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Um Destino... O Amor!"Questões do Coração!"

01

[ TESSA ]

Sempre que fico sabendo de alguém que passou por uma tragédia, não penso no acidente ou no diagnóstico, nem mesmo no choque inicial ou no posterior sofrimento.

Em vez disso, encontro-me recriando os momentos corriqueiros que antecedem a tragédia. Momentos que compõem nossa vida, momentos que passaram despercebidos e que, provavelmente, seriam esquecidos se não fossem os eventos que se seguiriam. As lembranças anteriores à tragédia.

Posso visualizar com clareza a mulher de 34 anos no banho em uma noite de sábado, pegando seu esfoliante de damasco favorito e contemplando o que vestir para a festa.

Torce para que aquele jovem atraente que conheceu em um café esteja lá, quando, de repente, encontra um inconfundível caroço em seu seio esquerdo.

Também posso imaginar o jovem pai dedicado, levando sua fi lha para comprar sapatos novos Mary Jane1 para seu primeiro dia de aula, aumentando o som do rádio que toca Here Comes the Sun e, afirmando, pela milésima vez, que os Beatles são, “sem dúvida, a melhor banda de todos os tempos”, quando um adolescente com a visão turva, em razão das cervejas que tinha tomado na madrugada, ultrapassa o sinal vermelho.

Posso ainda pensar no recebedor impetuoso do time de futebol americano do colegial, cheio de expectativas e orgulho, participando do treino excruciante um dia antes da grande partida, piscando para sua namorada que se encontrava em seu lugar de sempre, apoiada na cerca de arame, um pouco antes de saltar em busca da bola que ninguém mais seria capaz de pegar, se retorce, caindo de cabeça em um ângulo perturbador e inesperado.

Reflito sobre a tênue e frágil linha que nos separa da desventura, quase como uma forma de agradecer por não ter passado por isso, como uma proteção que evitasse que o mesmo acontecesse comigo. Conosco: meus filhos, Ruby e Frank e Nick, meu marido. Nosso quarteto — que é a fonte das minhas maiores alegrias, assim como das minhas mais desgastantes preocupações.

Assim, quando o pager do meu marido toca durante o jantar, não me permito ficar ressentida ou mesmo decepcionada. Digo a mim mesma que é apenas uma refeição, uma noite, mesmo sendo nosso aniversário de casamento e a primeira noite que Nick e eu passamos juntos em quase um mês, ou talvez dois. Não tenho nenhum motivo para me chatear, não quando comparo a minha vida com a de alguma outra pessoa que está sofrendo neste mesmo instante. Este não será o momento que terei de relembrar para sempre, pois ainda estou entre os afortunados.

— Droga. Sinto muito, Tess — diz Nick, desligando seu pager e correndo sua mão pelo seu cabelo negro. — Volto em um instante.

Aceno com a cabeça, indicando que compreendo e assisto a meu marido avançar, sexy e seguro, em direção à entrada do restaurante onde fará a ligação necessária.

Posso dizer, apenas pelas suas costas eretas e pelos ombros expandidos, enquanto circula primorosamente por entre as mesas, que está se preparando para a má notícia, para É curar alguém, para salvar uma vida. É quando dá o melhor de si. Foi esse o principal motivo pelo qual me apaixonei por ele há sete anos.

Nick sai de vista enquanto respiro fundo e estudo o ambiente ao meu redor, observando os detalhes do local pela primeira vez. A pintura abstrata verde-acinzentada acima da lareira, a oscilação suave da luz de velas, as risadas espirituosas da mesa ao lado onde um homem grisalho é o centro das atenções diante do que parece ser sua esposa e seus quatro filhos já adultos.

Minutos mais tarde, Nick retorna à mesa com o rosto pesaroso e se desculpa pela segunda, mas com certeza não pela última, vez.

— Tudo bem — digo, procurando por nosso garçom.

— Ali está ele — diz Nick. — Ele está trazendo nosso jantar embalado para viagem.

