A máscara da verdade
Autor(a): Luiza Santos
suspensa/crime;Terror
Tudo começou quando eu tinha 7 anos, e fui adotada por uma família que parecia muito com a história da "noiva cadáver". A casa era enorme e tudo de muito bom gosto, era tudo muito diferente da realidade com a qual estava acostumada no orfanato, que mal tinha saneamento básico. Naquela casa, tudo parecia ser mágico aos olhos de uma criança de sete anos. A maioria das coisas era motivo de alegria e tudo tinha magia, mas aquela casa era realmente diferente de tudo o que já havia presenciado ou sequer imaginado. Minha imaginação sempre foi muito fértil e, por conta disso, me deu muito trabalho para começar a pensar na realidade sempre que me deparava com algum cenário estranho ou que não gostasse. Minha mente fantasiava aquela situação como queria e deixava tudo mais macabro, via monstros e fantasmas. Mas ninguém acreditava, até porque aquilo era papo de doido. A primeira vez que tive essas alucinações foi naquela casa, na casa dos Almeida Barros. Na casa, havia vários retratos de familiares e muitas fotos espalhadas. Arriscaria dizer que havia mais fotos do que qualquer outra coisa naquela casa de dois andares, a maioria de pessoas mortas e pálidas.
Quando cheguei na casa pela primeira vez, meus novos pais me apresentaram toda a casa, mas o que mais me chamou atenção foi o piano enorme que ficava estacionado na sala, parecia até uma penteadeira. E adivinha só, aquele piano também era de um parente falecido. Aquela casa cheirava a morte e tinha um clima pesado no ar, talvez nem água benta fosse suficiente para tirar tudo de ruim daquele ambiente.
Quando subi as escadas, cheguei ao meu quarto, que era lindo, muito mais do que eu esperava. Só o guarda-roupa dava a impressão de que iria me devorar, de tão grande. Minha cama era feita do tecido mais requisitado naquela época, e a penteadeira que tanto sonhava em ter um dia estava ali, bem na minha frente, e não tinha nenhuma marca de uso. Minha mão percorreu cada gaveta daquela penteadeira, e cada detalhe feito à mão era uma obra de arte. O colchão, então, parecia uma nuvem de tão macio e confortável. Mas mesmo assim, a casa me deixava conturbada. Algo ali me deixava atordoada, mas não sabia o que.
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Já era noite e as luzes automáticas se acenderam às 19h. Enquanto uma intensa sensação de frio pairava no ar, parecia que ia nevar. Estávamos em novembro, aqui em Londres nem era uma época de tanto frio assim. As roupas de meu pai e minha mãe eram muito refinadas, a propósito. Minha nova mãe e meu novo pai eram muito elegantes. Meu pai tinha olhos azuis, cabelos sedosos e loiros. Seu corte de cabelo era muito moderno e suas vestimentas eram feitas à mão, de acordo com o que pedisse. Já minha mãe era ainda mais bonita e estilo, tinha traços finos e lábios avermelhados naturalmente. Seus olhos eram de um verde vibrante, seus cabelos eram ondulados e castanhos, e suas roupas eram de grife, do mais luxuoso, deveriam custar um carro só a bolsa que estava usando naquela noite.
O motivo por terem me adotado não sabia ao certo, mas geneticamente falando realmente me parecia com eles. Talvez essa semelhança tenha sido o motivo da adoção, já que eu tinha os cabelos castanhos ondulados, assim como os de minha possível mãe, e olhos tão azuis quanto os de meu possível pai, e a pele tão branca quanto a deles. Em um momento, até cheguei a pensar que era albina, mas era só falta de sol. Aliás, os dois devem estar com a vitamina D bem desregulada. Tanto meu pai quanto minha mãe eram altos e com o biótipo magro. Os dois eram bem bonitos e eu ficava no meio termo. Até agora não me apresentei, mas meu nome é Sophie, um nome bonito para uma menina de orfanato. Normalmente, os ricos que têm esses nomes mais requisitados e chiques.
Estava de pijama, meu pai estava no escritório fazendo algumas ligações que pareciam ser importantes, e minha mãe estava no computador. E bom, eu estou escrevendo no tablet que me presentearam essa manhã assim que cheguei. Sem dúvida, eles são muito receptivos, simpáticos e têm muita paciência. Fiz diversas perguntas desde que cheguei e responderam todas as minhas palavras confusas. Depois, me contaram toda a história da família e o legado de cada um na sucessão. Ambos pareciam vampiros e eram sinistros, mas logo descartei essa conclusão, até porque não tinham medo de crucifixo e alho e ficavam uma quantia considerável de tempo no sol. Lobisomens provavelmente também não são, já é lua cheia e já passa de meia-noite. Eles devem ser liberais para uma criança ficar acordada até aquela hora, ou apenas seria um privilégio por ser minha primeira noite aqui. Talvez fosse isso. Já estava cansada de escrever, queria dormir, o dia havia sido agitado, mas nenhum dos dois se impunha nessa função, então eu mesma resolvi anunciar meu sono
- Amélia - disse em tom calmo -
- Oi, querida, precisa de alguma coisa?
- É que... estou cansada, o dia hoje foi agitado .
- Nossa, já passa da meia-noite, já deveria estar na cama. Foi um deslize meu, me perdoe. É que hoje foi tudo tão corrido e um dia de grandes mudanças em nossas vidas -.
- Com certeza foi -.
- Vamos, vou te levar para a cama -.
Ela desligou o computador e segurou minha mão. Meu suposto pai ainda estava no telefone quando passamos em frente ao seu escritório. Minha suposta mãe e eu estávamos subindo devagar as escadas. Sem dúvida, eram muitas escadas. Vou demorar a me acostumar a chamá-los de pai e mãe e tirar esse "suposto" imposto por mim.
- O que achou de seu quarto, Sophie? -
- Achei muito lindo, obrigada -.
- Fico feliz que tenha gostado -.
Depois de subir todos aqueles degraus, tive a confirmação de que não aguentava dar nem mais um passo em direção às escadas. Elas cansavam muito, eram uma ótima estratégia para uma pessoa com insônia. Quando finalmente cheguei em meu quarto, fui correndo para a cama, me desprendendo da mão de Amélia e entrando no edredom, que era macio e quente naquele dia frio.
- Boa noite, Sophie. Se precisar de alguma coisa, estarei no quarto ao lado. Tenha bons sonhos.
- Obrigada e boa noite.
Ela ligou o abajur, apagou a luz e fechou a porta em um toque delicado. Fiquei ali, refletindo sobre tudo que havia acontecido até hoje. Estava cansada, mas meus pensamentos prendiam meus olhos. Não estava acostumada com a cama, por isso me sentia estranha deitada ali. Quando finalmente consegui pregar os olhos, ouvi gritos e uma discussão abafada no quarto de Amélia e Ricardo, meu suposto pai. Estava curiosa para saber do que se tratava a discussão. Então, levantei da cama e fui correndo até a porta. Meus ouvidos eram novos, o que me proporcionava uma audição muito melhor.
- Como assim você está grávida? A quanto tempo está escondendo isso?
- Estou grávida de 5 meses, mas minha barriga ajudou a esconder isso.
- Por que me escondeu esse bebê? Sabe que é tudo o que queríamos nos últimos anos e quando finalmente dá certo, você me esconde a notícia que irá mudar para sempre nossas vidas.
- Não sei, caramba, receio talvez - disse ela impaciente.
- Como assim receio, Amélia? - disse meu pai aumentando o tom.
- Você poderia querer devolver Sophie para adoção, sei lá - disse ela em tom de choro.
- Ei, escuta, olha pra mim. Eu jamais iria fazer isso, aprendi a amar Sophie como nossa filha de sangue todos esses meses em processo de adoção, visitando e a levando para passeios. Eu me apeguei muito a ela
Amélia começou a chorar, me sentia culpada por aquilo. Se eu não estivesse aqui, eles não teriam que ter essa pressão em cima deles. Me sinto como um peso na vida de meus pais. Talvez nem devesse estar aqui, deveria estar no orfanato ou na rua, mas em vez disso estou em uma mansão de um luxo incrível e mesmo assim sou ingrata. Realmente não mereço estar aqui. Mas se for embora, Amélia pode ter um impacto muito forte e correr o risco de perder o bebê. Aí sim, nunca iria me perdoar. Não iria conseguir dormir à noite caso isso acontecesse. Estava ouvindo passos em minha direção. Corri para a cama sem fazer barulho, por incrível que pareça e me virei, até que alguém abriu a porta.
- Sophie está acordada?
Era meu pai e não queria mentir.
- Estou com dificuldades para dormir, mas o colchão é o mais confortável que dormi em toda minha vida
Ele se aproximou da cama e me cobriu.
- Fico feliz que tenha gostado do colchão, mas tenho certeza que daqui a pouco seu sono também irá se acostumar com sua nova casa
- É... acho que sim
- Desculpe interromper seu descanso, mas... Amélia e eu queremos te dar uma notícia muito importante que mudará nossas vidas para melhor. Um sorriso sincero estava em seu rosto e lágrimas ocupavam seus olhos, mas pareciam ser de emoção.
