Era uma noite de lua minguante, a mais fraca de suas fases. Marc estava sozinho caminhando por um parque deserto da cidade, àquela hora da noite havia poucas pessoas na rua, praticamente ninguém. Escutou Steven dizer que era muito bom pra clarear os pensamentos, espairecer…
Mas Steven não podia saber do seu estado atual, não podia saber sobre a angústia que lhe assolava, seus pensamentos tomaram conta de sua mente de novo. Marc tinha muitas crises existenciais.
Mas sempre ficou calado, assumindo aquilo tudo para si para não afetar os outros, para não afetar Steven… para não afetar Layla. Se ao menos soubesse o quanto seria melhor falar com alguém, sair da tempestade de areia que o cegava pra vida, fazer algo a respeito do comportamento autodestrutivo que tanto alimentava.
Usando como desculpa que quando sua missão, sua dívida com Khonshu, fosse paga ele iria sair disso.
Mentira…
Estava mentindo pra si mesmo, como sempre. No fundo sabia que o trabalho lhe agradava, o que o matava lentamente eram suas crenças, mas sua mente já era uma loucura, dividir isso seria como o empurrar da corda bamba que definia sua vida. Sabe bem disso, só não conseguia admitir em voz alta.
Não que precisasse, não quando estava estampado em seu coração e face.
Sua mente se ocupava tanto em ser o "guerreiro de Khonshu" que mal conseguia pensar em si. Mas devia isso ao Deus, afinal tinha lhe concedido a chance de viver novamente, e em troca só pediu… sua liberdade. Talvez fosse até bom, temia que caso começasse a pensar demais sobre sua vida, decidisse acabar com ela.
Marc se perguntava às vezes como seriam as relações dos outros avatares com seus Deuses. Será que todos se sentiam usados por eles ou era apenas ele o grande sortudo por ter sido escolhido por Khonshu?
Preferia não pensar muito sobre isso para não brigar com o Deus da lua.
Suspirou parando de andar para sentar em um banco da praça, o céu estava bonito, estrelas brilhantes e uma bela lua fina minguante. Poderia até ter conseguido apreciar se Khonshu não tivesse aparecido.
Marc nem sequer disse algo ao sentir a presença do Deus egípcio, queria silêncio, paz, não as reclamações dele. Mas não demorou a se ver obrigado a responder quando a voz incômoda da divindade lhe alcançou os ouvidos.
— O que você pensa que está fazendo? — perguntou com um tom indignado atrás do avatar
— Não vou patrulhar hoje.
Marc disse com segurança, mas sua cabeça estava baixa e pesada, era sempre difícil ir de encontro com o querer do seu Deus. Cada confronto com ele era um confronto interno.
Konshu ficou calado por alguns longos segundos, não precisava de muito para saber que seu cavaleiro não estava bem. Mas isso ele já sabia, desde o momento que salvou a vida do mercenário no templo, a verdade é que Khonshu nunca foi do tipo cuidadoso, seus planos eram meticuloso, claro, mas a relação dele com Marc era de pura troca de interesses.
Era a primeira vez que ele se isentava de agir. Talvez agora realmente fosse sério para ele, Khonshu tinha ciência, não era tolo. Claro que os questionamentos de Marc o irritavam mas ele era a escolha perfeita para ser seu avatar.
Talvez Jake estivesse certo, devia conversar com ele.
— ¡Yo siempre! ha sido un idiota
Jake sussurrou depois de matar alguns criminosos, virando-se para Khonshu em seguida
— Será mejor que hagas algo al respecto. — Falou já num tom mais audível para o Deus
— O que quer dizer com isso?
Khonshu ficou bravo, birrento como uma criança. Entre os três, Jake era o único que nunca tinha questionado suas ordens mas agora estava dando conselhos? O que diabos estava pensando?
— Tu sabes cábron… El Marc — Disse rindo brevemente enquanto limpava o sangue de sua faca
Talvez estivesse sendo audacioso falando assim com ele, mas quem liga? teoricamente ainda era seu favorito e não queria mudar isso, apenas sabia que se Marc estivesse instável demais as coisas piorariam
Khonshu não disse nada, apenas sussurrou algum xingamento e desapareceu, Jake não insistiria, se o Deus fosse esperto o bastante pensaria sobre isso
— Pessoas estão morrendo enquanto fica sentado aqui, Marc Spector. Você jurou trazer a minha vingança aqueles que lhes fariam mal, é sua obrigação!
Chamou a atenção do mercenário. Ele sabia disso, mas as pessoas morrem todos os dias, não é? Ele não tinha poder o suficiente para impedir isso.
Khonshu estava certo, era sua obrigação, não podia fugir disso.
Mesmo que já tivesse tentando.
Nunca mais Khonshu ou Marc tinham falado do ocorrido, ainda lembrava da angústia que foi apertar o gatilho, o sangue e a dor percorrendo seu corpo intensamente antes de tudo se reduzir a nada, antes de sua mente apagar e seus olhos pesarem para não abrirem mais. Só para depois sentir tudo de novo, a dor, a angústia… não soube dizer nem quantos segundos demoraram para que para o Deus egípcio da lua o trazer de volta.
Khonshu não queria ter que lembrar Marc desse dia, vendo que nem mesmo ele gostaria de lembrar.
