Era outubro de 1922, e o crepúsculo emoldurava as ruas de paralelepípedos com tons dourados e avermelhados, como se o céu estivesse tingido por uma melancolia invernal que ainda não havia chegado. Em um pequeno vilarejo francês, quase perdido no tempo, existia uma livraria chamada "Aux Feuilles Tombées" — Às Folhas Caídas. Era um lugar onde os livros antigos eram guardados com o mesmo cuidado que se daria a memórias preciosas, e as palavras escritas pareciam flutuar entre os corredores de prateleiras empoeiradas.
Henriette, a proprietária da livraria, era uma jovem que sempre soube que pertencia ao passado. Ela tinha uma leveza nos gestos, uma beleza sutil e quase invisível, como se fosse uma pintura impressionista, desenhada com toques suaves de cores desbotadas. Aos 27 anos, vivia sozinha e dedicava seus dias à companhia dos livros, recusando educadamente os avanços dos jovens de seu vilarejo que não entendiam o motivo de sua reclusão.
Um dia, no entanto, algo diferente aconteceu.
No final de uma tarde tranquila, quando as folhas começavam a cair como se o outono estivesse desenrolando um tapete de ouro e ferrugem, um homem de chapéu e sobretudo escuro entrou na livraria. Ele tinha uma aparência misteriosa, seu rosto meio escondido nas sombras projetadas pelo chapéu. Seus passos eram firmes, mas carregavam uma certa leveza, como se ele estivesse acostumado a ser invisível.
Henriette, que estava empilhando livros no balcão, olhou de soslaio para o estranho. Algo nele capturou sua atenção. Talvez fosse o fato de que ele parecia deslocado, como alguém que não pertencia àquele tempo — um detalhe que ela sempre notava nos outros, mas que nunca vira refletido em outra pessoa além de si mesma.
Ele se aproximou das prateleiras, correndo os dedos pelas lombadas dos livros, seus olhos percorrendo os títulos com uma intensidade quase obsessiva, como se procurasse algo específico, algo que talvez estivesse perdido ali há anos. Quando ele finalmente pegou um livro, suas mãos tremeram ligeiramente ao segurá-lo.
"Posso ajudar?", a voz de Henriette soou quase sem intenção, suave como o farfalhar das páginas.
O homem a fitou, revelando um rosto marcado pelo tempo, embora ele não parecesse velho. Seus olhos eram claros, mas profundos, e havia algo inquietante em seu olhar. Não era o tipo de inquietude que sugeria perigo, mas uma sensação de ausência, como se ele estivesse buscando algo há muito tempo.
"Este livro..." ele começou, sua voz rouca e baixa. "Estava aqui. Faz muito tempo que eu o procuro."
Henriette olhou para o livro em suas mãos. Era um volume antigo, de capa marrom desbotada, intitulado Le Temps des Ombres — O Tempo das Sombras. Ela não se lembrava de já ter visto aquele título antes. Talvez fosse uma das peças raras que haviam sido doadas à livraria e acabaram esquecidas em algum canto.
"É uma obra rara", comentou, intrigada. "Eu não sabia que tínhamos isso aqui."
O homem suspirou, como se estivesse aliviado por finalmente ter encontrado o que procurava. "Este livro não é apenas raro. Ele contém histórias... histórias que, de certa forma, eu vivi."
Henriette franziu o cenho, sem saber ao certo o que ele queria dizer. "Você... viveu essas histórias?"
"Há coisas neste mundo que não podemos entender completamente", disse o homem, com um tom melancólico. "Às vezes, o tempo não é linear. Ele se dobra, se esconde, se revela. Este livro é uma dessas dobras."
Ela sentiu um arrepio percorrer sua espinha, mas não de medo. Era como se algo despertasse nela, algo que ela sempre soubera, mas que estava adormecido. "Quem é você?", perguntou.
"Meu nome é Lucien", respondeu ele, com um leve sorriso enigmático. "E há muitos anos, eu deixei algo importante para trás. Algo que está preso entre as páginas deste livro."
Henriette sentiu seu coração acelerar. "O que você deixou para trás?"
"Um amor que não pôde sobreviver ao tempo", disse ele, seus olhos claros fitando os dela com uma intensidade dolorosa. "Há muito tempo, eu e uma jovem como você vivemos uma história que foi interrompida, congelada. E este livro... ele contém as últimas palavras que trocamos, escritas nas margens, em um código que só nós dois conhecemos."
Ela olhou novamente para o livro, sentindo uma atração inexplicável por ele. "E onde ela está agora?"
Lucien olhou para o horizonte, para além da janela da livraria, onde o crepúsculo começava a desaparecer. "Ela está... em algum lugar. Talvez não mais nesta vida. Talvez não mais neste mundo. Mas eu sempre a procuro, em cada outono, quando as sombras ficam mais longas e o tempo parece se dobrar sobre si mesmo."
Henriette, sem saber por que, pegou o livro das mãos dele e o abriu. Nas margens, em uma caligrafia delicada, havia anotações, quase imperceptíveis, que pareciam códigos. Letras, símbolos, pequenos desenhos que não faziam sentido à primeira vista. Mas à medida que ela virava as páginas, algo nela começou a se agitar.
De repente, ela se lembrou.
Um lampejo, um fragmento de memória. Não era uma lembrança comum, mas algo vindo de muito tempo atrás, de uma outra vida. Uma mulher, com um vestido de cetim, segurando as mãos de um homem sob um carvalho dourado. O som suave das folhas caindo ao redor deles, e a promessa de que, não importa o que acontecesse, eles sempre se encontrariam.
Henriette olhou para Lucien, seu coração batendo descompassado. "Você era ele."
Ele assentiu silenciosamente.
As peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar. Ela não era apenas Henriette, a jovem livreira de 1922. Havia algo mais, algo que transcendia o tempo. Ela e Lucien estavam presos em um ciclo, uma dança interminável que se repetia a cada outono, a cada encontro interrompido. Mas agora, com o livro em suas mãos, ela sabia que tinha a chance de romper o ciclo. De, finalmente, escolher um final diferente.
"Você está pronta?", Lucien perguntou, a voz suave, mas carregada de significado.
Henriette fechou o livro e, sem hesitar, estendeu a mão para ele. "Estou."
E naquela noite, enquanto as sombras do outono se alongavam pelas ruas de paralelepípedos, Henriette e Lucien desapareceram da livraria "Aux Feuilles Tombées", deixando para trás apenas o eco de uma história antiga que, finalmente, havia encontrado seu desfecho.
O livro? Ele permaneceu na prateleira, fechado, esperando que outra alma curiosa o encontrasse. Pois, como todas as grandes histórias de amor, há sempre mais a ser contado — e sempre mais a ser vivido.