- O quê? O QUÊ! - disse fingindo empolgação, pois já sabia da notícia, mas qualquer deslize poderia ser um pretexto para me devolverem no orfanato. Ainda não sabia do que meus novos pais eram capazes. Eram boas pessoas, isso era indiscutível, mas ainda não tínhamos convivido juntos e as coisas mudam quando passamos 24 horas juntos, ainda mais agora que Amélia está de férias e meu pai trabalha em home office. Tenho medo que eles me conheçam de verdade e não gostem da minha personalidade do dia a dia. Amélia entrou pelo quarto e fechou a porta com lágrimas nos olhos e o cabelo um pouco desajeitado. Nunca tinha visto meus pais desarrumados, sempre estavam muito elegantes em todas as vizitas e passeios. Pensei que pessoas de boas condições sempre estivessem bem arrumadas. Bom, eu disse que quando moramos juntos as coisas mudam, mas ainda não descobri se é para melhor ou para pior. Esse risco vou ter que correr. Amélia se sentou na cama ao lado de Ricardo, ele colocou a mão em seu ombro como um gesto de apoio. Amélia olhava para o edredom como se estivesse selecionando as palavras certas. Ela segurou minha mão e finalmente cortou aquele clima de dúvida entre nós.
- Meu amor... como o Ricardo disse, temos uma notícia muito, muito importante para dar a você.
Me sentei na cama e olhei profundamente em seus olhos alagados.
- Eu estou grávida e terá mais uma criança em casa agora, tipo um... irmãozinho, que irá te fazer companhia e brincar com você todos os dias.
Uma expressão triste e sem vida deu lugar para um sorriso radiante logo após se dar conta do que havia dito
Não sabia o que dizer. Pensei que soubesse, pois já tinha ouvido a conversa, então meu cérebro deveria ter criado um diálogo para esse momento, mas descobri que ele não criou nada.
- Sério?! Vou ter um irmãozinho ou irmãzinha! Este é o dia mais feliz da minha vida, eu amo vocês.
Dei um abraço de relance nos dois, seus músculos estavam tensos, mas iam voltando ao normal na medida que os abraçava. Não estava tão feliz assim, agora as chances de voltar para o orfanato eram muito maiores, era só questão de tempo até eles descobrirem que sou sem graça e não faço diferença alguma no dia a dia deles.
- Então, você gostou da notícia? - disseram meus pais com brilho nos olhos.
Comecei a pular na cama e sorrir.
- Estou muito feliz, não poderia ter melhor notícia.
Dessa vez, os dois tomaram iniciativa e me deram um longo e demorado abraço, e só saíram do quarto quando peguei no sono. Ficaram ali segurando minha mão e, quando perceberam ou acharam que havia dormido, saíram do quarto aos risos por minha reação. Ao menos alguém está feliz com isso... Eles não têm culpa da minha insegurança. Não posso puxar meus pais para o abismo junto comigo.
Todos os dias depois daqueles foram de pura alegria e mudança. Fui para uma escola nova, entrei no meio do ano, mas mesmo assim consegui acompanhar a matéria e descobri que era ótima em matemática. A cada dia que se passava, a barriga da mamãe crescia. Com o tempo, aprendi a chamá-los de papai e mamãe. Na verdade, não demorou muito, apenas algumas semanas ou talvez meses. Todas as noites, papai tocava piano antes de dormir e colocávamos música clássica durante uma hora na barriga da mamãe. Papai dizia que o bebê nascia mais inteligente. Não sei se acredito muito nisso.
Todas as noites eles me colocavam para dormir e me acostumei com minha cama nova, assim como papai me disse. No decorrer dos meses, também descobri que gosto de pasta de amendoim. Tudo isso em apenas alguns meses. Esses meses mudaram completamente minha vida e agora posso afirmar, para melhor, que eles são os melhores pais do mundo. Fazemos tudo juntos, cozinhamos juntos e às vezes até durmo junto com eles. E agora falta uma semana para o bebê nascer. Ops... esqueci de mencionar, mas o bebê é menino e vai se chamar James. Achei um nome autêntico e moderno. Finalmente conheceria meu irmãozinho e ensinaria tudo que sei para ele. Nossos aniversários são no mesmo mês, então faríamos juntos.
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Ele nasceu há uma semana e se parece tanto com mamãe quanto com papai. Ele tem olhos azuis e cabelos castanhos ondulados, assim como os de mamãe, mas seus traços lembram muito papai. Daqui a cinco dias é meu aniversário. Estou muito feliz. Vai ser meu primeiro aniversário com minha nova família. Agora me sinto completa. Tenho um irmão, uma mãe e um pai que me amam e fazem tudo por mim. Todas as noites que chorei no orfanato tiveram um propósito que só fui capaz de reconhecer agora.
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•A REALIDADE NEM SEMPRE IRÁ SER UMA BRUMA DE ALEGRIA
Hoje é meu aniversário de oito anos, e tive tudo que sempre sonhei. Vários fotógrafos e vários parentes de minha nova família me conheceram; todos são muito simpáticos e legais, especialmente meu tio Richard, ele é muito amigável e me deu muita atenção. Em meu aniversário, tinham vários balões coloridos e um bolo enorme. O tema foi "A Bela Adormecida", e minha fantasia é igual a dela. A mesa está repleta de docinhos, e minha música preferida está tocando. Eles pensaram em tudo e convidaram até meus amiguinhos da escola nova, que eram Lorenzo e Alice. Lorenzo veio vestido de príncipe e Alice de Mérida; os dois estavam adoráveis em suas fantasias. Brincamos a festa toda e ganhei vários presentes: ganhei cinco Barbies, 10 pares de sapatos, 20 vestidos mas o que mais gostei foi um caderno com a capa roxa que a partir de hoje seria meu novo diário, onde irei confidenciar todos meus segredos e todos os momentos ao lado de minha nova família.
Ainda tinham vários outros presentes que papai e mamãe me ajudariam a abrir. Eles continuam me dando muita atenção mesmo depois do nascimento de James, continuam me dando muitos presentes e sorrisos ao decorrer do dia. Sempre que podem, me levam para o parquinho todo final de semana, e no próximo mês iremos viajar. Estou muito ansiosa, mal posso esperar.
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• A máscara da inocência perdida
Hoje em dia tenho doze anos e fiquei muito tempo sem escrever nesse diário. Ficou sem sentido por um tempo; pensei que ele fosse apenas para boas lembranças. Não queria ocupar suas páginas com notícias ruins, mas as coisas não ocorreram como esperado. Tudo está dando errado ultimamente, e não é por conta da pré-adolescência, ou talvez seja... Sofro bullying e não tenho mais amigos como antes ou melhor não tenho nenhum. Mudei de escola, e meus pais não gostam mais de mim como antes. James está com quatro anos e faz coisas muito estranhas. Mas sempre que conto aos meus pais, eles não acreditam em minhas palavras. E até imagino o motivo. Eu também não acreditaria em uma órfã toda desengonçada. Mas estou falando a verdade. James, até os dois anos, era um amor de criança, sorria para todos e era super brincalhão. Mas quando fez três anos, parece que uma chave mudou em sua cabeça. Ele começou a agir como um psicopata. Tudo começou quando ele pegou uma faca e cortou a pata do nosso cachorro. Se não estivesse lá, ele teria amputado a pata. Mas, como cheguei a tempo, joguei a faca longe e fiz um curativo na pata de Cheese. Poderia ter sido fatal, mas isso nem foi o pior. Na segunda vez, James acordou de madrugada falando que teve um pesadelo. Ficou gritando incessantemente até que eu abrisse a porta do meu quarto. E quando abri, ele disse que estava desesperado, mas mesmo assim não entendia o porque suas palavras eram confusas e atropeladas nunca o vi naquele estado ou pensei em presenciar algum dia ele chorava sem parar. Quando acendi a luz, procurando entender a causa de todas aquelas lágrimas me deparei com sua boca cheia de sangue, mas parecia não ter machucado nenhum dente e nem ser um dente de leite. Era Apenas sangue. Ou sei lá o que era aquilo em sua boca. Poderia ser ket chup para me pregar uma pessa, ou uma pegadinha de Halloween. Mas era julho, então descartei essa possibilidade. Fiquei ali encarando seu semblante, enquanto meu cérebro tentava decifrar aquela cena de ante de meus olhos incrédulos duvidando do que viam. Quando James se aproximava, sua expressão estava mudando. o medo ficava cada vez maior e A essa altura, as lágrimas já tinham desaparecido completamente de seus olhos. Ele ia se aproximando cada vez mais com seus passos leves e angustiantes, e me encurralando. Eu ia me afastando até que tinha chegado ao limite e não tinha mais passos a dar. Aquela expressão em seu rosto não era de um bebê normal. Suas sobrancelhas estavam franzidas, seus lábios estavam arqueados, e seu pescoço inclinado como se estivesse quebrado. O desespero havia tomado conta de mim. Meus batimentos estavam acelerados, e James estava ofegante. Ele gostava de medo. Quanto mais olhava em seus olhos, mais via que aquele não era meu irmão. E por que raios sua boca estava vermelha? Não conseguia dizer nada. Ele estava rente a mim até que tirou uma tesoura do bolso. Empurrei aquele ser de minha frente, que por mais que fosse uma criatura maligna, ainda estava no corpo de um bebê. Fui correndo para o corredor, em direção ao quarto de meus pais, mas antes que isso fosse possível, me deparei com o corpo de nosso cachorro pendurado em frente ao quarto de nossos pais. O cachorro estava com marcas de dentes e de tesoura. Parecia um pedaço de carne pendurado na vitrine de açougue. Não conseguia pensar. Minha cabeça estava latejando. Senti um toque em meu ombro. Quando me virei, era aquela atrocidade que chamava de irmão. Ele tinha matado nosso cachorro e ainda me mostrou a prova do crime. Ele não tinha medo, sua maldade não conhecia limites. Pelo contrário, tinha confiança. Até demais. Chegava a ser audácia. Ele não era o bebê de sardinhas que beijava há dois anos atrás. Alguma coisa havia tomado seu corpo. Não tinha mais medo. Tinha raiva. Muita raiva. Ele ficou ali parado, me encarando, enquanto o sangue de nosso cachorro pingava em minha testa como uma torneira falhando. Aquilo me dava calafrios. Não podia ficar ali parada a noite inteira. Já eram duas da manhã, e precisava tomar alguma atitude. Corri para a porta do quarto de nossos pais, bati e gritei com toda força que me restava:
- Pai! MÃE! SOCORRO! O FILHO DE VOCÊS É UM PISICOPATA!
