Estou literalmente há quatro horas sentado grudado nesse computador. Preciso criar uma história para o meu novo livro, um conto, qualquer coisa coerente, ideia, qualquer personagem, situação para desenvolver um terror que possa minimamente assustar o meu leitor. Droga. eu não consigo, simplesmente não consigo. Na minha cabeça não existe mais início, nem começo e muito menos um fim. Estou num vazio criativo. Eu jogo na lixeira mais um arquivo inútil. Quatro horas. Nesse quarto escuro e sozinho. Tenho pouco tempo. E na distração meus olhos se fixam no guarda roupa encostado na parede. Escuto um barulho inaudível dentro dela e a minha mente insiste em ignorar, mas a minha atenção é ganha ao notar sangue escorrendo pelo guarda roupa, se espalhando pelo chão. Volto a me concentrar no computador. Nada vai me distrair, nada vai tirar a minha atenção novamente.
— Discordo de você — Uma voz áspera chega aos meus ouvidos. Masculina, carregada de rigidez. Me viro, e um velho com terno branco, barba por favor e chapéu da mesma cor de sua vestimenta. Sentado na minha cama. — Ideias vem da dor. Você quer sair disso — Ele inclina o corpo com seu cotovelo apoiado em sua coxa, fumando cigarro.
— Sair disso…
— Oh sim, sim, sim. Suas histórias, por exemplo, são lágrimas em meio à chuva. E isso me diverte. — A expressão de seu rosto forma um sorriso, seguido de uma risada arrastada, crua.
— Sou um escritor, portanto artista, e não tenho que ficar no mesmo lugar para buscar inspirações.
— Você que sabe, sou apenas um personagem na sua cabeça.
Me levanto instantaneamente. Aquele velho de terno branco desapareceu. Voltei a ficar sozinho no quarto. Sigo pela janela próximo a minha cama. E permito que o ar chegue ao meu rosto. E no lado de fora, vejo outro prédio, com outros escritores em seus quartos e uns outros na janela. Dois deles ficam em pé na beira e se jogam do prédio, cometendo suicídio. E na rua, pessoas se juntam e ficam em volta dos corpos, tirando fotos, e um homem com alto falante está prestes a dizer algo.
— Dois escritores mortos, dois mundos encerrados. Criem seus mundos, criem vidas, cada um em seu prédio precisa prosseguir com a História. Quem não consegue precisa se entregar à morte, iguais a esses escritores. Quem está no prédio tem que escrever, tem que criar, o mundo precisa da Criatividade, da arte que foi perdida. Isso é exemplo a não ser seguido.
Eu e outros escritores saímos das nossas janelas. O vazio do meu quarto. Nós escritores vivemos presos dentro de nossos mundos para criar outros mundos. No meu caso, criei um em cenário apocaliptico, histórias de terror e fantasia para o meu mundo, e a História segue por essas linhas tortuosas que construir, cena por cena, não posso parar. Apesar de tudo eles são humanos reais, ou que acreditam serem reais.
Sento novamente na frente do meu computador. Meus olhos grudam na tela e escuto barulhos no lado de fora, um agito, gritaria. Preciso escrever algo. O mundo em si perdeu a criatividade, e sou responsável por trazê-la através dessas histórias, apesar de não fazer sentido algum. Cada história que escrevo envio para uma plataforma, os views e curtidas são anônimos, e os comentários que eu recebo também seguem o mesmo padrão dos views. Completamente anônimos. E essas histórias se transformam em Mundo.
Escrevo as primeiras palavras
“No fim do dia, os Criadores chegam à floresta. E com suas capas brancas, eles acendem uma fogueira em um círculo. Todos repetem “Queimar, Queimar, Queimar” batem palmas e um deles se pronuncia “O Culto Branco, queimaremos as dores esmagadoras em nosso ser, os Anjos viverão entre nós” e todos repetem “Queimar”
Eu como escritor, entro na história que estou criando, estou no lado dos personagens, mas nenhum deles percebem a minha presença. Apenas observo, e me pergunto porque estou criando isso.
— Você não se lembra mesmo né? — Uma voz feminina surge aí meu lado. A moça tem cabelo castanho, baixa, lábio carnudo e expressão tímida e melancólica.
— Quem é você?
— Você sempre para aqui. Não percebe? Você precisa se lembrar, toda vez esquece — A moça me deixa e caminha para o grupo de cultistas. E o fogo no centro, a atrai, e devagar ela tira suas roupas, ficando completamente nua. Ela entra na fogueira e o grito ensurdecedor rompe os galhos das árvores. E todos eles repetem “Queimar, Queimar, Queimar”
Volto para o meu quarto. Estou de frente a tela do computador. Minhas veias estão aceleradas, e o coração palpita estranhamente. Que personagem é aquela? Que rumo tomou essa história? Será que criei um plot para ela e não lembro?
Acesso meus arquivos, e tento procurar algum conto ou livro que remete a esse culto. Alguma parte da História desse Mundo que possa ter deixado alguma ponta solta.
Não encontro nada semelhante. Eu estou confuso… Um barulho chama minha atenção, é do guarda roupa. Aquele sangue de novo escorrendo por ela.
— O desfecho — Aquele velho do nada aparece na minha cama, mas agora com seu terno sujo de sangue.
— Mas… O que há comigo? Só… Tive uma ideia e escrevi… Eu consegui… Aquela personagem…Quem era? E quem é você? Eu estou maluco, não estou?
— Você é um pouco esquizofrênico né? Igual o mundo que criou para suas histórias. Anda, abra o guarda roupa — Ele faz um sinal com a mão indicando para ir ao guarda roupa. A curiosidade é grande, devagar eu vou e abro. Há um corpo desmembrado. Barriga aberta, tripas para fora. E sou eu mesmo. A confusão se instala na minha mente.
— Não se lembra da sua última história?
Olho para a janela incrédulo, pensamentos gritando em minha mente. Fecho o guarda roupa.
— Não, não me lembro… Então eu… — A minha cabeça não consegue pensar direito, como se a neblina estivesse se intensificando na minha mente, ao invés de desaparecer.
Avisto meus arquivos novamente no computador tentando lembrar do título da minha última história. Se chama “Desfecho”
Leio a última parte do conto
“Em seu quarto, ele realiza métodos para ir a um Mundo que tenha Criatividade. Mas a sua consciência não permite isso. A sua alma é presa aqui. O seu desejo de Sair é grande. Várias formas, e nessas formas, é escrevendo e escrevendo até ir para o Mundo que consiga ir. Ele tentou sabotar o próprio sistema. Ao invés de criar para dar vida, ele roubou a vida duas vezes, e a vida lhe foi tirada, o trazendo para Realidade no qual foi criado somente para ele. Não há desfecho, não há solução. Duas tentativas de ida, dois mundos que tentou atravessar. E nada. A sua mente desaparece a cada tentativa, confundida com bloqueio criativo. A sua mente. Simplesmente a sua mente.”
Termino de ler. Encaro a tela do computador. Sem emoção, sem arrepios, sem nada a oferecer ou a escrever. E lágrimas saem de meus olhos.