Por séculos, o mundo se pintou de cinza sob as chamas das fogueiras acesas para purificar o "mal". Bruxas foram caçadas, torturadas e queimadas vivas diante de multidões que aplaudiam sua agonia como se estivessem presenciando justiça — e não um massacre.
A verdade, no entanto, é amarga como sangue coagulado.
Durante milênios, mulheres foram perseguidas apenas por serem diferentes. Por pensarem de forma livre. Por ousarem existir fora da sombra dos homens que tentavam controlá-las. Eram chamadas de bruxas, mas eram curandeiras, videntes, eruditas — almas livres que pagaram com a vida pela coragem de serem quem eram.
No início, esse genocídio era abertamente financiado e abençoado pela Igreja. Os caçadores eram treinados em nome de Deus. Diziam-se enviados do céu, mas carregavam no olhar a sede do inferno. Eles marchavam com suas cruzes e lâminas, julgando-se heróis por erradicar a “magia do mal”. Mas, na realidade, agiam como carrascos.
Com o tempo, no limiar do século XIX, a própria Igreja recuou. Talvez por arrependimento, talvez por medo de perder poder. Declararam fim às caçadas. Disseram que a purificação havia se cumprido. Que Deus havia sido satisfeito.
Mas o mal não se desfaz com decretos.
Parte dos caçadores se rebelou. Não aceitaram a ordem divina de cessar a matança. Deserdaram da fé e mergulharam nas sombras. Passaram a agir secretamente, criando uma nova ordem. Mais cruel. Mais silenciosa. Mais implacável.
Eles deixaram de ser os soldados da luz. Tornaram-se algo ainda pior: os Caçadores da Escuridão.
Conforme os séculos passaram, eles se tornaram fantasmas. Deixaram de usar armaduras e símbolos religiosos. Agora usavam tecnologia, táticas modernas e se infiltravam entre os humanos comuns como predadores disfarçados.
Com o tempo, descobriram que bruxas não eram as únicas criaturas "não humanas". Vampiros, lobisomens, magos, fadas, híbridos e até demônios tornaram-se alvos da sua fome insaciável. A cada nova espécie descoberta, mais sede eles tinham. E não era sede de justiça.
Era sede de lucro.
Tudo que não fosse inteiramente humano era caçado, capturado e vendido como gado raro. Órgãos. Ossos. Sangue. Tudo era aproveitado. O sangue dos mestiços, por exemplo, tornou-se artigo de luxo no mercado negro. Usado como arma, como droga, como soro de força para soldados humanos. Uma verdadeira alquimia perversa.
Eu cresci nesse mundo.
Fui treinada desde pequena. Condicionada a acreditar que caçar criaturas era um ato de bravura. Que erradicar espécies era salvar o mundo. Que matar uma família inteira de lobisomens, ou queimar vampiros até a morte, era um feito glorioso. Recompensado. Celebrado.
Meu pai — um dos mais respeitados entre eles — costumava repetir, com orgulho nos olhos:
> "Melissa, você é a caçadora perfeita. Vai libertar o mundo desses monstros."
Eu acreditava.
Mas a verdade, como sempre, não se revela nos livros ou nos discursos. Ela se mostra em silêncio, nos detalhes. Nos olhos de uma criança perdida. No gemido sufocado de um prisioneiro. Nos pesadelos que começaram a me visitar toda noite.
E então eu conheci Azrael.
Um demônio. Sim. Um ser que, segundo meu treinamento, deveria ter sido morto à primeira vista. Mas ele me salvou — não da morte, mas da mentira. Foi Azrael quem abriu meus olhos. Me contou as histórias que ninguém ousava narrar. Me mostrou as guerras que presenciou ao longo dos séculos. As alianças improváveis. Os amores proibidos. As tragédias silenciosas escondidas sob a máscara da “proteção humana”.