Eles não acordavam, e não havia som de seus passos. James ia se aproximando vagarosamente. Bati com mais força e dei o grito mais agoniante:
- SoCorro, paiiiiiiiiii, maeeeeee, acorda, acorda caramba!
Será que ele tinha feito algo com nossos pais também? Meu Deus, agora tudo faz sentido. Saí correndo de lá. Estava tonta, e a bile subia em minha garganta, mas me contive. Era correr ou morrer. Não sabia o que aquela alma era capaz, e nem o que exatamente estava no corpo de James. Não encontrava as chaves para abrir a porta de jeito nenhum. Até que ouvi passos descendo as escadas. Não encontrava aquela maldita chave em lugar nenhum. Estava chorando descontroladamente, e a essa altura já estava respirando pela boca de tão ofegante. Os passos iam aumentando a cada segundo era uma nova possibilidade uma nova teoria que surgia em minha cabeça. Quando virei para trás, eram meus pais. Estavam correndo e me abraçando por trás:
- Filha, acorda! É um pesadelo. Tem que acordar desse subconsciente.
Quando me dei conta, acordei desesperada minha roupa estava enxarcada e estava me sentindo extremamente quente sem ao menos me tocar. Era tudo um pesadelo. Como assim isso não era possível? Eu vi tudo, eu vivenciei aquilo. Não estava à beira da loucura. Eu devo ter desmaiado na sala minha pressão certamente deveria ter caído e meus pais só não querem tocar no assunto para não me assustar mais com certeza deve ser isso. Estava muito ofegante foi muito real. Me recuso a acreditar que foi tudo fruto de minha imaginação, que nem é tão fértil a esse patamar.
- Pai, mãe, vocês têm que acreditar em mim, pelo amor de Deus.
- Calma, meu amor. Respira fundo, fica calma. Nós estamos aqui com você.
Os abracei com toda minha força, soluçando e com falta de ar. Será que estava tendo alucinações? Será que estava com esquizofrenia ou algo do tipo? Não pode ser. Esses olhos arregalados de medo, essas mãos trêmulas e molhadas de suor frio não podem ser fruto de uma criação do meu subconsciente. Eu sempre soube que essa casa não era normal. Ou talvez fossem as pessoas.
Minha mãe saiu do abraço e disse, segurando minhas mãos:
- Filha, olha, eu sei que às vezes é difícil separar realidade de ficção, ainda mais você, que adora ler. Isso deve ficar confuso às vezes para seu cérebro, mas está tudo bem. Nada de ruim vai te acontecer.
Ela estava aflita seu toque era trêmulo e seus olhos suplicava por alguma explicação
- Pai, mãe, eu juro que tudo o que vivi foi real. Eu senti tudo com uma precisão real. Meu irmão estava me perseguindo e tinha pendurado o Cheese em frente ao quarto de vocês, como um contrafilé. Ele estava todo mordido e cortado. Ele até me mostrou a prova do crime, eu juro.
- Já chega, Sophie, não quero mais ouvir essa história.
- Calma, Ricardo, ninguém precisa aumentar o tom de voz aqui.
- Para mim já deu, estou no meu limite.
Ele saiu andando sem ao menos olhar para trás, mas fez questão de dizer algo para complementar sua ação, como costumava fazer:
- Aliás, tudo isso aqui já passou dos limites. Você precisa de ajuda psicológica, o mais rápido o possível
Ele saiu pisando fundo. Por que ninguém acreditava em mim? Que droga. Eu estou falando a verdade. Eu sou tão inútil a ponto de meus argumentos serem tão fracos?
Minha mãe me tomou nos braços e disse em um tom sereno a fim de me acalmar
- Calma, filha, seu pai está nervoso, falou tudo de cabeça quente. Mas a psicóloga realmente poderia te ajudar. Todos precisamos de um psicólogo algum dia.
Disse minha mãe, gritando como se fosse uma indireta para meu pai.
Saí do abraço agradecida mas precisava fazer a pergunta que me traria paz novamente
- Cadê James? Eu quero ver. Preciso vê-lo.
- Amanhã você vê seu irmão. Agora está tarde. Se ele acordar no meio da madrugada, é difícil que volte a dormir - disse ela em tom paciente como de costume.
- Mãe, por favor, para eu começar a assimilar toda essa história, tenho que ao menos ver se meu irmão está dormindo. Se isso realmente é fruto da minha imaginação, preciso de provas para mim mesma.
- Tudo bem, filha. Se isso vai te deixar mais tranquila, não vejo por que não.
Fomos até o quarto de meu irmão, que não ficava muito longe dali. Quando abrimos a porta, tudo parecia normal. Minha mãe acendeu a luz, e vi James ali, dormindo como um anjo em uma nuvem, não a ovelha negra que havia visto minutos atrás. Cheguei mais perto para ter certeza de que tudo aquilo não era apenas uma armação de meus pais. Não sabia até que ponto estavam envolvidos ou se tinham culpa no cartório, sempre foram muito reservados. Talvez todos esses anos fossem apenas uma amostra de quem eles fossem de verdade. Não tinha como provar o contrário, nem a realidade. Coloquei a mão no rosto de meu irmão e não encontrei nada de anormal, mas ele não acordava mesmo com os toques em sua pele e a luz forte refletindo em seu rosto.
- Vamos, filha, está tarde. Amanhã você tem aula, e eu irei trabalhar. Todos nós precisamos descansar depois desse tumulto.
- Mãe... posso te fazer uma pergunta?
- SIM, por que não?
Ela se ajeitou na cama parecendo desconfortável com a situação e preocupada com o que eu pudesse dizer e ela não tivesse uma resposta pronta para a pergunta ou boa o suficiente
- Por que meu irmão não acorda? Ele sempre teve sono leve, e ele não acorda.
- Ele só deve estar cansado, filha. Não se preocupe, agora vamos.
Seu tom estava estranho, tinha um sorriso forçado e ao mesmo tempo reconfortante em seus lábios. Estava calma demais para toda aquela situação. Ninguém era centrado daquela forma nem mesmo minha mãe.
- Está tarde mesmo, melhor voltarmos a dormir - acrescentou Sophie.
- Se quiser, posso dormir com você, filha. Talvez se sinta mais segura.
- Obrigada, mas estou bem. Já me recuperei do susto. Talvez fosse só meu cérebro querendo me pregar uma peça, só isso - disse de forma ironizada mas que parece ter sido o suficiente para acreditar em minhas palavras.
- Bom... se prefere assim, tudo bem. Mas qualquer coisa, estarei em meu quarto. Pode me chamar.
- Tudo bem, obrigada.
Ela me deu um beijo na testa antes de sair e lançou um olhar reprovador quando pensou que estava dormindo.
Ela finalmente abriu a porta. Senti uma brisa em minhas costas e engoli em seco. Tudo aquilo era macabro demais.
- Boa noite, filha. Durma bem.
- Obrigada, você também.
Me levantei com o impulso de trancar a porta, para evitar uma visita indesejada em meu quarto. Só não voltei no quarto de meu irmão porque não sei até que ponto estou certa, e muito provavelmente nunca irei saber
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Agora estou na sala de espera para minha segunda sessão com uma psicóloga. O nome dela é Sarah, e parece ser uma pessoa simpática. Só conversei com ela junto de meus pais, mas tive uma boa impressão, pelo menos nisso. Nesses últimos dias, tudo tem sido muito confuso. Não sei em quem acreditar. Posso estar enlouquecendo aos poucos. Essa ideia estava me atormentando dia após dia. Minha intuição me diz que estou certa, mas as pessoas dizem o oposto. Se persistir nessa história, podem me dar o laudo de esquizofrênica, o que não duvido nada.
A secretária me chamou, tirando-me dos pensamentos. Demorei um tempo para raciocinar, peguei a bolsa e me despedi de minha mãe, que provavelmente iria ficar me esperando na recepção.
Abri a porta, reunindo coragem para entrar e encarar o que quer que fosse dentro daquela sala.
- Pode entrar, fique à vontade.
Agora era tarde demais para desistir. Parecia que ela conseguia perceber minha presença de alguma forma, mesmo estando com apenas uma fresta da porta aberta e uma mínima fonte de luz refletindo ao lado de sua mesa.
Entrei com um sorriso tímido, fechando a porta sem fazer o mínimo barulho. Ela se levantou e me cumprimentou com um aperto de mão.
- Oi, tudo bem, Sophie? É um prazer revê-la novamente.
Antes que pudesse responder, não pude deixar de reparar nos emails separados por títulos, totalmente organizados.
- Tudo sim, o prazer é todo meu.
Dei um sorriso forçado, retribuindo o afeto de alguma forma.
- Sente-se, por favor.
Me sentei, colocando a bolsa no colo, e fiquei observando a sala por um tempo. A Dra. Sarah estava digitando algo enquanto isso fiquei observando o consultório com um olhar curioso. As paredes eram beges com detalhes brancos, e tinham várias estantes com brinquedos e uma mesa para desenho provavelmente. A mesa era branca, e a cadeira em que estava sentada também. As cores daquela sala eram tão vazias quanto meu vazio, que jamais seria preenchido.