Estendo meus braços sobre a mesa e pego sua mão, apertando-a levemente. Ele corresponde e, enquanto esperamos por nossos filés em embalagens de isopor, cogito perguntar o que aconteceu, como quase sempre.

Porém, faço duas preces rápidas: para as pessoas que não conheço e outra para os meus filhos, dormindo seguros sob as cobertas em suas camas.

Imagino Ruby, roncando levemente, toda emaranhada em seus lençóis, travessa mesmo quando dorme. Nossa preciosa e destemida primogênita, com 4 anos, mas com atitude de 14, um sorriso encantador, cachos negros que ela torna ainda mais encaracolados quando faz desenhos de si mesma — jovem demais para saber que, como uma garota, se espera que queira o cabelo que não tem — e aqueles olhos azul-acinzentados, uma conquista genética já que seus pais têm olhos castanhos. Ela dominou nosso lar e nosso coração praticamente desde o dia em que nasceu, de tal maneira que chega a me consumir e, ao mesmo tempo, enche-me de admiração. Ela é exatamente como seu pai — teimosa, impulsiva e linda de morrer, a típica filhinha do papai.

E, então, temos o Frank, nosso menino com fofura e doçura superiores às dos bebês em geral, tanto que desconhecidos param e comentam no mercado. Ele tem quase 2 anos, mas ainda gosta de afagos. Aconchega seu rosto redondo e macio em meu pescoço, extremamente apegado a sua mamãe. Ele não é meu preferido, juro a Nick quando estamos a sós sempre que ele sorri e me acusa dessa transgressão parental. Não tenho um favorito, a não ser que seja o próprio Nick, mas é um tipo diferente de amor, claro. O amor por meus filhos é incondicional e infinito. Se, por acaso, os três fossem picados por uma cascavel durante um acampamento e eu tivesse apenas duas doses de soro antiofídico em minha mochila, salvaria meus filhos, e não a Nick. Contudo, não há ninguém com quem eu goste mais de conversar e passar o tempo e que eu ame mais admirar que meu marido, um sentimento sem precedentes que tomou conta de mim assim que nos conhecemos.

Nosso jantar e a conta chegam momentos depois. Nick e eu nos levantamos e saímos do restaurante sob uma noite estrelada e azul. É começo de outubro, porém, mais parece inverno que outono — frio até mesmo para os padrões de Boston —, e encolho-me de frio sob meu longo casaco de caxemira, enquanto ele entrega o bilhete ao manobrista. Em seguida, entramos em nosso carro. Saímos da cidade e voltamos para Wellesley, conversando pouco, ouvindo um de seus vários CDs de jazz.

Trinta minutos depois, entramos com o carro em nossa garagem.

— Acha que chegará muito tarde?

— Difícil dizer — diz Nick, parando o carro e se inclinando para beijar-me o rosto. Viro meu rosto em sua direção e nossos lábios se encontram suavemente.

— Feliz aniversário de casamento — ele sussurra.

— Feliz aniversário de casamento — retribuo.

Ele se afasta e nossos olhos se encontram quando pergunta:

— Depois continuamos de onde paramos?

— Sempre — digo, forçando um sorriso.

Antes que eu feche a porta do carro, Nick aumenta o volume do som, pontuando de maneira dramática o final de uma noite e o início de outra. Enquanto abro a porta de casa, a música Lullaby of the Leaves, de Vince Guaraldi, ecoa em minha cabeça, onde permanece mesmo muito tempo depois de pagar à babá, verificar se as crianças estão bem, tirar meu vestido preto decotado nas costas e comer filé frio no balcão da cozinha.

Bem mais tarde, depois de deixar o lado de Nick na cama e voltar para o meu, encontro-me sozinha na escuridão, pensando sobre a ligação no restaurante. Fecho os olhos, e pergunto-me se realmente somos surpreendidos pelo azar, ou se, de alguma maneira, em algum lugar, na forma de empatia, preocupação, ou até mesmo de uma premonição, pressentimos que ele chegará?