Ele me falou sobre amigos que fizera — vampiros, lobos, magos — seres que, até então, eu teria matado sem hesitar. E percebi: não somos tão diferentes assim. Eles também sangram. Eles também amam. Também sentem medo.
O mais irônico?
Hoje, Melissa Hanter — a caçadora perfeita — anda ao lado de um demônio. E não poderia haver maior heresia do que essa.
Mas eu não abandonei os caçadores. Ainda não. Porque enquanto eles estiverem sequestrando criaturas inocentes, dilacerando corpos por dinheiro, e vendendo o sangue dos híbridos como arma... eu estarei lá. Dentro do sistema. Cortando seus fios, sabotando suas ordens, expondo suas falhas.
Eles podem ter me criado. Podem até se considerar minha família. Mas não vou permitir que continuem essa chacina doentia.
Nem que isso custe minha vida.
Ou eu não me chamo mais Melissa Hanter.
Ou não serei mais conhecida como A Dama da Noite.
...Sophie Histon...
Com os dias passando em um ritmo quase cruel, a data do casamento se aproxima como uma batida constante no peito. O som não vem de fora — vem de dentro. É o compasso do medo, da expectativa e do amor, todos caminhando juntos, apertando minha respiração sempre que penso no altar.
Victoria, como era de se esperar, tomou as rédeas de tudo. Ser madrinha não basta para ela — precisa ser protagonista da festa também. E, honestamente, eu agradeço. Sem sua energia incansável, eu não teria forças nem para escolher o tipo de flor.
Só deixei claro uma coisa: não quero luxo. Nem vestidos bufantes, nem festas que pareçam espetáculo. Quero algo íntimo. Algo que tenha cheiro de floresta e gosto de verdade. Uma cerimônia na reserva. Nós, os mais próximos, e a natureza como testemunha.
Mas Victoria tem outras ideias. Claro que tem.
— Sophie, você precisa de um vestido que diga ao mundo: “sou a mulher do alfa”.
Eu ri, cansada.
— Eu só quero parecer... eu mesma.
E é com esse conflito que acabamos em uma boutique elegante de Valle Hills, onde os vestidos de noiva parecem ter saído direto de sonhos que nunca me pertencem. Os provadores são grandes demais, os espelhos — cruéis demais.
O primeiro vestido me sufoca. Rendas demais, brilhos demais, cintura marcada como se meu corpo ainda fosse o mesmo de antes.
— Este é perfeito, Sophie? — Victoria pergunta animada, mas ao me ver no espelho, só sinto o oposto.
— Não gostei — murmuro, puxando a saia desconfortável — muita renda, detalhes demais na cintura. Me sinto como uma princesa infantil... ridícula.
Victoria se posiciona atrás de mim e ajeita meus cabelos com doçura.
— Nada disso. Você está linda.
Linda.
Olho para mim de novo.
A pele pálida denuncia noites mal dormidas. As olheiras escuras não desaparecem nem com maquiagem. Meu corpo está mais magro, mesmo com a barriga levemente saliente. Os seios pesam e doem, e nada me parece harmonioso.
— Você teria algo mais liso? — Victoria pergunta à atendente — Talvez com um leve decote?
— Claro. Vou procurar.
— Decote? — arregalo os olhos — Você viu como meus seios estão enormes?
Ela ri, como se não fosse nada.
— Relaxa. Eu sei o que estou fazendo, Sophie. Confia em mim.
Minutos depois, a vendedora retorna com um modelo completamente diferente. E, ao vê-lo, algo em mim se silencia.
O vestido é liso, de um tecido acetinado que parece se fundir à luz. Possui um decote em coração que abraça com leveza o busto sem vulgaridade, com alças largas de renda delicada que sobem pelos ombros como se fossem tecidas à mão por fadas. As costas nuas expõem minha pele com uma elegância sutil. A cintura desce em um caimento fluido até os quadris, onde o tecido se acomoda como se me conhecesse.
Vesti-lo foi como respirar depois de dias sob a água.