Nunca confiei em psicólogos. Acho todos forçados e que têm alguma câmera ou microfone gravando tudo que falo. Acho que estou apenas paranóica, ou talvez não.
- Bom, vamos dar início à nossa consulta. Você tem 12 anos, certo?
- Sim...
- Me conte um pouco sobre você, o que gosta de fazer, por exemplo.
- Gosto de livros, e às vezes me arrisco na arte.
- Quer dizer que estou diante de uma artista. Me sinto lisonjeada.
- Ninguém sabe que gosto de arte, só meus amigos e... agora você.
Ela saiu da cadeira onde estava desde o início da sessão e virou a cadeira em minha direção, olhando diretamente para mim.
- Sei que é difícil confiar em alguém que mal conhecemos, mas me considere como sua amiga, só que uma amiga que estudou para te dar conselhos e te orientar sobre suas dúvidas, e te ajudar com inseguranças.
Seus olhos eram expressivos e de um azul vivido. Se os olhos são o espelho da alma, não tenho como saber, mas os dela, com certeza, são.
- Ok, entendi.
Ela segurou minha mão e disse totalmente convicta de seus pensamentos:
- Eu só quero te ajudar, mas preciso que confie em mim. O que acha de começarmos por seu pesadelo?
- Aquilo não foi um pesadelo. Porque ninguém acredita em mim? Só porque sou criança significa que estou mentindo?
- Sabia que muitas vezes crianças são mais sábias que muitos adultos e têm uma pureza que todos nós deveríamos ter.
- Quem dera se todos entendessem isso. Especialmente em relação ao meu "pesadelo"
- Talvez as pessoas não acreditem ou não entendam tudo isso porque foi muito de repente e é muito recente... Quando você começar a entender o que esse acontecimento representou na sua vida e se foi um pesadelo ou não, a terapia vai te ajudar nesse quesito. Juntas vamos encontrar uma solução. Agora eu te pergunto: por que acha que foi real?
Ela largou minhas mãos e recolocou a cadeira na posição inicial, para me dar espaço para pensar, o que achei sensato de sua parte.
- As sensações eram reais demais para ter sido mentira. Já tive pesadelos suficientes para saber o que é
- Talvez fosse um pesadelo mais realista, é uma possibilidade, não?
- Esse não, esse foi real, eu sei, eu sinto, eu não estou louca.
- Ninguém disse isso.
- Mas todos insinuam isso.
- Além de tudo ter sido muito real, o que mais te leva a pensar que não foi apenas ficção?
- Na hora em que ouvi o passo de meus pais descendo as escadas, senti minha pressão caindo. Foi como se tivesse desmaiado e eles tivessem me colocado na cama e depois falado que foi apenas um uma paranoia.
- O que te leva a pensar que seus pais mentiriam para você a esse ponto e qual seria a motivação deles para isso?
- Proteger James, meu irmão mais novo, como fazem tantas vezes.
- Na primeira sessão, você me contou tudo sobre isso, mas tiveram outros episódios com seu irmão?
- Teve um dia que meu irmão tentou amputar a pata de nosso cachorro, o Chaase, com uma tesoura, e meus pais não acreditaram em mim, mesmo com as mãos de James cheias de sangue e a tesoura ali na minha mão. Eles falaram que era ciúme e que o cachorro tinha apenas se machucado ou algo do gênero.
- Para afirmarmos algo, primeiro você precisa estar totalmente convicta de que pelo menos esse primeiro acontecimento é real. Se tirar a conclusão que tudo isso que me disse é real, ou ao menos a primeira parte, já temos uma base para entender o segundo acontecimento, e as coisas irão ficar cada vez mais claras. Mas eu preciso que me dê certeza que é verdade. Não vai ser de repente que você vai tirar essa conclusão. Psicologia é um processo, primeiro precisamos criar a base que é a confiança, e depois os outros andares que são seus medos, suas dúvidas e assuntos que te incomodam.
Fiquei refletindo por um tempo todas aquelas palavras e quando assimilei, finalmente consegui formular uma resposta descente.
- Eu juro que pelo menos o primeiro episódio é verdade. Eu até dei pontos na pata de meu cachorro. Eu vi meu irmão todas as vezes que ele tem essas atitudes, o olhar dele fica estranho, é confuso...
- Estranho como?
- Não sei... assustador, esquisito.
- Suponhamos que o primeiro acontecimento é verdade.
- Mas é verdade.
- Ok... mas seu cérebro não pode apenas ter criado esse segundo cenário com base no primeiro? Não podemos descartar nenhuma hipótese, por mais simples ou estranha que seja. Nosso cérebro é um mistério, no qual, nós, psicólogos, tentamos entender dia após dia, e até nós ficamos em dúvida às vezes. É totalmente normal.
- Eu já disse que é verdade, agora depende de você acreditar ou não na minha versão.
- Nós duas precisamos refletir sobre tudo isso. Por hoje é só. Vou te passar um exercício para praticar em casa. Vai te ajudar a pensar melhor. Tente entender o lado dos seus pais e em tudo que eles disseram, não apenas na sua versão. Quando olhamos o todo, aprendemos a observar ao invés de olhar, aprendemos muito mais. Então, observe mais as pessoas ao seu redor para tirar qualquer conclusão, eu acredito em você, mas minha função como psicóloga é te fazer entender seus pensamentos, e não posso aprovar tudo.
- Entendi... obrigada pela conversa.
- Imagina, até a próxima sessão. E olha, tenho que admitir, você foi um dos casos mais intrigantes de todos pacientes até hoje. Vamos desvendar isso juntas, eu prometo.
Ela se levantou da cadeira e senti uma vontade repentina de dar um abraço em Sara, mas achei melhor não. Poderia ser estranho, mal nos conhecíamos, então dei apenas um sorriso e saí da sala.
- Obrigada, doutora, tchau.
- Tchau, mistery.
- Mistério?
- Já que não quer que anote nada de nossa conversa, preciso criar um apelido criativo para não esquecer de nada, por mais que ache difícil de acontecer... mas enfim, até a próxima sessão.
- Até.
Fechei a porta, e outro paciente entrou logo em seguida. Minha mãe me abordou de relance assim que percebeu minha presença.
- Como foi a consulta, gostou da Sarah?
Seus olhos ansiavam por respostas. Nunca a vi tão ansiosa.
- A consulta foi legal, e a Sarah é compreensiva. Gostei dela.
Decidi não colocar muita emoção em minha resposta caso contrário poderia induzir cada vez mais sua sede por respostas
- Que bom, fico feliz. Estava torcendo muito para que gostasse dela. Minha mãe estava eufórica e ofegante como uma pessoa no deserto precisando de água.
- O que acha de fazermos um jantar especial para comemorar e fazermos lasanha, seu prato preferido? Podemos passar no mercado e comprar os ingredientes.
- Mãe... não é para tanto também.
- É só um jantar, filha.
Nesse 'é só um jantar', saiu um banquete cheio de coisa. Todos iriam estranhar aquela quantidade de comida quando chegarmos.
Estávamos no caminho para casa. O silêncio tomou conta do carro. Não trocamos uma palavra desde que saímos do consultório. Parece um velório. Se bem que os velórios tinham vozes oprimidas e abafadas por abraços, e aqui estava bem mais silencioso que isso. Estamos quase chegando, pensei que essa tortura não acabaria nunca.
Quando cheguei em casa, fui correndo para o quarto e comecei a desenhar alguns cenários de meu suposto pesadelo para entender melhor. Desenhei vários detalhes que não havia percebido antes. O desenho foi todo a grafite e borracha. Para fazer alguns sombreados, meus pais nunca podem sequer desconfiar que sei desenhar, isso poderia ser um problema. Meus desenhos eram confusos e estranhos demais para serem compreendidos, especialmente aos olhos de meus pais. Esse desenho me deu um pouco de trabalho, mas finalmente ficou pronto. Agora preciso achar um lugar para esconder isso. Debaixo da cama, óbvio demais. Dentro das gavetas, fácil demais. Enquanto andava de um lado para o outro tentando descobrir onde guardar o desenho, ouvi um ruído. Parecia vir de meus pés. Olhei para o chão, pisando com mais força, e me deparei com um piso quebrado. Era a escapatória perfeita, considerando que eles não sabem que tem um piso falso. Me abaixei no chão e verifiquei a profundidade do piso solto. Não era muito fundo, mas era o esconderijo ideal. Depois de esconder o desenho, fiquei tentando relembrar todos os cenários, mas tudo tinha perdido o sentido. Meu cérebro não se lembrava com tanta clareza dos acontecimentos quando apenas imaginava, mas quando desenhava, tudo parecia óbvio e claro em meus pensamentos. Confiei demais na psicóloga. Hoje falei o que não devia. Agora tudo vai por água abaixo. Como posso ter confiado em uma estranha para confinar meus desenhos? Quanto mais meus pais souberem de toda essa história, pior será. Eles vão falar que estou fantasiando ainda mais as coisas. E os desenhos só me ajudam a distorcer ainda mais a realidade. E que quando desenhamos, nos perdemos na arte e fazemos conclusões precipitadas. Essa fala é a cara dos dois. Não preciso de mais empecilhos, pelo contrário, preciso de ajuda. Alguém que entenda meus desenhos e a mente de uma menina de doze anos com pensamentos intrusivos e que não fazem o menor sentido. Não posso tentar entender algo que não sei decifrar.
