Era apenas uma criança.
Uma criança que não queria dormir.
Uma criança que tinha medo do escuro.
É normal — diziam. — Todas as crianças têm medo do escuro. Faz parte.
Será que faz?
Uma noite, já adolescente, acordou com um peso aos seus pés.
O gato, pensou.
Abriu então os olhos e viu um vulto de um homem sentado na sua cama.
Tinha um semblante negro como o breu. Era alto e imponente.
Ela susteve a respiração.
O homem voltou-se para ela. Levantou-se. Começou a andar em direcção aos cortinados e desapareceu.
Os cortinados… O local onde, todas as noites, via aquele mesmo vulto a espreitar — e pensava, e desejava, que fosse um sonho.
Como naquele momento.
Imaginei. Só pode ser!
Ligou a luz.
Olhou para os pés da cama.
Havia uma marca no edredom. Uma depressão bem visível onde o vulto se tinha sentado.
Não foi um sonho! Não imaginei!
Apagou a luz. Escondeu-se debaixo do edredom. Como fazia todas as noites que acordava com a sensação de estar a ser observada, e via de soslaio o vulto negro atrás dos cortinados.
Ficou enrolada no edredom. Fez força para adormecer.
Que seja dia depressa! Que venha a luz, por favor!
Quem era este vulto que a assombrava, este homem que a perseguia?
Durante a adolescência, tornou-se habitual aquela sensação, a figura negra atrás dos cortinados, o peso aos pés da cama. O vulto até se foi tornando mais ousado, passeando às vezes pela sua casa…
E o tempo foi passando.
*
É já em adulta que decide tentar perceber e ultrapassar alguns dos seus medos e traumas. Resolve experimentar a hipnose.
É levada, assim, até uma outra vida.
No campo.
Casada.
Tinha um filho bebé.
E era feliz.
Trabalhava com ervas e fazia mezinhas às escondidas. Porque era proibido.
De repente, sente-se agarrada.
Um grupo de homens segura-a e leva-a para perto de um buraco fundo que alguém escavou.
Ela grita. Chora. Mas eles não a largam. Atam-lhe as mãos e prendem-lhe os pés. Até que ouve uma voz rouca e profunda. Não entende o que diz, mas sente o corpo congelar ao ouvi-la.
Olha em frente e vê quatro homens, como juízes, a decidir o seu futuro. Entre eles, estava o que falou. Alto e austero. Vestido de negro.
E ela reconhece-o! Era a figura negra que a observava todas as noites quando era criança! Que se sentava na sua cama quando era adolescente! Era ele!
O homem aproxima-se dela e começa a bater-lhe com uma vara.
Os outros seguem-no.
Sente a vara a bater-lhe no corpo. Quer proteger-se, mas não consegue. Quer fugir e não é capaz. Pede-lhes que parem. Só quer que a dor acabe.
E eles continuam a bater-lhe. Com varas. Com pontapés. Com ferros…
Sente os braços a partir.
O «vulto» empurra-a para o buraco. Tão fundo como parecia. Tão fundo que ela parte as pernas ao bater no chão.
Grita numa dor insuportável, e ao olhar para cima vê-o lá. A ele. A fitá-la.
Subitamente, ouve um choro…
No topo do buraco, a figura negra pega no filho dela pelos pés. Começa a rasgar-lhe o pequeno peito com uma faca.
O bebé esperneia! Grita! Sangra!
O homem atira-o para junto dela, como se de entulho se tratasse.
Os gritos dela enchem o buraco. Quer abraçar o filho, mas não pode. A dor atravessa-lhe o corpo, a alma e o coração.
É aí que acorda. Sobressaltada. Em choque com o que reviveu.
O vulto negro era real!
Não sabia se era uma memória ou um fantasma.
Ou alguém que a matou numa vida anterior.
Que agora a segue.
E observa…
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945