Vários invernos passariam até ao beijo que despertaria a princesa de tez branca e lábios rubros. E o tempo muda tudo. A rapariga, imóvel dentro do caixão de vidro, dormia, alheia ao mundo.
Indefesa contra os que, na noite, a coberto de um bosque sem luar, a procuravam. Com mãos sujas e exploratórias, cujos calos nunca tinham conhecido uma pele suave, feminina, adolescente. Visitavam-na aqueles para quem o silêncio continuado se transformara em consentimento, permissão para satisfazer uma variedade de apetites. É certo que só a procurava quem sabia. Apenas quem sabia. Mas a três deles chamara amigos.
A neve continuou a cair sobre o caixão de vidro. Caiu por muito tempo.
Quando o príncipe finalmente encontrou a rapariga e a beijou, esta pareceu despertar de um pesadelo longo, confuso, impossível de recordar. Havia algo de errado naquele beijo, naquele toque e proximidade. E por mais que a mente a quisesse fazer esquecer, o corpo… o corpo lembrava-se.
As estações passaram, mas nunca deixou de ser Inverno. E nem um ano demorou até que a princesa se visse novamente num caixão. Desta vez, felizmente, dentro da terra, sem esperanças de acordar.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945