Havia me esquecido totalmente de Cheese desde que tudo aconteceu. Ainda não fui ver como ele estava. Essa era minha chance de provar que tudo que dizia era verdade. Desci as escadas o mais rápido possível, só parei para respirar quando já estava ofegante. Quando finalmente cheguei no quintal abri sua casinha e lá estava Cheese, ainda com o corte na pata. O abracei, mas ele recusava. Não parecia o mesmo. Falei para ele sentar e rolar no chão, mas ele não obedecia aos meus comandos. Nem parecia o mesmo cachorro que conheci. Ele sempre corria atrás de mim para jogar seu graveto, sempre com a língua para fora, com alegria, lambendo meu rosto. Mas agora ele estava distante, frio. Só seu rosto e sua pata estavam iguais. Era como se ele estivesse me punindo por ser uma péssima dona.
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Hoje de manhã, acordei determinada a saber mais sobre sonhos e pesadelos, ou qualquer coisa que envolva esse mundo desconhecido para mim. Peguei minhas economias e saí sem que minha babá percebesse. Peguei a bicicleta na garagem e pedalei o mais rápido que pude para a biblioteca. Quando cheguei, a biblioteca estava praticamente vazia, o que não é nenhuma novidade nos dias de hoje, as pessoas ficam nos celulares e leem livros pela Internet, então nem precisam de livros físicos, o que é uma pena. Estava caminhando pelos corredores, mas até achar o livro específico iria demorar muito tempo. Fui até o balcão e perguntei para a bibliotecária onde ficavam os livros sobre sonhos e pesadelos.
-Ficam na segunda seção, entre a segunda e a primeira, é só virar à direita.
Ela parecia um pouco desinteressada, provavelmente estava apenas cansada.
-Obrigada, irei procurar.
-Fique à vontade.
Caminhei pelos corredores e tive a sensação de nunca ter passado por lá, mesmo tendo perdido as contas de quantas vezes vim para essa biblioteca. Estava com uma sensação diferente, por algum motivo, estava me dando calafrios, talvez fosse coisa da minha cabeça, o que não seria novidade. Meus olhos percorriam todas as prateleiras, mas nem sinal do livro que procurava. Depois de muito procurar, achei o título que queria. Estava quase desistindo. Peguei o banco e fiquei na ponta dos pés, estava muito alto. Estendi os dedos e finalmente consegui. Desçi do banco sem nenhuma lesão, apenas com a solução. Levei o livro para a bibliotecária, ela carimbou e fui correndo para a bicicleta. Não demorei muito para chegar, meus pais não estavam em casa e a babá estava ocupada demais com meu irmão. Subi as escadas e meus olhos devoraram todas as páginas, como se precisassem daquilo para viver. Não tinha encontrado nada que me ajudasse, até que cheguei à página 50. O capítulo tinha como título: "Sonhos Realistas ou Seria Realidade?"
Finalmente, um material relevante. Um sorriso surgiu em meu rosto e meus olhos se encheram de esperança novamente. Folheei o livro e perdi totalmente a noção do tempo, esqueci até que havia tempo. Aquele título poderia conter a explicação para acabar com essa tensão desde os dias daquele pesadelo, e conseguiria dormir tranquila novamente. Aquele capítulo era longo, mas finalmente encontrei uma frase com ênfase que dizia: "Pesadelos são presságios de nosso subconsciente, assim como os sonhos. Nosso subconsciente cria vários cenários baseados no que assistimos, pensamos ou até mesmo que lemos, e às vezes mistura tudo isso. No final, resulta no famoso sonho, e o pesadelo, bom... também podem se basear nesses critérios, ou querer te revelar algo. É normal termos sonhos e pesadelos que pareçam reais, mas quando isso vira uma obsessão, pode passar dos limites e até mesmo levar à loucura. Muitas vezes é difícil ter percepção da realidade e ficção, e nos perdemos nesse mundo imaginário.
Aquela frase alterou de alguma forma alterou como meu cérebro funcionava e me fez refletir se o que meus pais disseram era verdade, e se eu estava aumentando a realidade das coisas e sendo precipitada em meu julgamento. Não posso descartar nenhuma opção.
Alguém estava me chamando; corri para a sala e não era minha mãe, nem meu pai, era meu tio Richard. Alguém se lembrava da minha existência, ou talvez apenas tivesse vindo para ver James. Normalmente todas as visitas e atenções eram destinadas a ele, então não seria nenhuma surpresa. Mas meu tio vinha em minha direção:
-Não vai dar um abraço no seu tio preferido, hein, mocinha?
Corri em sua direção e o abracei, e ele ficou girando.
- Senti muitas saudades, tio Richard.
- Eu também vim aqui para matar saudades de você e fazer uma visita para seu irmãozinho.
Ele me soltou e foi em direção ao quarto de James.
- Eu já volto, vê se não escapa.
- Pode deixar, titio.
Finalmente, alguém veio me visitar e não meu irmão, ou seja lá o que ele for. Acho melhor subir as escadas, até porque o livro ficou em cima da cama e meu tio não sabe de nada. Não sei se ele é bom com segredos, assim como é bom em fazer pessoas sorrirem. Normalmente, as pessoas têm vários dons, mas só um elas se aperfeiçoam mais do que os outros. Então, dito isso, concluo que meu tio não é bom com segredos.
Depois de subir tantos degraus, cheguei ao quarto de James. O desconhecido, era assim que iria chamar James a partir de agora, mas apenas em meus pensamentos. Daria muito trabalho explicar para os adultos e acabaria entrando em uma enrascada. Puxei a maçaneta e vi meu tio colocando o desconhecido novamente no berço. Minha babá estava junto, então não tinha necessidade de meu tio passar muito tempo lá. Puxei sua mão e o arrastei para fora do quarto.
- Que susto, Sophie, não estava esperando.
- Desculpe, titio, mas já ficou muito tempo no quarto.
- Está com ciúmes do seu irmão, é isso, não é?
Ele riu baixinho.
- Não, mas ele tem uma babá para cuidar dele.
- De vocês, corrigindo.
- Ele é um bebê e precisa de mais cuidados do que eu, então considero que a babá é só dele.
Ele se ajoelhou e ficou me encarando:
- Sabe, quando sua mãe nasceu, também morria de ciúmes daquela pestinha. Eu a amava, mas em alguns momentos a atenção fazia falta. Quando ela nasceu, já tinha seis anos. Então, até aquele momento, todas as atenções, presentes e doces iam para mim sem nenhum empecilho. Mas com o tempo, sua mãe e eu nos tornamos melhores amigos e falamos tudo um com o outro. Descobri que ela poderia ser minha aliada e não minha inimiga.
- Então.. você descobriu que ela veio para acrescentar e não subtrair, certo?
- Exatamente, demora um pouco, mas com o tempo você vai ver que James é muito legal.
- Talvez...
- Quer brincar de que?
- De quebra-cabeças.
- Como é culta essa minha sobrinha.
- Vamos, titio.
O puxei pela mão novamente e entramos pelo quarto.
- Que livro é esse que está lendo? - indagou ele.
Arregalei os olhos; tinha me esquecido totalmente de esconder o livro e, em seguida, dei um sorriso disfarçado.
- Nem estou gostando tanto dele.
- Deixa eu adivinhar, leu em um dia né?
Ele abriu o livro e sua expressão mudou rapidamente, como se tivesse visto um fantasma.
- Sophie, onde conseguiu esse livro?
- Na biblioteca - disse sem nenhuma expressão, como se fosse a resposta mais comum do mundo, e realmente era
Meu tio correu até a porta e a fechou.
- Preciso que preste muita atenção, nunca mostre esse livro para ninguém, ele pode ser perigoso.
- Como assim?
- Senta aqui, eu vou te explicar.
Me sentei na cama e olhei em seus olhos; ele parecia aflito e até aquele momento só o tinha visto sorrir. Ele parecia escolher as palavras antes de dizê-las, como se estivesse filtrando o que iria falar.
- A muitos anos atrás, seu bisavô começou a sonhar coisas estranhas que ele não conseguia explicar e dizia que era para nos proteger. Mas me lembro até hoje de uma das visões que seu bisavô me contou.
- O que era?
- Você ainda é muito pequena, ainda não é o momento de saber sobre os sonhos de seu bisavô.
- O que aconteceu com ele?
- Ele acabou enlouquecendo e foi parar em uma clínica psiquiátrica. Ele estava diferente, não era o mesmo que conheci. Seu olhar não era o mesmo, o tom de sua voz também tinha mudado. Aqueles sonhos foram aumentando cada vez mais e as coisas passaram dos limites; ele estava falando sozinho a todo instante e não lembrava de mim e de sua mãe, mas todo o resto ele lembrava e foi comprovado. Ele não teve Alzheimer, mas chegou à loucura.
Uma lágrima caiu do rosto de meu tio.
- Sua mãe foi a mais prejudicada. Ela fez terapia por anos achando que tivesse alguma coisa errada com ela. Seu bisavô e ela eram muito apegados, até mais que eu era com ele, mas ele não lembrava justo de nós... Por isso, eu preciso saber se você está tendo algum desses sonhos macabros. Eu não posso permitir que mais alguém vá à loucura.
Eu contei toda a história para meu tio, e sua expressão ficava cada vez pior à medida que a história ia chegando ao fim.
- Sophie, você gosta de desenhar?
Depois de tudo o que disse, ele está querendo saber se gosto de desenhar por que isso agora?
- Gosto sim.
- Pode me mostrar um desenho seu, por favor?
- Só com duas condições.
- As que você quiser.
-Não pode contar para ninguém que sei desenhar, e tem que colocar uma venda quando pego o desenho.
- Tudo bem, temos um combinado.
Demos um aperto de mão, e coloquei a venda em seu rosto. Peguei de vagar os desenhos mais recentes que havia feito, que eram dos meus sonhos.
- Pode tirar a venda, titio.