Pego no sono sem saber a resposta. Sem saber, no entanto, se essa será a noite da qual me lembrarei para sempre.

02

[VALERIE ]

Valerie sabia que deveria ter dito não, ou, mais precisamente, que deveria ter continuado dizendo não como resposta mesmo depois das mais de dez vezes em que Charlie implorou para ir à festa. Ele tentou de tudo, incluindo apelar para o peso na consciência com a frase “Mas eu não tenho um papai nem um cachorro”. Mas, quando, mesmo assim, não conseguiu nada, convocou o apoio de seu tio Jason, a pessoa mais convincente que Valerie conhecia.

— Ah, por favor, Val. Deixe o garoto se divertir um pouco — ele disse.

Valerie mandou seu irmão gêmeo se calar, apontando para a sala, onde Charlie construía uma elaborada masmorra de Legos. Jason repetiu a mesma frase, com as mesmas palavras, mas desta vez com um sussurro exagerado, enquanto Valerie abanava negativamente a cabeça, argumentando que era cedo demais para uma criança de 6 anos dormir na casa de um amigo, principalmente ao ar livre, dentro de uma barraca. Era um bate-boca habitual, ?á que Jason sempre acusava sua irmã de ser superprotetora e rígida demais com seu único fi lho.

— Claro — disse Jason, zombando de Valerie —, ouvi dizer que os ataques de ursos estão aumentando em Boston.

— Muito engraçado — respondeu Valerie, explicando que não conhecia bem a família do outro garoto o suf i ciente, e que, do pouco que conheceu, não gostou muito.

— Deixe-me adivinhar, eles são podres de ricos? — Jason caçoou, puxando sua calça ?eans, que deslizava o tempo todo de seu corpo magro, exibindo o elástico de sua boxer.

— E você não quer que ele se misture com esse tipo de gente?

Valerie encolheu os ombros e se entregou a um sorriso, perguntando-se como ele havia adivinhado. Por acaso ela era tão previsível assim? E como, perguntou-se pela milionésima vez, ela e seu irmão gêmeo podiam ser tão diferentes, ?á que cresceram ?untos na mesma casa de telhas marrons em uma vizinhança católico-irlandesa em Southbridge, Massachusetts? Eram melhores amigos, dividiram o mesmo quarto até os 12 anos, quando Jason se mudou para o sótão frio, cheio de correntes de vento, para dar mais espaço à sua irmã. Com cabelos castanhos, olhos azuis amendoados e pele clara, eles até se pareciam e, muitas vezes, as pessoas, inclusive, achavam que eram gêmeos idênticos quando ainda bebês. Além disso, de acordo com a mãe deles, Jason ?á saiu da barriga sorrindo, enquanto Valerie saiu franzindo a testa e preocupada. E assim permaneceram por toda a infância: Valerie, a tímida solitária, sempre sob à sombra de seu irmão popular, extrovertido e quatro minutos mais velho.

Agora, 30 anos depois, Jason continua feliz como sempre, um otimista despreocupado, pulando de um hobby ou emprego para outro, absolutamente confortável em sua própria pele, principalmente desde que saiu do armário logo depois da morte do pai, no último ano do colegial. Como sempre, foi mau aluno; ho?e trabalha em um café em Beacon Hill, fazendo amizade com todos os que entram pela porta e em todos os lugares aonde vai, como sempre.

Enquanto isso, Valerie ainda estava insegura e deslocada na maior parte do tempo, apesar de todas as suas conquistas. Não mediu esforços para fugir de Southbridge, terminou o colegial como uma das alunas mais brilhantes, frequentou a Amherst College com bolsa plena e foi trabalhar como assistente ?urídica em uma renomada empresa de advocacia de Boston enquanto estudava para o LSAT2 e ainda economizava para pagar o curso de direito.

Ela dizia a si mesma que era tão boa quanto os outros e mais inteligente que a maioria, mas, mesmo assim, nunca se sentiu enturmada depois de deixar sua cidade natal.

