cercavam. “Que a escuridão leve este mundo… mas ela não levará a mim sem lutar.”
Ele ergueu sua espada pela última vez, sentindo o peso dela, não como uma arma, mas como uma extensão de sua alma quebrada. E com um grito que ecoou pelo vazio, Kaelen avançou contra as sombras, seu corpo dilacerado, mas sua vontade indomável.
Naquela noite, sob o brilho frio da lua escarlate, o último sopro de Aetheria ecoou por entre os ossos das árvores mortas, e com ele, a chama de Kaelen queimou uma última vez, intensa e feroz, até desaparecer nas trevas.