Me vi diante do espelho, e por um segundo, quase não me reconheci.
Não pela beleza.
Mas pela paz.
— É esse, Victoria — minha voz saiu mais suave do que eu esperava — É este.
Ela sorriu com um brilho orgulhoso nos olhos.
— Você está maravilhosa, prima. Trevor vai ficar de queixo caído.
Olhei meu reflexo uma última vez. Ainda havia olheiras. A magreza. O cansaço. Mas havia também algo novo.
Algo que crescia em mim.
Uma mulher. Uma mãe.
E agora...
Uma noiva.
— Não sei se ele vai gostar tanto assim... mas disfarça um pouco minha barriga — Victoria sorriu, tentando soar casual.
— Você não tem que se preocupar com isso — murmurou, tocando de leve minha barriga. — O que importa é como você se sente. O que você quer.
Ela segurou meu olhar por alguns segundos antes de desviar, os olhos marejando.
— Eu sempre quis ser mãe... e agora isso é impossível, Sophie.
O nó na minha garganta me impediu de responder de imediato.
— E é tudo culpa minha — minha voz saiu baixa, embargada. — Me perdoa, Victoria.
Ela apenas sorriu e sacudiu minhas mãos com ternura.
— Eu estou bem, Sophie. Feliz. Com o homem que amo... E, além disso, serei jovem eternamente — tentou brincar.
— Sua boba — ri com um aperto no peito. — Só não quero que se sinta excluída. Essa criança vai te amar. Vai te querer por perto em todos os momentos. Você será parte disso, sempre.
Victoria me puxou para um abraço apertado.
— Você sabe que é como uma irmã para mim, não sabe?
— Eu também te amo, Victoria. Para sempre.
Depois que compramos o vestido, voltamos para MistFalls. Ela me deixou em casa e seguiu para a casa dos Barton.
— Mãe? — chamei ao abrir a porta. — Voltei.
— Espera um pouco, Sophie. Fique onde está! — sua voz soou apressada.
— Hein? — franzi a testa. — O que está acontecendo?
— Só mais um instante, querida... Sarah, isso é aqui, garota! — as duas riram.
— Sarah? O que vocês estão aprontando aí?
— Pode vir, meu bem!
Entrei na sala... e perdi o fôlego.
No centro, havia um mini berço de madeira clara. Oval. Cada detalhe entalhado à mão — passarinhos esculpidos nas grades e um mobile de tecido com pássaros coloridos balançando levemente. Meu coração se apertou, e as lágrimas vieram antes mesmo de eu conseguir dizer qualquer coisa.
— É lindo, mãe...
Ela me abraçou com ternura.
— Ele era seu, filha. Sarah teve a ideia de restaurá-lo.
— Mas... você tinha se desfeito de tudo quando nos mudamos daqui...
— A mãe dela guardou — explicou Sarah com um sorriso leve. — Estava no sótão. Quando comentei, sua mãe quis vê-lo, e eu sugeri reformar.
Acariciei os detalhes da madeira como quem toca uma lembrança viva.
— Está perfeito. Obrigada. De verdade.
As abracei, uma de cada vez, o coração transbordando.
— Agora queremos ver o vestido! — Sarah sorriu, animada.
— Assim não vale — ri. — Quero que todos vejam juntos.
— Sophie, é só um vestido!
— Pra mim não é só isso. Agora vou subir, tomar uma ducha e descansar um pouco.
— Inacreditável! Vai nos deixar na curiosidade?
— Já deixei! — brinquei, subindo as escadas com um sorriso nos lábios.
...✧...
Entrei no quarto ainda com o riso preso no rosto. Guardei o vestido no closet com um cuidado quase sagrado. Meus dedos passaram pelo tecido como quem acaricia um futuro. Suspirei e fechei os olhos. Bastou um segundo, e o nome dele surgiu em minha mente como um sussurro inevitável: Trevor.