Quanto mais sucesso obtinha, mais se sentia afastada de seus velhos amigos, principalmente de sua melhor amiga, Laurel, que cresceu três casas para baixo de Val e Jason.

Esse sentimento, sutil e difícil de identif i car no início, culminou em uma grande discussão durante um churrasco na casa de Laurel em um dia de verão.

Depois de alguns drinques, Valerie fez um comentário impensado sobre como Southbridge era tão sufocante quanto o noivo de Laurel. Ela estava apenas tentando a?udar e até sugeriu que Laurel se mudasse para seu pequeno apartamento em Cambridge, mas arrependeu-se assim que falou, e fez de tudo para reparar o dano, pedindo desculpas incessantemente nos dias seguintes. Mas Laurel, que sempre teve pavio curto, isolou-a sumariamente, espalhando rumores do esnobismo de Valerie entre seu velho círculo de amigas — garotas que, como Laurel, viviam com seus antigos namoradinhos da adolescência, agora maridos, na mesma vizinhança onde cresceram, frequentavam os mesmos bares nos fi ns de semana e tinham o mesmo emprego sem graça de seus pais.

Valerie fez o que p?de para se defender dessas acusações e conseguiu consertar superf i cialmente as coisas, mas, a não ser que se mudasse de volta para Southbridge, não havia mais nada que pudesse fazer para que as coisas voltassem a ser como antes.

Foi durante esse período solitário que começou a agir de uma maneira que nem ela mesma conseguia explicar.

Fazendo tudo o que havia ?urado que nunca faria, mais especif i camente, apaixonar-se pelo homem errado, engravidar um pouco antes de ele deixá-la e comprometer seus planos de estudar direito. Anos mais tarde, às vezes, se perguntava se havia inconscientemente tentado sabotar seus próprios esforços para fugir de Southbridge e estabelecer um tipo diferente de vida para si mesma, ou talvez achasse que não merecesse a carta de admissão no curso de direito, de Harvard, colada à geladeira ao lado das fotos do ultrassom.

De qualquer maneira, encontrou-se presa entre dois mundos, orgulhosa demais para ir atrás de Laurel e suas velhas amigas e constrangida demais com sua gravidez para manter as amizades da faculdade ou fazer novos amigos em Harvard. Sentia-se mais só do que nunca, lutando para terminar o curso de direito e cuidando de um recém-nascido. Jason entendia como as coisas podiam ser difíceis para sua irmã durantes esses primeiros meses e anos de maternidade. Ele podia ver claramente quanto ela estava consumida pelo cansaço, pelo trabalho e pela preocupação, e possuía um respeito inf i ndável pelo grande esforço de sua irmã para sustentar a si mesma e a seu fi lho.

Mesmo assim, não conseguia entender por que ela insistia em se isolar, sacrif i cando qualquer indício de vida social, com exceção de algumas poucas amizades casuais. Sua desculpa era falta de tempo, assim como sua devoção e atenção unicamente direcionadas a Charlie, mas Jason não acreditava nela e constantemente a convidava para sair, af i rmando que ela utilizava Charlie como um escudo para não correr riscos e evitar a re?eição.

Agora ela pensava sobre a teoria de seu irmão, enquanto se voltava para o fogão e preparava panquecas. Ela não era uma ótima cozinheira, mas fazia muito bem todos os pratos típicos de café de manhã graças ao seu primeiro emprego, como garçonete em uma cafeteria, e a uma paixonite por um dos cozinheiros do local. Isso aconteceu há muito tempo, mas, na opinião de Jason, ela ainda se identif i cava mais com aquela garota que servia café do que com a advogada bem-sucedida que se tornou.

— Você é uma orgulhosa, sabia? — disse Jason, arrancando três toalhas de papel para utilizá-las como guardanapo e pondo a mesa.