Não conseguiu ser um apoio para ele naquele momento então porque agora conseguiria? Apenas Khonshu saberia o quanto foi frustrante ver seu cavaleiro agir contra a própria vida e não ter chegado a tempo para o impedir, ter que trazê-lo à vida, ver o sangue e as lágrimas que pingavam do seu rosto e não saber o que dizer para impedir que ocorresse novamente, não saber como impedir que outra crise acontecesse.
"Nunca mais faça isso, estúpido."
Foram as palavras que disse a Marc naquele dia, ele não era bom com sentimentos, ambos não eram.
— Se incomoda você, ache outro guerreiro…
Marc tocou na ferida, e Khonshu bateu o cajado no chão em descontentamento. Gostaria de bater com o cajado em Marc, se fosse possível faria apenas de raiva pelas suas palavras, mas se conteve. Bem, conteve suas ações, já suas palavras…
— Para atentar contra sua vida novamente e eu não poder salvá-lo?
E lá estavam eles de novo em uma discussão como essa… Como se algum deles tivesse moral para dar conselhos um ao outro.
Marc apertou os punhos sentindo novamente aquela sensação ruim.
— Quem te deu o direito de falar sobre isso? Você nem sequer liga de verdade, eu só sirvo pra seguir as suas vontades não é?
O mercenário tentou manter a postura por mais tempo de levantando bruscamente porém não conseguia, claramente se sentiu afetado.
Ambos trocaram um silêncio mútuo por alguns longos segundos, ouvindo apenas o som do vento arrastar as folhas pelo chão até Khonshu decidir falar algo.
— Sabe por que eu o escolhi?
Marc suspirou pesadamente, se fosse dar outro maldito sermão sobre como ele deveria proteger os viajantes da noite em seu nome, que os Deuses lhe perdoem mas iria socar a cara de um, se isso fosse possível.
— Khonshu, eu juro que se for fal-
— Você tem a mente mais quebrada, fraturada e instável que encontrei. Suas habilidades como mercenário eram ideais, e você… naquele dia, estava disposto a arriscar sua liberdade por uma chance de viver
O Deus se aproximou um pouco de Marc que processava aquilo com calma, nunca tinha duvidado que Khonshu o usava para sua vontades mas escutar isso era de alguma forma… doloroso
— Achei que poderia usar isso, mas nunca cogitei que ficaria preocupado.
Marc paralisou. Como deveria reagir a isso? Desde de pequeno sofreu com o fato de sua mãe o maltratar e seu pai agindo como covarde sempre por não impedir, as vezes que chorou em silêncio no seu quarto para não escutarem porque sabia, e como ele sabia que se sua mãe levantasse ele ficaria de novo com marcas físicas das surras que levava. Carregaria para sempre na alma as cicatrizes dessa infância. Suas dores negligenciadas, essa "preocupação" que Khonshu dizia ter, ele não fazia ideia de como era.
— Não pense que vou deixá-lo morrer ou se perder no caminho que trilhei para você. — Bateu o cajado no chão com uma leve alteração vocal, e o chão tremeu em reação
As palavras ressoaram em Marc, Khonshu tinha esse efeito sobre ele, a voz do Deus era sempre rude, causava uma sensação amedrontadora de início, e ouvir palavras tão belas vindo dele, era dulcificante.
Não era errado, talvez só… desesperado. Ele e Khonshu.
Sentiu sua face úmida com as lágrimas que escorriam e simplesmente não conseguiu controlar, abaixando a cabeça para não mostrar isso tão bem, tentando limpar apressadamente o rosto e controlar a respiração. Se sentiu como uma criança.
— Marc, não… não chore, não era a isso que queria chegar. — Khonshu fez um som que se ouviu direito, poderia jurar que estava suspirando
Marc sentia um calor reconfortante dentro de si, e em seus lábios, aos poucos, surgiu um sorriso suave. Khonshu se aproximou e acariciou o rosto dele com uma leveza de se surpreender, levando a mão até seu cabelo, onde descansou.
— Hoje ocorrerá algo interessante no céu
Marc ergueu a cabeça para olhar Khonshu que tirou a mão de sua cabeça.
— Como assim interessante?
Perguntou com uma voz vacilada, não era comum para ele, mas típico nesses momentos.
— Verá.
O mercenário então escutou e se sentou no banco que antes estava. No fundo ainda estranhava aquela simpatia de Khonshu, mas não iria questionar, tinha gostado… não queria que acabasse.
— Contemple, Marc Spector.
Ele olhou pra cima vendo as estrelas caírem aos poucos, uma chuva de meteoros… Marc não era tão ligado em coisas assim, mas até pra ele aquilo era lindo. Era realmente como se estivesse chovendo estrelas, brilhantes e cheias de sonhos.
— Você fez isso? — Questionou curiosamente mas num tom ameno, e Khonshu se pôs a responder
— De certo modo, sim…
— É lindo. Faz a noite parecer segura
Khonshu ficou contente com a resposta, com certeza futuramente iria se gabar para ele.
— A noite não trás apenas hostilidades — Acrescentou de forma necessária.
Talvez a relação deles melhorasse com isso. Não sabia dizer se tinha sido completamente honesto ou se sequer tinha tido o mínimo de honestidade em alguma das palavras de Khonshu, mas não importava. Foi a primeira vez que sentiu-se cuidado por alguém, sentiu que poderia deitar a cabeça e ter um apoio… então quem liga se fosse só mais uma tentativa de o manipular, tinha dado certo.