Revivi mentalmente cada momento. Os toques. As palavras sussurradas. O calor. O conflito. A entrega.
Fui até o banheiro e liguei a banheira. Enquanto a água enchia, tirei lentamente a roupa, como se cada peça carregasse um peso. Entrei na água morna com um arrepio involuntário, permitindo que o calor me envolvesse. A espuma se espalhou, e eu mexia levemente os dedos, manipulando a água para que massageasse meu corpo cansado.
— Isso... isso é bom demais — murmurei, deixando os olhos se fecharem.
Mas... algo mudou. Senti primeiro uma resistência. Depois, a água simplesmente parou de responder ao meu comando. Olhei minhas mãos, estendi os dedos, tentei de novo. Nada. A água permaneceu imóvel.
Um arrepio frio percorreu minha espinha.
— O que está acontecendo comigo?
Meus poderes estavam falhando. E não era a primeira vez.
Fechei os punhos, frustrada, respirei fundo. Empurrei o medo para longe e apenas tentei relaxar. Apoiei a cabeça na borda da banheira, permiti que o silêncio me abraçasse... por alguns minutos.
Quando abri os olhos de novo, quase não reconheci o cenário.
A água... havia mudado de cor.
Um vermelho vivo e intenso preenchia a banheira como se o próprio sangue tivesse tomado conta do meu corpo.
— Meu Deus...
O pânico me paralisou por um segundo. O sangue escorria pelas minhas pernas, tingindo a espuma com violência.
Saí da banheira em um salto, o chão ficando manchado à medida que meus pés o tocavam. O medo era visceral, quase físico. Peguei o celular com mãos trêmulas e disquei para Trevor.
— Atende... por favor...
Mas antes que a chamada completasse, uma dor rasgou meu abdômen. Fiquei de joelhos, sem ar, e o celular escorregou das minhas mãos. A dor era insuportável, como se algo dentro de mim estivesse sendo arrancado.
A última coisa que senti foi o chão frio e a sensação de que algo muito, muito errado havia começado.
Então tudo escureceu.
Despertei sob o aroma ácido e penetrante de iodo, que imediatamente invadiu minhas narinas como uma lembrança cruel de que algo estava errado.
Abri os olhos devagar, a claridade suave do cômodo me obrigando a piscar várias vezes. Estava deitada, coberta até a cintura por um lençol pálido. Meu abdômen latejava com uma dor surda, contínua… algo entre queimação e pressão.
— O que aconteceu...? — minha voz saiu baixa, rouca, como se tivesse sido sugada por um pesadelo interminável. — Onde... onde eu estou?
A resposta veio com a calma grave de Muron.
— Está em minha casa, Sophie. Fique tranquila, está segura.
Segura. Uma palavra que me pareceu irônica diante da dor que irradiava pelo meu corpo.
— Está doendo... — levei a mão até o ventre, tentando disfarçar o tremor dos dedos. — Como cheguei aqui...?
— Trevor te trouxe. Ele saiu com Iasmin para buscar algumas ervas que possam aliviar sua condição.
Ao ouvir o nome dele, meu peito se apertou. Senti uma vontade quase infantil de vê-lo, de ter sua mão entrelaçada na minha.
— O bebê... está tudo bem com o bebê?
Muron se aproximou, sua expressão era carregada de algo que não consegui decifrar de imediato.
— O que você se lembra?
Fechei os olhos por um instante, como se pudesse rebobinar a memória.
— Eu estava no banho... vi sangue. Muito sangue. Tentei me levantar pra ligar para o Trevor... mas a dor me derrubou. Depois disso, tudo ficou escuro.
— Sophie... — ele hesitou. — Não tenho boas notícias.
As palavras não precisaram vir completas. Um frio invadiu meu estômago, uma vertigem tomou conta dos meus pensamentos.
— O que está acontecendo comigo...? — perguntei com a voz trêmula, sentindo a pele arrepiar em resposta ao pânico que me dominava.