— Não sou, não? — Valerie replicou, revirando a acusação em sua cabeça e admitindo a si mesma, de maneira envergonhada, quantas vezes tinha passado pelas casas suntuosas de Clif f Road e suposto que seus moradores eram, na melhor das hipóteses superf i ciais e, na pior, grandes mentirosos. É como se ela, inconscientemente, relacionasse a riqueza com alguma fraqueza de caráter e desaf i asse esses estranhos a provarem o contrário. Não era ?usto, ela sabia, mas muitas outras coisas não eram ?ustas na vida.

Em momento algum, Daniel e Romy Croft tentaram provar que ela estava errada na noite em que os conheceu, quando a escola estava aberta aos pais. Como a maioria das famílias na Longmere Country Day, a escola particular de ensino fundamental de Wellesley que Charlie frequentava, os Croft eram inteligentes, atraentes e polidos. Mesmo assim, enquanto liam a etiqueta com seu nome presa em sua blusa, ou tentavam uma conversa superf i cial, Valerie sentia que estavam olhando além dela, através dela, procurando por outra pessoa na sala — uma pessoa mais interessante.

Mesmo quando Romy falou de Charlie, algo pareceu falso e arrogante em seu tom de voz.

— O Grayson adora o Charlie, disse, colocando intencionalmente uma mecha de cabelo loiro-claro atrás da orelha, pausando, com as mãos soltas no ar, aparentemente para exibir o imenso diamante em seu dedo anelar. Em uma cidade conhecida por possuir pedras enormes, Valerie nunca vira uma tão impressionante.

— Charlie também gosta muito de Grayson — Valerie respondeu, cruzando seus braços sobre sua blusa rosa-f l amingo e lamentando não estar vestindo seu terno cinza-escuro. Não importava quanto tentasse, quanto gastasse em seu guarda-roupa, parecia que sempre escolhia a roupa errada.

Naquele momento, os dois garotos atravessaram a sala de mãos dadas, Charlie abrindo o caminho até a gaiola do hamster. Qualquer um perceberia que os dois eram melhores amigos, fundadores inabaláveis de uma sociedade de admiração mútua composta de apenas duas pessoas.

Então, por que Valerie presumiu que Romy não estava sendo sincera? Por que não conseguia dar algum crédito a si mesma ou, bem dizer, ao seu próprio fi lho? Perguntava a si mesma quando Daniel Croft se aproximou com um copo plástico de ponche em uma mão, pousando a outra nas costas de sua esposa. Era um gesto sutil que ela veio a identif i car em seu estudo implacável sobre os casais, um gesto que a enchia de quantidades iguais de inve?a e arrependimento.

— Querido, esta é Valerie Anderson… mãe de Charlie — Romy indicou, dando a Valerie a impressão de que eles ?á haviam conversado sobre ela antes daquela noite — além do fato de não haver um pai ao lado do nome de Charlie registrado no diretório da escola.

— Ah, claro? — acenou Daniel, apertando-lhe a mão vigorosamente e estabelecendo um contato visual rápido e indiferente.

— Olá.

Valerie retribuiu o cumprimento e, depois de alguns segundos de silêncio, Romy ?untou as mãos e disse:

— Então, Valerie, você recebeu o convite para a festa de Grayson? Mandei-o há algumas semanas.

Valerie sentiu seu rosto corar enquanto respondia.

— Sim, sim. Muito obrigada — queria morrer por não ter conf i rmado presença, pois tinha certeza de que isso seria um grande problema para Romy, mesmo sendo apenas uma festa de criança.

— Então? — insistiu Romy. — O Charlie pode ir?

Valerie hesitou, sentindo-se intimidada por essa mulher impecável e extremamente segura, como se estivesse novamente no colegial e Kristy Mettelman tivesse acabado de lhe oferecer um trago de seu cigarro e uma carona em seu Mustang vermelho-cere?a.

— Não sei. T enho de… ver em minha agenda. É na próxima sexta-feira, não é? — gague?ou com se tivesse centenas de eventos sociais a frequentar.