Ele tirou de pressa e olhou em minhas mãos.
- Não pode ser que...
As lágrimas escorriam de seus olhos sem ao menos precisar piscar.
- Sophie...
Sua voz quase não saía e tremia dos pés à cabeça.
- Titio, você tá me deixando nervosa.
- Sophie, não conta para ninguém sobre os desenhos, e muito menos sobre o livro, e nem sobre os pesadelos. Qualquer outro que você tiver, conta para mim e para mais ninguém, promete?
-Prometo, titio.
- Eu... tenho que ir agora. Você precisa confiar em mim.
- Tá bom, eu prometo.
Ele me deu um beijo na testa e correu descendo as escadas. Resolvi descer também, mas parei na metade do caminho não queria ser vista. Minha mãe havia chegado, mas nada de meu pai. Fiquei ali de supetão olhando para ele.
-Oi, maninho, que saudades - disse minha mãe com um sorriso enorme no rosto, abraçando- o.
- Seu corpo está rígido, aconteceu alguma coisa. Vou pegar uma água para você.
- Amélia, por que não me contou que Sophie estava tendo pesadelos
Minha mãe derrubou o copo no chão, e o sorriso desapareceu instantaneamente de seus lábios. Meu tio roçava o queixo e tinha uma expressão séria, esperando por uma explicação. Ele correu em direção à minha mãe e segurou firmemente em seus ombros.
-Amélia, olhe nos meus olhos e me diga com toda sinceridade.
Minha mãe engoliu em seco, e eu também. Aquile não parecia o tio Richard.
- Por que você não me contou sobre esses malditos sonhos, caramba? - disse ele gritando.
Aquilo tudo estava começando a me deixar com medo.
-POR QUE SABIA QUE IRIA FICAR ASSIM, RICHARD! - minha mãe gritou ainda mais alto, e eu agora estava mais confusa.
- Você acreditava em tudo que nosso avô dizia. Coloca na sua cabeça de uma vez por todas: ele estava à beira da loucura. Foi diagnosticado com esquizofrenia e foi internado. Ele não estava lúcido, não lembrava nem de nós dois, justo de nós que passávamos a maior parte de nosso tempo fazendo companhia para ele. Você acha que uma pessoa assim diz coisas com precisão? Faça-me um favor.
- Amélia, a gente não sabe até que ponto essa história é verdade. Não podemos descartar nada, ainda mais com a gravidade do que ele disse, justo no dia em que ele me contou sobre o sonho. Ele parecia estar lúcido e até lembrou do meu nome.
- Você sabe o que eu penso sobre isso.
Seu tom agora estava calmo, mas firme em suas palavras.
- Sonhos e pesadelos, todos nós temos. Não é algo sobrenatural, muito menos algo anormal. Você nunca teve um pesadelo na vida?
- Se você não achasse isso preocupante, não teria levado minha sobrinha para uma psicóloga.
- Ela ainda é pequena, está entrando na adolescência e não sabe entender seus sentimentos direito. Ela está se conhecendo agora. Por isso, levei Sophie para a psicóloga. Não encontra problema onde não tem.
- Um membro de nossa família ter um pesadelo dessa gravidade, que ela me contou, ainda mais vindo de nossa família, não é normal, e você sabe disso. Não se faça de desentendida.
Eles estavam falando baixo, mas ambos em tons firmes e precisos. Os olhos dos dois estavam cheios de lágrimas e desgosto, e eu era a causadora de tudo isso. Eu era culpada por isso. Uma lágrima caiu do meu rosto.
- Richard, acho melhor você ir embora. Aqui não é lugar para conversar sobre isso e nem o momento.
- Essa conversa não acaba aqui, Amélia, não mesmo.
Meu tio saiu como um raio pela porta, e minha mãe ficou ali imóvel. Ela estava de costas, e dava para ouvir seus suspiros de aflição. Corri para sala e a abracei aos prantos. Não sei muito da vida, mas o pouco que sei já é o suficiente para saber que se eu não existisse, isso tudo não estaria acontecendo, e todos da família iriam ter esquecido dessa história.
- Filha, não precisa chorar. Meu amor, vai ficar tudo bem. Família é assim, às vezes acontecem brigas, mas é completamente normal. Não precisa se preocupar.
- Brigas sim, mas discussões como essa já é demais. Olha seu estado, mamãe.
- Sophie, vai brincar e tenta esquecer essa história. Eu preciso ficar um pouco sozinha.
Ela me deu um beijo, e eu fui correndo para o quarto. Não queria incomodar mais. Já tinha causado discussões suficientes desde que cheguei nessa mansão.
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Parte da mãe e o pai
Desde pequena, arranjar algo para ocupar a cabeça em um momento de tensão sempre me ajuda a ficar mais calma, mas agora nada parece ajudar. E para piorar tudo, não sabia até qual parte Sophie tinha escutado.
Ricardo está chegando. Se me ver chorando por causa desse assunto, vai brigar com meu irmão de novo. Já tiveram brigas o suficiente hoje.
Ele chegou por trás e suas mãos envolveram minha cintura.
-Tá tudo bem amor, você está tensa.
Tirei suas mãos de minha cintura e fui para outra direção.
-Está tudo bem, tive uma pequena discussão hoje, mas nada de grave.
Ele foi atrás de mim e acabou percebendo as lágrimas de meu rosto e os cacos de vidro por todos os lados. Sua expressão era de imprecisão e tensão.
- Deixa eu adivinhar, seu irmão te fez ficar dessa forma de novo, só para variar. É a cara dele.
- Foi aquele assunto de novo que sempre assombra nossa família. De alguma forma, sempre soube que esse assunto sempre viria à tona como uma sombra macabra que nunca desaparece, mesmo em meio à escuridão.
- Que droga, a gente nunca vai ter paz.
Ele se virou e segurou minhas mãos.
-Amélia, eu estou cansado de tudo, de tudo isso. Talvez seja melhor você e seu irmão darem um tempo na convivência e se verem com menos frequência, até a poeira baixar. Não é a primeira vez que isso acontece e, convenhamos, que não será a última.
- Ele é meu irmão, não posso sair assim da vida dele como se nada tivesse acontecido essa manhã.
Soltei suas mãos e fui até a bancada, depositando todo meu peso em cima da madeira, como se ela aliviasse alguma coisa.
-De que adianta ser seu irmão, se te deixa nesse estado, só porque a Sophie é...
- Cala a boca, Ricardo. Você quer que a Sophie descubra, ela tem apenas doze anos, não está preparada para essa conversa.
-Pelo o que sei de nossa filha, ela já é bem madura para a idade dela. O sofrimento nos faz amadurecer mais rápido, deveria saber disso.
-Isso não muda o fato de ela ter doze anos. Vamos dar tempo ao tempo.
-Você tem razão, o tempo resolve tudo, como está acontecendo agora, por exemplo. - falou ele em tom impaciente.
Quando ia subindo as escadas, ele se virou e disse ríspido.
-Uma hora ela irá descobrir por outra pessoa. Não podemos proteger Sophie da verdade para o resto da vida, e você sabe disso. Uma hora a máscara vai cair e ela vai descobrir toda essa farsa em que vive, mais cedo ou mais tarde, o inevitável vai acontecer. Você só não quer admitir isso para si mesma.
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•ALÉM DAS SOMBRAS
Ter quinze anos não é tão ruim quanto pensava. Para falar a verdade, está sendo melhor do que a fase dos meus 12 anos; aquilo sim foi um teste para minha sanidade mental, aprender a lidar com toda a revolução de meu cérebro não foi nada fácil. Mesmo depois de todos esses anos, ainda tenho vários daqueles sonhos, mas resolvi não contar para ninguém, nem mesmo para meu tio. As coisas são melhores assim. Continuo indo para a psicóloga e nos tornamos melhores amigas nesses últimos anos. O dia em que ela me dispensar será um dos piores da minha vida, mas ela sabe o momento para isso. Confio nela para dizer tudo e sei que ela não conta nada a ninguém. Caso contrário, meus pais iriam surtar com o tanto de informação que concedo a ela. Estava quase desistindo desse diário. Achei que fosse só mais um dos meus hobbies de criança, mas na verdade ele é bem interessante, até demais. Por isso, voltei a escrever. Desde aquele dia, não vi motivo para continuar escrevendo. Achava perda de tempo, mas nem faço bom proveito dele na maior parte do tempo. Então, por que não escrever alguns fatos da minha vida monótona? Quer dizer, ultimamente ela tem sido mais agitada do que o esperado. Não que deteste essa nova realidade de escola nova e novos acontecimentos da adolescência, mas às vezes é cansativo e respirar fica difícil no meio de toda essa correria. Mas, apesar dos altos e baixos, aprendi a gostar dessa fase da minha vida. Inclusive, estou até namorando, o que nunca havia planejado e muito menos chegou a ser um sonho em qualquer fase da minha vida. Éramos amigos há um bom tempo e agora resolvemos apenas oficializar. Ele sempre está do meu lado, me ajuda em diversas coisas no dia a dia e me apoia em tudo. Isso, para mim, é mais do que suficiente para os meus quesitos. Meus pais, por incrível que pareça, apoiam esse namoro mesmo sem saber lidar com tudo. Na minha percepção, a maioria das pessoas podem me considerar imatura e realmente sou. Não posso julgar nesse quesito, mas realmente gosto do Jhon. Para falar a verdade, nos últimos tempos, nos tratamos mais como amigos do que namorados, mas acho isso bom. Quero ir com calma, não tenho a mínima pressa de irmos para o casamento e nem ser uma rebelde em busca da aceitação dos pais e fazer isso por impulso. Tomar decisões por impulso não é o meu forte. Sei lidar bem com os meus instintos, quer dizer... aprendi a lidar, ou talvez esteja aprendendo. É confuso para entender e explicar ainda mais. Como não tenho ouvintes para os meus sonhos macabros, o diário se tornou minha válvula de escape. Em outras palavras, foi minha única opção. As coisas têm ficado cada vez piores. Além dos sonhos, agora tenho alucinações. E no fundo, fico preocupada e realmente acho que deveria contar para alguém, mas só de pensar meus pais tendo um ataque psicótico na sala e me encaminhando para uma psiquiátrica já mudo de ideia. Em relação aos desenhos, também não é diferente. Com eles, nunca parei. Eles me ajudam a entender minhas loucuras, que não são apenas delírios ou falar sozinha. Minha mente realmente é macabra. Nesse diário, irei deixar alguns dos meus desenhos para complementar os pesadelos. Um dos piores pesadelos foi o que tive recentemente. Nele, tinha um homem de cabelos grisalhos, de meia idade, sentado em uma cadeira, e seu rosto era um borrão. Quando me aproximei, seu rosto estava todo queimado e cheio de sangue. O gosto de carne invadiu minha boca naquela noite. Pode parecer que não é nada de mais, mas na realidade os pesadelos são horríveis. tem sido cada vez mais difícil ter uma noite de sono descente ultimamente. Os pesadelos com James persistem, e mesmo meu irmão estando com cinco ainda tinha medo de ficar sozinha por muito tempo com ele. Pesadelos são muito mais que invenções do sistema nervoso, são sinais de que algo vai acontecer ou que alguém irá fazer algo. Podem ter diversos os mais variados significados. Li muitos livros sobre pesadelos e tirei muitas conclusões, algumas sem o menor sentido e outras que são dignas de um best-seller em vendas. Mas prefiro manter minhas loucuras para mim e este diário, que vai ficar cada vez pior se depender de meus pensamentos.