— Você vai precisar tomar uma decisão importante. Mas não quero falar sobre isso sem a presença de Trevor.
— Não me diga que... — minha voz falhou, os olhos arderam — ...que o bebê…
Ele ergueu a mão, interrompendo o desespero antes que transbordasse por completo.
— Não é um aborto, Sophie. É... algo pior. Algo extremamente raro — e perigoso.
Fiquei em silêncio. A dor física se tornava um sussurro ao lado da tempestade que começava a se formar dentro de mim.
Meu coração acelerava a cada segundo que Trevor demorava. O quarto silencioso parecia menor, como se o ar estivesse sendo sugado pela angústia que me consumia. Muron organizava algumas ervas sobre uma bandeja de madeira, mas meus olhos não desgrudavam da porta. Eu precisava de respostas. Precisava saber se o bebê ainda estava bem.
Quando Trevor finalmente entrou, o alívio bateu de encontro ao peito, mas não foi o suficiente para dissipar o medo que me corroía por dentro.
— Desculpa a demora… — disse, ofegante. — Iasmin teve dificuldade em encontrar algumas das ervas que Muron pediu.
— Mesmo assim, obrigado, Trevor. — Muron pegou as ervas de suas mãos, já concentrado.
Trevor se aproximou devagar, seus olhos analisando meu rosto com preocupação.
— Você está se sentindo melhor, meu amor? — murmurou, acariciando meus cabelos com tanta delicadeza que quase me desmanchei.
— A dor física está suportável… mas o que está me matando é o que não sei. — minhas palavras saíram trêmulas. — O que está acontecendo com o nosso bebê?
Muron se aproximou com um aparelho nas mãos, e sua expressão grave fez meu estômago revirar.
— Agora que Trevor está aqui, precisamos conversar. — sua voz cortou o ar como uma lâmina.
Ele ligou o ultrassom e apontou para a tela. A imagem borrada começou a se formar sob o gel frio que ele espalhou em meu abdômen.
— Aqui está seu estômago… estes são os rins, e aqui, o pâncreas. Observe — ele circulou uma área com o dedo — seus órgãos estão comprimidos… comprometidos. O sangramento que você teve foi causado pela ruptura de vários vasos sanguíneos. Felizmente, sua capacidade regenerativa conteve algo pior.
Senti a mão de Trevor apertar a minha. Eu não queria ouvir o restante. Mas precisava.
— Mas… então por que você disse que eu teria que tomar uma decisão?
Muron me fitou com os olhos sérios, pesados.
— Porque, Sophie, o feto está te matando. Literalmente. Seu corpo está entrando em colapso. A falência dos órgãos já começou.
Senti meu peito gelar.
— Lembra quando mencionei que parecia que o bebê estava drenando algo de você?
— Sim, eu lembro… — sussurrei, com a garganta seca.
— Pois bem. Não é só energia. Ele está consumindo sua força vital. Seu coração está sobrecarregado, seu sangue está fraco… você está severamente anêmica. Pela lógica, era para você estar desmaiada — mas você continua lutando. O que é, no mínimo, um milagre.
Trevor se inclinou, ainda segurando minha mão com força. Sua testa encostou na minha por um segundo, como se quisesse me passar força pelo toque.
— E qual é exatamente essa decisão que ela precisa tomar? — sua voz saiu tensa, carregada de medo.
Muron respirou fundo antes de responder.
— Ela terá que escolher: continuar com a gestação e colocar a própria vida em risco… ou interrompê-la agora. Um parto neste momento seria fatal. O feto tem apenas cinco meses. Não sobreviveria.
O mundo parou por um instante.
— Não. Eu não ouvi isso direito… — minha voz tremeu. — Eu não vou tirar meu filho. Não posso. Não quero.
Virei o rosto para Trevor, desesperada, buscando nos olhos dele qualquer centelha de alternativa. Mas ele estava estático. Silencioso. Perdido em pensamentos que eu não conseguia alcançar.
