As tardes chuvosas naquela cidade costeira sempre traziam uma sensação de nostalgia para Augusto. Ele se sentava em frente à janela de seu quarto modesto na pensão, observando o mar cinzento, as ondas quebrando nas pedras abaixo da falésia. O ar carregava uma tristeza indefinida, uma melancolia que Augusto encontrava confortante. Ali, com um cigarro entre os dedos e o som distante da chuva, ele tentava, sem sucesso, escrever seu próximo romance.
Em uma dessas tardes, algo diferente chamou sua atenção. O som suave de um piano escapou pela janela entreaberta da casa ao lado. A melodia parecia flutuar no ar, se misturando ao ritmo constante da chuva. Intrigado, Augusto se aproximou da janela para espiar. Lá, na casa ao lado, ele a viu pela primeira vez.
Uma mulher, elegante e serena, sentada ao piano, os dedos deslizando pelas teclas com uma habilidade que o fez prender a respiração. Seus cabelos castanhos caíam suavemente sobre os ombros, e havia algo em sua postura — uma tristeza oculta, uma solidão disfarçada em cada nota tocada.
Por dias, Augusto a observava em silêncio, sem coragem de se aproximar. A rotina era a mesma: todas as tardes ela se sentava ao piano, tocando enquanto o céu escurecia e a chuva começava a cair. Ele não sabia seu nome, não sabia nada sobre sua vida, mas sentia que, de alguma forma, ela compartilhava da mesma solidão que ele.
Certa tarde, porém, o acaso trouxe Clara para perto de Augusto. Ele estava descendo as escadas da pensão quando a porta se abriu e ela entrou, carregando uma pequena bolsa e um casaco pesado. Parecia que conhecia a dona da pensão. Clara olhou rapidamente em sua direção, e seus olhares se encontraram por um breve momento. O suficiente para que ele percebesse que seus olhos, tão distantes e profundos, escondiam mais do que ele imaginava.
— Você... você toca piano? — Ele se ouviu perguntar, sem pensar. A voz dele saiu baixa, quase hesitante.
Clara parou por um instante, surpresa, e depois assentiu com um leve sorriso. Não era um sorriso de alegria, mas de reconhecimento, como se soubesse que ele a ouvira todos aqueles dias.
— Sim, eu toco. — A resposta foi simples, mas a suavidade de sua voz o atingiu de uma forma inesperada.
Os encontros foram se tornando mais frequentes. Às vezes, ela parava para conversar com ele na entrada da pensão, outras vezes o encontrava sentado no banco em frente à praia, olhando o horizonte. Ela falava pouco de si, mas ele descobriu que se chamava Clara e que, além de tocar piano, havia se casado jovem. O marido, um homem de negócios, estava sempre ausente, deixando Clara sozinha naquela grande casa.
— O piano... é tudo o que me resta, — disse ela em uma tarde, seus dedos traçando círculos na areia. — Ele não está realmente presente. Nem quando está aqui.
Augusto sabia que a melancolia que via em seus olhos não era só pela solidão física, mas por algo mais profundo, algo que ela não verbalizava. E ele sentia que começava a se apaixonar por essa tristeza, como se quisesse preenchê-la com as palavras que nunca conseguia escrever.
As semanas se passaram, e o laço entre eles, ainda que delicado e silencioso, foi se fortalecendo. Augusto já não apenas observava pela janela. Ele a acompanhava ao piano, ouvindo-a tocar, às vezes em silêncio, outras vezes falando sobre sua própria frustração com a escrita.
— Eu escrevo, — ele disse um dia, enquanto os dois caminhavam pela praia. — Ou pelo menos, tento. Mas nada sai como eu quero. As palavras parecem me escapar, como se eu não soubesse mais o que dizer.
Clara parou de andar, olhando para ele com uma intensidade que o fez desviar o olhar por um segundo.
— Talvez, — ela começou, a voz suave, — você esteja procurando as palavras nos lugares errados. Às vezes, o que queremos dizer já está dentro de nós, só precisamos aprender a ouvir.
Houve um longo silêncio entre eles, quebrado apenas pelo som das ondas. Augusto se deu conta de que as palavras estavam lá, sim. Mas elas vinham de sua observação silenciosa dela, de tudo o que ela não dizia.
Ele sabia que seus sentimentos por Clara estavam crescendo, mas também sabia que havia uma linha invisível entre eles. Ela era casada, e por mais distante que seu marido estivesse, essa realidade permanecia. Havia algo trágico naquele relacionamento que eles cultivavam, algo que já carregava a marca do efêmero.
Uma tarde, Clara não apareceu ao piano. Augusto esperou, inquieto, mas a música não veio. O silêncio, antes reconfortante, agora parecia pesar sobre ele. Preocupado, ele saiu da pensão e caminhou até a casa ao lado, hesitante. Bateu na porta, mas ninguém atendeu.
No dia seguinte, ele soube pela dona da pensão que algo terrível havia acontecido. Clara fora encontrada no quarto, envolta em silêncio. O marido, há muito distante, não estava presente. A cidade logo soube do trágico destino de Clara: ela havia tirado a própria vida.
Devastado, Augusto retornou ao seu quarto, incapaz de processar completamente a notícia. Em meio à confusão, um envelope branco repousava sobre sua escrivaninha. A caligrafia delicada na frente era inconfundível — Clara havia escrito para ele.
Suas mãos tremiam enquanto abria a carta, que trazia consigo as últimas palavras de Clara, envoltas em uma melancolia que parecia transbordar da tinta nas linhas.
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"Augusto,"
"Os dias se desfizeram como as ondas que o vento leva,
e agora resta apenas o silêncio.
Nossas conversas, breves e frágeis, foram como fios de luz
que tentaram atravessar a escuridão dentro de mim."
"Eu não sou feita para este mundo. A solidão em que você me encontrou
foi a mesma que sempre esteve comigo,
mesmo quando a música preenchia a sala vazia.
Eu sou uma nota errante, fora da harmonia da vida."
"Você foi um refúgio em meio a essa desordem.
Alguém que, por alguns momentos, trouxe cor ao cinza.
Mas eu não podia ficar. O vazio dentro de mim já havia tomado conta."
"Não busque respostas, pois elas não estão nas palavras que eu deixo.
Elas nunca estiveram em lugar algum.
Apenas saiba que, em nosso breve tempo, você foi a última melodia que ouvi."
"Adeus, Augusto. Que as palavras finalmente fluam para você,
como a maré que eu nunca consegui acompanhar."
"Com carinho,
Clara."
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Augusto releu a carta inúmeras vezes, suas mãos trêmulas, o peito pesado com uma tristeza que ele jamais conhecera. A chuva batia na janela, e o som das ondas ecoava ao longe, como uma lembrança distante da breve presença de Clara em sua vida.
Ele se sentou à escrivaninha, tentando encontrar nas palavras dela algum sentido, algo que pudesse aliviar o peso em seu coração. Mas tudo o que encontrou foi a certeza de que a melodia de Clara jamais voltaria a tocar.
Finalmente, com o som suave da chuva como trilha sonora, Augusto pegou seu caderno e começou a escrever. As palavras, que antes pareciam perdidas, agora fluíam, inspiradas pela memória de Clara e pela música que ela deixou para trás.
E assim, ele escreveu sua última frase:
"Algumas pessoas entram em nossas vidas como melodias breves, mas quando se vão, deixam o eco de uma canção que nunca será esquecida."