— Isso mesmo — disse Romy, abrindo os olhos e o sorriso enquanto acenava para outro casal que acabara de chegar com sua fi lha. — Olhe, querido, April e Rob chegaram — murmurou a seu marido. Então Romy tocou no braço de Valerie, deu-lhe um último sorriso impessoal e disse:

— Foi tão bom te encontrar. Esperamos que o Charlie vá à festa na próxima sexta.

Dois dias depois, segurando o convite em forma de barraca, Valerie discou o número da casa dos Croft. Sentiu uma onda inexplicável de nervosismo — fobia social era como seu médico chamava — enquanto esperava que alguém atendesse. Sentiu um alívio palpável quando ouviu a secretária eletr?nica lhe pedindo que deixasse um recado.

Então, apesar de todos aqueles argumentos contra a ida de seu fi lho à festa, sua voz subiu várias oitavas e disse:

— Seria um prazer para Charlie ir à festa de Grayson.

Um prazer.

Essas foram as palavras que ela repetia quando recebeu a ligação, apenas três horas depois de deixar Charlie na festa com seu saco de dormir de dinossauro e seu pi?ama estampado com foguetes. E não acidente, ambulância, pronto-socorro ou qualquer uma das outras palavras que ouviu claramente Romy Croft dizer, mas ainda não conseguia processar enquanto se vestia, pegava sua bolsa e dirigia até o Hospital Geral de Massachusetts. Ela não conseguia nem dizer essas palavras em voz alta quando ligou do carro para seu irmão, acreditando irracionalmente que dizê-las tornaria a situação mais real.

Em vez disso, disse:

— Venha ?á. Rápido.

— Aonde? — perguntou Jason, tentando ouvi-la apesar da música alta que tocava no fundo.

Quando ela não respondeu, a música parou e ele perguntou novamente, mais preocupado:

— Valerie? Aonde?

— Hospital Ger… É o Charlie — conseguiu responder, pisando mais fundo no acelerador, ultrapassando muito o limite de velocidade.

Suas mãos presas ao volante estavam suadas, com os nós dos dedos esbranquiçados, mas por dentro sentia-se estranhamente calma, mesmo quando ultrapassava um sinal vermelho e depois outro. Era quase como se ela estivesse assistindo a si mesma de fora de seu corpo ou a outra pessoa. É isso o que as pessoas fazem, pensou.

Chamam os mais próximos, correm até o hospital e ultrapassam os sinais vermelhos.

Seria um prazer para Charlie ir à festa, ouviu novamente, enquanto chegava ao hospital e seguia as placas até o pronto-socorro. Perguntou-se como p?de ser tão descuidada, sentada no sofá vestindo um moletom, com um saco de pipoca de micro-ondas e um fi lme de ação do Denzel Washington. Como ela poderia não saber o que estava acontecendo no palacete da Rua Albion? Por que ela não seguiu seus instintos quanto a essa festa? Então prague?ou em voz alta um único e rouco “droga”, com o coração cheio de culpa e arrependimento, diante do prédio nebuloso de ti?olo e vidro diante de si.

A noite tornou-se confusa a partir de então — um con?unto de momentos desconexos, e não uma cronologia suave. Mais tarde, ela se lembraria de ter deixado o carro no meio-f i o, ignorando a placa de PROIBIDO ESTACIONAR e de ter encontrado Jason, com o rosto pálido, atrás das portas duplas de vidro; da enfermeira da triagem, digitando calma e ef i cientemente o nome de Charlie antes de outra enfermeira guiá-los por longos corredores com cheiro de alve?ante até a unidade para queimados da UTI Pediátrica;

de ter cruzado com Daniel Croft no caminho e parado quando Jason perguntou o que havia acontecido e de sua resposta vaga e cheia de culpa:

— Eles estavam preparando smores.3 Eu não vi. Então, veio à sua cabeça a imagem de Daniel digitando em seu BlackBerry ou admirando a paisagem, de costas para a fogueira e para o seu único fi lho.