— Deve haver outra forma… — insisti, implorando com o olhar.
— Sophie… — Muron sussurrou com pesar — …não há. Eu sinto muito.
Trevor finalmente se pronunciou, sua voz grave e densa:
— Se ela continuar com a gestação… o que pode acontecer?
Muron não hesitou:
— Diversas complicações podem surgir… — murmurou Muron com seriedade. — Os órgãos dela podem falhar completamente. O feto está drenando a força vital da Sophie, crescendo num ritmo anormal. Se continuar assim, o útero pode não suportar e se romper.
— Eu já disse que não vou interromper. — minha voz saiu firme, sem hesitação. — Minha decisão está tomada.
— Meu amor… — Trevor sussurrou com os olhos marejados. — Eu não vou aguentar te perder outra vez.
Voltei-me para ele com um sorriso sereno, mesmo que por dentro estivesse uma tempestade.
— Você não vai. Eu sei que consigo levar até o fim… meu corpo está se regenerando, vou aguentar.
— É justamente aí que eu queria chegar, Sophie. — Muron interveio, preocupado. — Com o feto drenando suas forças, temo que chegue um momento em que seus poderes simplesmente… parem de funcionar.
Fechei os olhos por um instante, mordendo os lábios com força. O silêncio pesou.
— Eu dou um jeito. Não importa o que aconteça. Eu e o bebê vamos ficar bem.
Muron desviou o olhar para Trevor, como se esperasse que ele assumisse o controle. E ele o fez.
— Se essa é a decisão dela, Muron… então eu vou apoiá-la. — disse Trevor com voz baixa, mas firme. — Com uma única condição, Sophie.
— Qual?
— Se em algum momento eu perceber que você está fraca demais, que está perdendo a consciência ou se o menor sinal de colapso aparecer… nós vamos fazer o parto. Sem discussão. — ele segurou meu olhar com os dele. — Sem objeções, ok?
Suspirei fundo, sentindo o peso da decisão cair sobre meu peito como um cobertor frio.
— Fazer o quê? Parece que eu não tenho muita escolha, não é?
Ele me puxou para perto e depositou um beijo na minha testa.
— Eu só não quero te perder de novo, querida. — sussurrou, com o rosto escondido no meu pescoço. — Você é muito mais importante do que imagina.
— Se essa é a escolha de vocês, não há muito o que eu possa fazer. — disse Muron, entregando-me um pequeno pacote com ervas. — Tome isso todos os dias pela manhã. Acredito que possa te dar mais vigor.
— Obrigada. Eu vou tomar.
✧
Saímos da casa e caminhamos até o carro. Trevor dirigiu todo o caminho em silêncio, imerso em seus próprios pensamentos. O modo como mantinha os olhos fixos na estrada me deixava inquieta. Eu sabia que ele estava preocupado, mas... algo mais pesava em seu silêncio.
Quando estacionamos em frente à casa, ele não se moveu. Permanecia com as mãos firmes no volante, os ombros tensos.
— Trevor… eu sei que está preocupado, e… — comecei a dizer, mas ele me interrompeu.
— Não é só preocupação, Sophie. — sua voz falhou por um segundo, e quando me encarou, havia medo em cada traço do seu rosto. — Eu nunca estive tão apavorado com a possibilidade de perder alguém… como estou com você.
— Você não vai me perder, Trevor. — tentei sorrir, mas a dor em seu olhar me fez querer chorar.
Um táxi parou logo à nossa frente. Ele virou-se novamente para mim, os olhos opacos.
— Você vai contar à sua mãe o que está acontecendo. A decisão foi toda sua.
Assenti levemente.
— Eu vou conversar com ela. Mas… não quero que isso consuma você. — toquei sua mão, tentando trazê-lo de volta a mim. — Vamos seguir com tudo como planejamos. Nosso casamento é depois de amanhã e eu quero que tudo seja perfeito.
Ele riu, mas sem humor.