Hoje terá uma festa de formatura; talvez seja legal. Só aceitei porque Cassandra me convidou. Ela é uma colega de classe; quer dizer, conversamos bastante sobre assuntos variados, mas só considero uma colega. No entanto, só irá se tornar minha amiga se realmente tivermos uma ligação especial e se eu souber que posso confiar nela. Cassandra é apenas uma pessoa com quem me dou bem no dia a dia e que me ajuda; sou grata por isso, mas não a ponto de sermos amigas, até porque nossas conversas são estritamente no ambiente escolar. Ela é uma ótima pessoa, mas as companhias que ela costuma andar não são boas influências. Elas tratam as pessoas, especialmente Cassandra, como um capacho, uma empregada do grupo delas. Cassandra não gosta disso, dá para perceber, mas não entra em muitos detalhes. Acho que, no fundo, ela tem medo da solidão e, por isso, mantém essa amizade por conveniência. Ela não parece ser o tipo de pessoa que aguentaria determinado tipo de situação apenas por status social; na verdade, ela parece nem se importar com isso e prefere ficar longe dos holofotes. Realmente viver na sombra, como um gato preto de olhos verdes, não é para amadores. Mas o tempo dá uma ajudinha nesse processo... Enfim, já estou atrasada, e meu pai já está me chamando.
Desci as escadas o mais rápido que pude. Odeio chegar atrasada, mas eu mesma era culpada. Entrei no carro e fiquei observando a paisagem pela janela apesar de não terem muitas coisas as quais observar ainda gostava da sensação do vento batendo em meu rosto e o cheiro de eucalipto pelo caminho.
- Vê se não volta tarde e manda mensagem.
- Pai, não vai acontecer nada, e você sabe do meu caráter.
- Não duvido disso, sei que tem a mente no lugar, mas minha preocupação não é você, são as pessoas.
- Sei lidar com elas. Esqueceu que já fiz karatê e tenho uma psicóloga?
Demos uma gargalhada e continuamos em silêncio. Quando chegamos, me despedi de meu pai com um abraço.
- Toma cuidado, Sophie, juízo, não volte tarde da rua.
- Fica tranquilo. Tchau- disse alto o suficiente para que pudesse escutar
- Tchau! Te amo.
Estava tudo decorado demais, era muita informação, vários pisca-piscas e serpentinas pelo caminho. Entrei pela porta e me surpreendi com a quantidade de pessoas que avistei. À medida que andava, encontrava mais e mais pessoas parecia até que estava perdida no meio de um mar humano. Deveria ter pelos cem pessoas lá dentro. Era um salão grande, mas mesmo assim, me entia uma mosca no meio de tantos adolescentes. Todos conceitos muito diferentes dos meus; talvez esse seja o motivo de gostar da minha própria companhia na maioria das vezes.
Continuei andando, de olho na minha bolsa. A única coisa que tinha de valor era meu celular, mas só isso já era motivo suficiente para tomar o excesso de cuidado, afinal não sei o que se passa na mente das pessoas, mas sei muito bem quem são os engraçadinhos aqui na festa.
Finalmente, encontrei Jhon. Ele estava sozinho no banco com uma bebida na mão. Cheguei de supetão, e um sorriso abriu em seu rosto assim que me viu e minha reação foi a mesma.
-Pensei que nunca fosse chegar, isso aqui estava um tédio sem você.
-E suas namoradas não te fizeram companhia nesse tempo?
-Sabe muito bem que não dou a mínima para as outras meninas.
Jhon era lindo, lembrava um príncipe com vampiro. Tinha olhos azuis, cabelos pretos, era alto e tinha um bom porte físico. Seus traços eram simétricos, seu intelecto era incrível, era maduro e estudioso. Tinha tudo para ser popular, mas escolheu viver nas sombras. Não o culpo por isso, ele era muito respeitoso, mas às vezes se deixava levar como agora. Ele estava com a mão em meu pescoço, como se quisesse marcar território para os outros meninos do fundo que não pareciam ter o mínimo de interesse, ele se aproximou e lentamente me abraçou com ciúmes. Era um tanto fofo e engraçado ao mesmo tempo. Me afastei do abraço, e ele me deu um beijo na testa, uma demonstração ingênua de afeto. Seus lábios se afastaram de meu rosto, e um sorriso reapareceu em sua face. Estava compactuando com tudo, era meio infantil, mas não me importava com isso. Precisava sair dali, eram muitas luzes, e o cheiro de bebida estava forte demais.
-Vou no banheiro, já volto,- disse gritando por conta do barulho.
-Quer que eu vá com você? Eu fico na porta, é perigoso ficar sozinha na festa.
-Tá tudo bem, fica tranquilo, eu vou sozinha.
Ele afirmou com a cabeça e ficou com minha bolsa; era mais seguro assim.
Caminhei em direção ao banheiro, aliviada por não encontrar quase ninguém por perto. Antes que pudesse entrar, uma mão cobriu minha boca e me arrastou para uma parte desconhecida da festa. Quando finalmente soltou minha boca, meus olhos se ajustaram à súbita luz, revelando o inspetor da escola. Por que ele faria algo assim? A ansiedade se misturou à urgência de minha bexiga prestes a explodir.
- Escuta aqui, se você colaborar comigo, vai ficar tudo bem e nós dois iremos sair no lucro. Sairemos ilesos e ambos nos beneficiaremos.
Quando me dei conta era uma sala sem saída e tinha uma porta que provavelmente estava trancada. O que o inspetor queria comigo? Estava começando a formular uma ideia, mas não estava gostando nada do caminho onde meus pensamentos estavam me levando.
- Tira a roupa, temos pouco tempo.
-O que você pensa que vai fazer comigo?
Estava ofegante e as lágrimas caiam descontroladamente de meu rosto. Só sabia tremer como uma pessoa em meio ao inverno; o olhar daquele demônio, fantasiado de humano, sobre mim só intensificava minha angústia.
- Você é lenta, hein, menina.
-Abre a porta se não vou começar a gritar. se você abrir essa porta, podemos esquecer todo esse circo e continuar como se nada tivesse acontecido.
Ele se aproximou rapidamente e me encostou contra a parede, apertando meu pescoço e me deixando quase sem ar.
-Escuta aqui, quem faz as regras sou eu. Você não está em posição de exigir nada. Tira essa roupa ou eu farei isso por você, e não será nada agradável, posso te garantir.
- Espera, agora tudo faz sentido. Então, você era o abusador daquela menina de 6 anos na escola, seu nojento.
As palavras mal saíram da minha boca antes que a repulsa me inundasse. Estava com vontade de vomitar, mas aquilo só iria piorar minha situação. Precisava ser resistente para o meu próprio bem, mas o que uma menina como eu poderia usar para se defender de um homem três vezes maior e mais pesado que eu
-Sabe, Sophie, desde a primeira vez que te vi, fiquei encantado por você. Desejava você com todo o meu ser, morria e morro de desejo por você até hoje, mas resolvi esperar até você crescer. Viu, não sou tão ruim quanto imagina. Se você colaborar, tudo vai ser rápido e você nem vai perceber. Agora, se resolver resistir, a coisa vai ficar feia para o seu lado.
Ele tirou a mão do meu pescoço e começou a tirar a própria roupa. Eu não estava acreditando em tudo que estava acontecendo. Agora ele estava seminu em minha frente, me olhando com um olhar estranho. Sempre vi esses casos na TV, mas jamais poderia imaginar que fosse acontecer comigo algum dia. Isso tudo é loucura demais.
Ele correu para perto de mim e pisei com toda a minha força em seu pé. Corri para a porta e tentei forçar a fechadura, mas estava trancada. Gritei o máximo que pude, mas as lágrimas me impediam de pensar. Estava tudo girando ao meu redor.