Ela também se lembraria da imagem assustadora quando viu o pequeno corpo de Charlie, imóvel, sedado e entubado, de seus lábios azuis, do pi?ama cortado e das ataduras branquíssimas cobrindo sua mão direita e o lado esquerdo de seu rosto. Recordaria o bip dos monitores, o zunido do respirador e as enfermeiras frias e alvoroçadas.

Lembraria seu apelo desesperado a Deus, a quem, fazia muito tempo, havia deixado de lado enquanto segurava a mão esquerda do fi lho e esperava.

Mas, principalmente, se lembraria do homem que chegou para examinar Charlie no que parecia ser o meio da noite, depois que seu maior medo havia se dissipado. Como ele descobrira delicadamente o rosto de Charlie, expondo a pele queimada sob as ataduras. Como a levou até o corredor, onde se voltou para ela e começou a falar.

— Eu sou o Dr. Nick Russo — disse com a voz profunda e lenta. — E sou um dos melhores cirurgiões plásticos pediátricos do mundo.

Valerie olhou em seus olhos castanhos e suspirou, suas entranhas se soltaram, enquanto dizia a si mesma que não mandariam um cirurgião plástico se a vida de seu fi lho corresse perigo. Ele fi caria bem. Não morreria. Ela soube disso quando olhou nos olhos do médico. Então, pela primeira vez, pensou em como a vida de Charlie havia mudado. Como essa noite o marcaria de diversas maneiras.

Sentindo-se determinada a proteger seu fi lho qualquer que fosse o resultado, ela se ouviu perguntando ao Dr. Russo se ele poderia corrigir o rosto e a mão de seu fi lho, se poderia deixá-lo lindo como era antes.

— Farei tudo o que puder pelo seu fi lho — disse —, mas quero que se lembre de uma coisa. Pode ser?

Concordou, pensando que ele diria para não esperar por milagres. Como se ela ?á tivesse feito isso alguma vez em sua vida.

Em vez disso, o Dr. Russo olhou em seus olhos e falou as palavras que ela nunca esquecerá:

— Seu fi lho é lindo — ele disse. — Ele é lindo agora.

Ela concordou novamente, acreditando e conf i ando no médico. E só então, pela primeira vez em muito tempo, as lágrimas afloraram de seus olhos.

03

[TESSA ]

Em algum momento no meio da noite, acordei com a presença terna de Nick ao meu lado. Com os olhos ainda fechados, passei minha mão sobre seu ombro, descendo pelas suas costas nuas, sua pele estava perfumada por causa do banho que tomou, como de costume, assim que voltou do hospital e senti uma onda de atração que foi rapidamente desfeita por uma dose ainda maior de cansaço, o que era comum desde que Ruby nasceu — e, com certeza, desde a chegada de Frank. Ainda amo fazer amor com meu marido, tanto quanto antes, mas após vencermos a inércia.

O que acontece é que, ho?e em dia, pref i ro dormir a fazer qualquer outra coisa — chocolate, vinho tinto, HBO e sexo.

— Olá — ele sussurrou com a sua voz abafada pelo travesseiro.

— Não te ouvi chegar… que horas são? — pergunto esperando que se?a meia-noite e não 7 horas, o horário em que as crianças acordam automaticamente, mais implacáveis que meu despertador e sem opção de botão de soneca.

— Duas e meia.

— Hora de ir ao dentista — murmuro.

É É uma de suas brincadeiras com Ruby:

— Que horas são, papai?

Nick faz uma careta, aponta para sua boca e diz:

— Duas e meia.4 Hora de ir ao dentista. — T odo mundo adora.

— Uh-huh — Nick diz distraído, demonstrando claramente que não está a fi m de conversa. Contudo, quando abri os olhos e o vi virar seu corpo e encarar f i xamente o teto, a curiosidade tomou conta de mim. Então perguntei, da maneira mais casual que pude, dada a natureza da minha indagação, se era algum defeito congênito, problema muito frequente no trabalho de Nick.

