Minha madrinha, a condessa de Florestan, estava tão pálida e emagrecida!… Parecia um espectro e seus olhos fosforeciam como duas chamas satânicas. Senti medo e caí de joelhos, beijando a orla de seu amplo roupão de pelúcia.
Ela fitava-me friamente e tinha o aspecto de uma estátua fatídica, uma alegoria do irremediável. Na catedral próxima, os sinos dobravam e um ambiente de vidas irreais envolvia-me, como se todos os retratos do vasto salão fossem fantasias. Um terror extra-humano cercava-me.
Por que queria a condessa de Florestan que eu passasse a noite naquela casa? Aconteceu o que era fatal. Andei um pouco pelos corredores e fui atraído irremissivelmente pelo quarto mortuário de Blanca, que mal me atrevia a olhar, com o leito intacto e seus vestidos ainda pendurados a um cabide, junto à janela.
Chorei ali longamente e era já meia-noite quando Fabio, o velho criado, veio buscar-me e levou-me pela mão para o salão dos retratos tutelares, onde a chama de dois candelabros de bronze torciam-se no ar como répteis de ouro.
Junto à minha madrinha estava um ancião com longas barbas de profeta, envolto em um manto de forma antiquada, tendo a seu lado outro homem, de vestuário semelhante, embora mais moço e cego. Eu conhecia aqueles dois homens de os encontrar pelas estradas. Eram dois mouros, mendigos e curandeiros, que tratavam com ervas desconhecidas e prediziam o futuro.
— É este o menino? — perguntou o velho. — Tem bonitos olhos, desses que veem os espíritos. Dom precioso e temível! Tanto melhor, senhora. Será um instrumento magnífico.
Minha madrinha contemplava em êxtase os retratos de guerreiros, bispos e santas e brancas mulheres, que eram os seus antepassados.
— Deus me perdoe — murmurou ela. — Bem sei que condeno a minha alma entrando em pacto com bruxos e invocando poderes sobrenaturais. Vós, que conheceis a causa de meus pecados, rogueis por mim.
Havia no meio da sala uma cuba cheia de água, limalha de ferro e vidro moído. No fundo da cuba, dispostas como raios de uma roda, havia seis ou oito garrafas, das quais saíam varetas imantadas, segundo me informaram depois.
— Conheces Rogerio de Haro, o primogênito dos marqueses de Mântua?
— Sim, madrinha.
Se o conhecia! Sabia até que era ele o homem sem fé e sem palavra, que abandonara Blanca, depois de lhe haver jurado amor, causando sua morte.
— Pois bem—disse o feiticeiro cego.— Olha atentamente para esta água, olha bem e hás de ver aparecer no fundo Rogerio de Haro.
Eu nada via. A luz das velas, vacilando, lançava sobre o fundo negro da cuba pequenos pontos luminosos e trêmulos; nada mais. Mas, pouco depois, vi que a água tomava tons plúmbeos, que se foram conformando, pouco a pouco, permitindo-me divisar, afinal, a silhueta de uma rua longa e tortuosa.
—Vejo! — exclamei, enregelado de susto. — Vejo a rua da Fonte Velha.
— Segue, criança. Vai por ela, seguindo. Onde estás?
— Na praça. Diante dos arcos há uma porta iluminada. Ah! Aí vem Rogério. Está de pé, em plena luz.
E, de fato, eu tinha ali, diante de meus olhos, sorrindo, fanfarrão e provocante, o primogênito dos marqueses de Mântua.
—Vês? Vês bem? — E, perguntado assim, o cego punha-me na mão um punhal. — Então mata-o.
Fiz um movimento para me afastar, com horror, mas a voz de minha madrinha fez-se ouvir metálica e imperiosa.
— Mata-o. Que tem? É uma figura…
Não pude resistir ao sortilégio que me dominava e, por três vezes, cravei a lâmina na água, no lugar em que aparecia o peito e Rogério. A folha damasquinada chocou as garrafas diabólicas com ruído cristalino, que me enregelou. E, extenuado, por aquela liturgia sinistra, perdi os sentidos.
Posso dizer que só voltei a mim um mês depois, pois tanto tempo passei acorrentado ao leito, inconsciente pelo ardor de uma febre cerebral. Depois, a ninguém perguntei o que se pássara naquela noite horrenda. Minha madrinha nunca mais me falou nisso; passava noites e dias rezando e chorando silenciosamente; ou caminhando pela casa imensa, como uma alma penada.
A verdade é que nunca mais tornei a ver o belo cavaleiro de ares conquistadores. Nunca mais, como se a cuba o tivesse tragado para sempre. E, na fachada do palácio dos marqueses de Mântua, um ano inteiro, flutuou, sobre o escudo orgulhoso, a negra faixa do luto.
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