De nariz colado à janela, gosto de os ver passar. Pesados. Chorosos. Cabisbaixos. A mãe diz-me sempre para vir para dentro. Fecha a cortina. Olha se te veem? É falta de respeito, rapariga! Obedeço, contrariada.
No final da procissão, enquanto o Sol que se põe ainda aquece as pedras brancas, entreabro a porta, forçando as dobradiças enferrujadas, e espreito à espera do sinal do Artur. Noto, com a ponta do sapato branco de verniz, que as folhas secas começaram a acumular-se no pequeno degrau entre a casa e o passeio outra vez. Ouço a gargalhada alta dele a ecoar pela igreja quase ao mesmo tempo que ele sai disparado, a segurar meia dúzia de balões dourados.
— Pensei que fosses trazer-me o urso azul e branco.
— Prefiro os balões. Se pular parece que voo. Vês?
— Gostei mais das flores do urso.
— Então vai buscá-las tu!
— Mas tinha de entrar ali, e a sala… — digo baixinho, mas o miúdo que me veio acompanhar nas brincadeiras há um ano já vai longe, pulando para parecer que voa e amedrontando os gatos pelo caminho.
Não me atrevo a dar um passo para lá do alpendre, agora que a noite cai. Ainda sinto nas costas o frio do mármore daquela mesa e a dor do meu espírito, assustado e encolhido a um canto, enquanto me rasgam o peito e me arrancam o interior.
Na saia do meu vestido branco, morrem os últimos raios de Sol de hoje, e a mãe diz-me para vir para dentro.
Obedeço, aliviada.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945