— E até lá você espera que eu fique tranquilo?
— Sim. Depois do casamento eu converso com minha mãe e contamos aos outros. Até lá, isso fica entre nós. Por favor.
Trevor respirou fundo, mas assentiu.
— Como quiser. Preciso resolver umas coisas. Mais tarde eu volto pra te ver. — ele se aproximou e beijou minha testa com ternura. — Cuida de você.
— Pode deixar.
Desci do carro e, ao longe, vi Ágata vindo em nossa direção. Trevor não esperou. Apenas arrancou com o carro, deixando um rastro de silêncio no ar.
— O que ele tem? — ela perguntou, franzindo o cenho.
— Está só preocupado com os preparativos. Nada demais. — abracei-a, escondendo a verdade por trás do meu sorriso.
— Resolvi tudo. Agora posso ficar de vez em MistFalls.
— Que bom, irmã. Já estava com saudade. Dois meses fora é tempo demais.
— Vamos entrar. Trouxe algumas coisas pro meu sobrinho.
✧
Já no quarto, Ágata desfazia as malas com empolgação enquanto eu a observava em silêncio, sentada na beirada da cama. O quarto parecia menor com a presença dela — talvez fosse o peso das verdades que eu precisava dividir.
— Achei sua mãe muito preocupada. O que aconteceu enquanto eu estive fora?
— Hoje de manhã eu tive um pequeno sangramento, mas está tudo bem agora.
Ela parou, me encarando com seriedade.
— Sophie… não me esconda nada. Primeiro Trevor, agora sua mãe. Tem algo errado. Fala logo.
Respirei fundo. O nó na garganta apertava.
— Se eu te contar, promete não contar a ninguém? Pelo menos até depois do casamento?
Ela se sentou ao meu lado e pegou minha mão com delicadeza.
— Eu prometo. Agora fala. Estou aqui.
Conto tudo a Ágata. Cada detalhe, cada incerteza. Ela escuta em silêncio, os olhos fixos nos meus, sem pronunciar uma única palavra. Apenas absorve — como se não quisesse interferir até o fim.
— Eu sei que consigo… — respiro fundo, sentindo o peso da minha própria convicção. — E se acontecer alguma coisa, você e Sarah podem lançar um feitiço para me trazer de volta, certo?
Ágata balança a cabeça lentamente, o olhar tingido de pesar.
— Sophie… pelo que você me contou e pelas experiências que viveu… acho que não funcionaria.
Sua resposta ecoa em mim como um veredito.
— Então essa… não é uma solução viável. Azrael também não pode me ajudar, ele não possui mais o dom da vida.
Inclino a cabeça, olhando para minhas próprias mãos, vazias de poder e alternativas.
— É isso, então… estou sem opções.
— Eu sinto muito por não poder fazer mais. — Ágata abaixa os olhos, visivelmente tocada.
— Então me promete uma coisa. — minha voz falha, e levo um segundo para conseguir encará-la. — Se eu não conseguir… você vai cuidar dele. Como se fosse seu.
— Sophie, não fala assim… — ela sussurra, o tom quebrado.
— Promete! — insisto, meu coração se partindo entre amor e medo.
Ela fecha os olhos por um instante, e o silêncio que paira carrega mais do que palavras jamais conseguiriam expressar.
— Tudo bem… eu prometo. Prometo cuidar do seu filho como se fosse meu.
Sorrio com ternura, lutando para conter as lágrimas que ardem nos cantos dos olhos. Me aproximo e a envolvo num abraço apertado.
— Obrigada, irmã. Eu amo você.
— Eu também te amo… mas, por favor, não pense assim. Ainda há esperança. — ela me segura pelos ombros, como quem tenta ancorar alguém à beira do abismo.
— Vai ficar tudo bem — sussurro, mais para mim mesma do que para ela. — Vai sim… tudo vai sair perfeito.
Mesmo que eu não esteja mais aqui para ver.
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