Nas terras esquecidas de Aetheria, o sol havia se tornado uma memória distante, ofuscada pela presença perpétua de uma lua pálida, ferida, como se tivesse sido rasgada por garras invisíveis. O céu, em um constante crepúsculo, era tomado por nuvens que jamais se moviam, como um véu de luto que cobria o mundo. A escuridão não era apenas um fenômeno físico, mas uma presença viva, pulsante, que se infiltrava na terra, nas árvores e, principalmente, nas almas dos homens.
Há muito, Aetheria fora um reino de prosperidade, mas sua glória havia se dissipado como poeira ao vento quando o pacto sagrado com os deuses foi quebrado. Os homens que um dia caminhavam sob a luz divina, agora rastejavam como bestas condenadas, devorados por uma fome insaciável que os tornara Imortos – criaturas eternamente presas entre a vida e a morte, condenadas a vagar por florestas encharcadas de névoa, em busca de suas próprias almas perdidas.
No coração dessa terra desolada, vivia Kaelen, um caçador de maldições e guardião de segredos esquecidos. Ele era o último sobrevivente da Ordem de Vardus, uma irmandade de guerreiros dedicada a caçar os Imortos e purificar suas almas atormentadas. Mas agora, até essa missão sagrada parecia fútil. Seu corpo, coberto por cicatrizes profundas, era um mapa de sua jornada através das eras. Cada marca contava uma história de vitória amarga e derrota dolorosa.
A cada lua cheia, Kaelen se submetia ao Ritual do Sangue Antigo, um juramento que sua linhagem mantinha há séculos para proteger sua própria humanidade. O sangue de seus ancestrais fluía em suas veias, e o ritual o mantinha afastado da escuridão que ameaçava consumi-lo. No entanto, naquela noite, a lua não era cheia – ela estava tingida de escarlate, um vermelho profundo e pulsante, como se os próprios deuses tivessem derramado sangue sobre ela.
Kaelen sentiu o vento mudar. O ar, outrora apenas frio, agora estava saturado com uma sensação de pavor, como se o próprio tecido da realidade estivesse se desfazendo. Ao seu lado, movendo-se silenciosamente como uma sombra, estava Seren, uma sacerdotisa de Eralith que havia sido tocada pelas trevas. Sua visão do futuro fora corrompida e, agora, tudo o que ela via era o abismo que aguardava o mundo.
“O tempo está acabando,” Seren sussurrou, sua voz baixa e rouca como o sussurro de folhas mortas. “A lua escarlate traz consigo uma verdade antiga, algo além do que podemos compreender.”
Kaelen olhou para ela, percebendo a fadiga em seus olhos, antes tão cheios de brilho e esperança. Agora, eram dois poços sem fundo, refletindo o destino inevitável de Aetheria. Afastando qualquer pensamento de desistência, ele apertou o cabo de sua espada, forjada nas fornalhas de Eralith, o deus da luz extinta. Essa lâmina, tão antiga quanto as estrelas, era sua única proteção contra o mal iminente.
Naquela noite, porém, algo diferente os aguardava. Não eram apenas os Imortos que se moviam entre as árvores. Kaelen podia sentir. O tempo parecia desacelerar à medida que um frio sobrenatural se instalava, não apenas na atmosfera, mas também em seus ossos. Seren parou de caminhar, como se tivesse ouvido um chamado silencioso, e de repente, a névoa à sua frente se partiu como um mar sombrio, revelando uma figura que Kaelen conhecia de antigos pesadelos.
Hesperos, o Rei Imortal, avançava na direção deles. Seu corpo era uma mistura de sombras e carne, e seus olhos ardiam com o fogo da eternidade. Ele fora o primeiro a desafiar os deuses, o primeiro a rejeitar a mortalidade e a reivindicar o poder para si mesmo, condenando Aetheria à sua queda.
“Caçador,” Hesperos falou, sua voz reverberando como um trovão abafado. “Por quanto tempo mais você resistirá à verdade? O ciclo terminou. A luz morreu, e agora, só resta a escuridão.”
As palavras de Hesperos pareciam penetrar na alma de Kaelen, cada sílaba carregando o peso de milênios de dor e desespero. Por um momento, o caçador hesitou. A espada em sua mão tremia, não pelo medo, mas pelo cansaço. Ele lutara por tanto tempo, por tantas vidas, que a ideia de rendição não parecia mais tão absurda.
Seren, ao lado dele, deixou cair o véu que cobria seu rosto. Seus olhos, antes escondidos, agora estavam vazios, consumidos pela escuridão que ela havia profetizado. “Ele está certo, Kaelen,” ela murmurou, sua voz cheia de resignação. “Estamos lutando por uma causa que já morreu.”
Kaelen sentiu o peso dessas palavras como um golpe em seu coração. Ele olhou para sua lâmina, a luz sagrada que ela outrora carregava agora parecia fraca, quase apagada. Ele sabia que sua jornada estava chegando ao fim. Mas mesmo assim, algo dentro dele resistia. Talvez fosse o resquício de uma esperança tola, ou talvez fosse a própria essência da humanidade, recusando-se a se dobrar completamente.
Hesperos sorriu, percebendo a hesitação de Kaelen. Ele avançou, sua lâmina negra cortando o ar com um som que parecia sugar toda a luz ao redor. Kaelen ergueu sua espada para bloquear o golpe, mas seu corpo falhou. A lâmina do Rei Imortal atravessou sua defesa e rasgou sua carne. O caçador caiu de joelhos, o sangue se misturando à terra enegrecida.
Kaelen sentiu a vida se esvaindo de seu corpo, e enquanto sua visão começava a se escurecer, uma corrente de memórias inundou sua mente. Lembranças de dias ensolarados em que a luz iluminava Aetheria, de risos compartilhados e promessas feitas sob a luz dos deuses. Ele se lembrou de como havia lutado, não apenas por sua própria humanidade, mas pela esperança de um futuro melhor.
Enquanto a lua escarlate pulsava acima dele, Kaelen se permitiu aceitar sua derrota. Mas antes que sua consciência se apagasse completamente, uma chama de determinação acendeu em seu coração. “Se a luz não pode mais brilhar neste mundo, então que a escuridão não triunfe em vão,” ele pensou.
Naquele último instante, Kaelen fez um desejo silencioso: que sua luta não fosse esquecida, que as histórias de sua resistência e dos que vieram antes dele continuassem a ser contadas. Ele desejou que, de alguma forma, sua essência pudesse renascer, assim como a luz sempre retorna após a escuridão.
E assim, com o coração pesado, mas a alma leve, ele entregou-se à escuridão, sabendo que, mesmo nas sombras, sempre haveria uma centelha de esperança à espera de ser reacendida.
Enquanto o brilho da lua escarlate se intensificava, uma nova lenda começava a tomar forma, uma história que ecoaria nas almas dos que ainda se atreveriam a sonhar. Aetheria pode ter afundado na noite eterna, mas na memória de Kaelen, a luz ainda tinha seu lugar. E quem sabe? Um dia, talvez, a luz retornasse.