Ele me agarrou pela cintura e começou a tirar minha calça. Dei o grito mais angustiante que consegui, mas nada parecia adiantar. Ninguém vinha me ajudar, minhas súplicas eram inúteis. Ele retirou toda minha roupa e agora só me restava gritar e chorar o máximo que podia, tentando me chacoalhar para sair de perto daquele monstro, mas tudo era insuficiente. Ele continuava me segurando, até que, em um momento que menos pude perceber, já estava acontecendo. Gritei mais alto ainda, ele estava rindo e me segurando pela cintura. Ele gostava do meu sofrimento, gostava das minhas súplicas sem fundamento.
- Isso mesmo, fica quietinha.
Já tinha desistido de gritar, só sabia chorar e soluçar. Àquela altura do campeonato, não podia fazer nada, tinha que esperar que tudo acabasse. O suor frio por toda parte do meu corpo pingava no chão, quase formando uma poça.
- Seu demônio, tomara que você queime no fogo do inferno, seu nojento. Minha voz era fraca, rouca, quase sem som e sem o mínimo de precisão.
O homem continuava a rir, ignorando completamente minha aflição crescente. A urgência de urinar atingia níveis quase insuportáveis, transformando a situação em um verdadeiro tormento. Sabia que não deveria me preocupar naquele momento, mas a necessidade era tão avassaladora que se tornava impossível ignorá-la. Decidi agir, desesperadamente buscando uma solução para ganhar tempo ou atrair a atenção de alguém para me socorrer. Com um misto de vergonha e desespero, comecei a urinar, numa tentativa desesperada de chocá-lo e distraí-lo, mas para minha consternação, nada parecia abalar sua hilaridade implacável. A sensação de impotência era avassaladora, enquanto eu me via presa em um ciclo interminável de constrangimento e desespero, ansiando desesperadamente por uma solução que parecia cada vez mais distante.
- Me solta, pelo amor de Deus!
Estava batendo na parede com toda minha repulsa, ainda tentando suplicar. Até que finalmente ouvi uma voz, era Jhon, meu namorado, graças a Deus.
- Sophie, você está aí dentro? - disse ele, afobado e nervoso.
- Socorro, Jhon! Socorro! - gritei o mais forte que podia. Foi o grito mais agoniante de dor e medo que havia dado no decorrer das últimas horas.
Jhon estava tentando arrombar a porta. Podia ouvir suas tentativas, torcendo para que alguma desse certo. Eu estava encostada na parede, sem forças para me recompor. O inspetor estava correndo pelas portas dos fundos. Não tinha forças para nada, só estava gritando, mas não era mais para pedir socorro, era de raiva por mim mesma. Foi tudo minha culpa. Eu deixei isso acontecer. Eu sou uma estúpida. Finalmente, Jhon arrombou a porta e correu para a rua.
- Onde esse canalha foi? - disse ele, correndo pelo corredor.
- Ele correu para a rua! Não faça nenhuma loucura, Jhon! - gritei, desesperada.
Comecei a vestir minhas roupas antes que alguém me encontrasse despida dentro do porão. Assim que me vesti, fui correndo atrás de Jhon. Ele poderia se precipitar e acabar prejudicado por minha causa. Ele corria muito mais rápido que eu e mesmo de longe consegui ver a arma refletindo em sua mão antes que pudesse assimilar o que ele estava prestes a fazer, Jhon começou a atirar no inspetor, um tiro após o outro. Depois, pegou algo que parecia ser uma faca e começou a esfaquear o inspetor com toda sua fúria. Ele estava fora de si. Não importa o quanto eu corresse, estava em uma corrida contra a eternidade, que parecia nunca ter fim.
- Jhon! - disse ofegante. - O que você está fazendo? Para com isso!
Me aproximei de seus braços na tentativa de impedir que continuasse, mas ele não permitia que me aproximasse. Impedindo minha tentativa, quando ele finalmente parou vencido pelo cansaço, joguei a faca de sua mão de modo que ele não pudesse pegar novamente. Fiquei ali segurando seus braços até ter certeza que tinha voltada a consciência de suas ações.
- Me deixa terminar o serviço, Sophie! Tenho que ter certeza que esse demônio morreu! Me solta, porra!
- Jhon... - disse, chorando, com as mãos em seu rosto, com gotas de sangue. - Está tudo bem, eu estou bem e estou aqui do seu lado, é isso que importa.
- Sophie, pelo amor de Deus! Esse canalha acabou de abusar de você e você está defendendo ele! Deve ter gostado, então.
Retirei minhas mãos de seu rosto e disse com todo o desgosto que me abrigava a mente.
- Cala sua boca, Jhon! Quem é você para dizer alguma coisa? Você não faz ideia do que eu passei dentro daquela sala. Meus gritos se neutralizavam no silêncio e ninguém sequer percebia o que estava acontecendo. Você não tem a mínima noção do que foram aquelas horas. Era uma eternidade dentro daquela sala! - disse gritando. - Ele tirou minha roupa e eu fiquei ali, incapacitada contra a parede, enquanto ele fazia o que queria comigo para satisfazer seu ego. Agora você me diz que eu quis ficar com o inspetor, que eu gostei disso? Você é tão ridículo quanto ele por dizer isso. Repete de novo, mas diz olhando nos meus olhos!
Sai correndo, não suportando a pressão que foi colocada sobre mim, e Jhon foi atrás. Ele segurou meu pulso, me detendo de continuar a correr.
- Me desculpa, por favor. Me perdoa, eu sou um idiota, um babaca. Estou nervoso e disse a maior bobagem da minha vida. Desculpa, pelo amor de Deus, esquece tudo que eu te disse.
Pisei em seu pé e corri em meio a chuva o mais rápido que conseguia minhas roupas estavam encharcadas por conta da chuva oque dificultava ainda mais as coisas. Não aguentava mais correr, caí de joelhos em meio as folhas que abrigavam o chão, molhadas pela chuva. Jhon conseguiu me alcançar e me abraçou por trás. Gritei novamente, com um misto de emoções, chorando como uma condenada. Jhon tinha acabado com sua vida, matando o inspetor. Agora, eles achariam as impressões digitais, e ele seria preso por minha culpa. Ele se tornou um assassino por minha causa.
-Sophie, olha para mim.
Ele estava com a respiração pesada e chorando desesperadamente.
-Você é um assassino por minha causa, Jhon. É tudo culpa minha. Você tem razão.
Ele apertou meu queixo e direcionou minha cabeça para a dele.
-Nunca mais repita isso.
Ele me abraçou novamente, só que com mais força desta vez, como se quisesse transmitir confiança dessa forma.
-Aquele demônio vai pagar por tudo no inferno. Ele tirou uma parte de você, Sophie, mas não tirou e nunca ninguém será capaz de tirar a pessoa incrível que você é e sempre será.
Seu tom ficou impregnado em meu ouvido com tanta precisão que aquelas palavras ficaram presas em minha mente. E tive a impressão de que permaneceriam até o momento de minha morte.
Ele me soltou e ficou ali, ajoelhado com o pescoço direcionado para o chão e com as mãos atrás da cabeça. Podia sentir todo seu medo, toda sua aflição; sua respiração era frenética e meu coração batia sem rumo, sem saber o que iria fazer. Essa festa maldita destruiu nossas vidas para sempre. Depois de hoje, as coisas nunca mais serão as mesmas, se é que dá para viver depois de tudo isso.
-Quanto tempo você ficou dentro daquela sala?
Assim que ouvi a pergunta, baixei a cabeça encarando o chão, tomada pela humilhação à qual tinha me submetido.
-Agora que ele está morto, você pode ter certeza que a justiça foi feita. Eu estarei sempre do seu lado, não importa o que aconteça comigo. Se eu for morto ou preso, o que importa é que eu fiz justiça. E por você, eu faria tudo de novo. Salvar sua vida daquele maldito é como salvar a mim mesmo. De certa forma, salvei sua vida com minhas próprias mãos e não me arrependo.
-Não fala bobagem. Imagina só o que os outros vão pensar quando virem o cadáver do inspetor todo esfaqueado e cheio de tiros.
O inspetor estava irreconhecível, todo desfigurado, e a poça de sangue alagando todo chão à sua volta parecia uma cena de filme de terror.
-Eles vão descobrir que ele é um abusador e já fez várias vítimas, e você é mais uma delas, Sophie. Pensa em você em primeiro lugar. Uma vez na vida, sem se importar com as pessoas ou com o que elas vão pensar. Você não precisa disso para viver. Sua vida depende de coisas mais importantes que palavras inúteis de pessoas que não fazem a mínima ideia do que você passou ou o que aquele momento representou para você. Isso só você sabe e mais ninguém. Cada experiência é única para cada pessoa.
Eu não sabia o que fazer, nem como reagir, muito menos como as coisas iriam ser daqui para frente, se é que dava para viver depois de tudo isso. Só tinha uma maneira de fazer com que tudo isso terminasse. Corri sem que Jhon se desse conta. Ele estava de costas para mim, mas logo que percebeu, correu também.
-Para com isso, Sophie! Você não tem culpa de nada que aconteceu hoje!
Já tinha causado confusão demais. Como sempre, precisava dar um fim em tudo isso antes que fosse tarde demais e acabasse machucando alguém inocente. Fui para rua e me joguei em frente ao primeiro carro que vi.
O último som que ouvi foi a voz de Jhon.
-Sophie, se você não acordar, eu me mato.
Ele estava chorando em cima de mim. Dei um último sorriso e tive a confirmação de que, sem dúvidas, essa foi a melhor decisão que tomei em toda minha vida.