Ele suspirou e disse que não.

Hesitei e tentei adivinhar mais uma vez:

— Um acidente de carro?

— Não, T ess — falou tão pacientemente que acabou por entregar sua impaciência. — Foi uma queimadura, um acidente.

Ele adicionou essa última frase como uma explicação.

Em outras palavras, não era caso de maus-tratos;

infelizmente, longe de ser um dado, Nick me disse uma vez que cerca de 10% de todas as queimaduras pediátricas eram resultantes de maus-tratos.

Mordi meu lábio inferior, minha mente fervilhando com as possibilidades de sempre, uma panela de água fervente caindo do fogão, uma banheira com água escaldante, um incêndio, uma queimadura química, e sou incapaz de resistir à pergunta seguinte. A pergunta de como isso aconteceu. É a pergunta à que Nick geralmente resiste, sua resposta costuma ser algo como:

— Que diferença faz? Foi um acidente, acidentes são assim, simplesmente acontecem.

Nesta noite ele limpou a garganta e se resignou a me contar o que aconteceu. Um garoto de 6 anos estava assando marshmallows, e de alguma maneira caiu na fogueira e queimou sua mão e o lado esquerdo do rosto.

O discurso de Nick foi rápido e desapegado, como se estivesse me contando a previsão do tempo. Mas sei que é apenas uma encenação — um disfarce muito bem treinado.

Sei que provavelmente fi cará acordado uma boa parte da noite, incapaz de cair no sono por causa da adrenalina desta noite, e, mesmo amanhã pela manhã, ou mais provavelmente à tarde, descerá as escadas com uma expressão distante, fi ngindo estar envolvido com sua própria família enquanto pensa na mão e no rosto daquele garotinho.

A medicina é uma amante ciumenta, penso, uma expressão que ouvi pela primeira vez durante o primeiro ano de residência de Nick, da esposa amarga de um médico que, soube depois, trocou seu marido por seu personal trainer. Jurei, então, que nunca me sentiria assim. Que sempre veria a nobreza do trabalho de meu marido, mesmo que isso signif i casse certa quantidade de solidão.

— É muito grave? — perguntei a Nick.

— Poderia ser pior — respondeu. — Mas não é bom.

Fechei meus olhos, procurando por um lado positivo em tudo isso, sabendo que esse é o papel implícito que me cabe em nosso relacionamento. O Nick pode ser o eterno otimista no hospital, transbordando conf i ança, até vanglorioso. Mas aqui em casa, em nossa cama, ele depende de mim para obter esperança, mesmo quando está em silêncio, impenetrável.

— Seus olhos foram afetados? — pergunto por fi m, lembrando que Nick uma vez conf i denciou quanto era complexo reparar o que todos acreditam ser a ?anela para a alma.

— Não — disse enquanto virava de lado, voltando-se para mim. — Seus olhos estão perfeitos. Grandes e azuis… como os de Ruby.

Sua voz desapareceu como acredito ser um sinal de entrega, quando Nick compara um paciente a Ruby ou Frank, sei que começara a fi car obcecado.

— Além disso, ele tem um médico até que bom — eu disse, por fi m.

Ouvi um pequeno sorriso sair na voz de Nick enquanto repousava sua mão em meu quadril e dizia:

— Sim, ele tem essa vantagem, não tem?

Na manhã seguinte, logo depois que Nick voltou ao hospital, preparei o café da manhã resistindo a um sho? de reclamações estrelado por minha fi lha. Para se ter uma ideia, Ruby não gosta de acordar cedo, outro traço herdado de seu pai. Em 15 minutos, ela ?á havia reclamado que Frank a estava “encarando”, que sua banana estava muito mole e que preferia a torrada que o papai fazia na chapa à minha, feita na torradeira.

Assim, quando o telefone tocou, atendi rapidamente, sentindo o alívio de uma companhia adulta e civilizada (outro dia, fi quei empolgada quando um entrevistador de pesquisas de opinião ligou), ainda mais quando vi o nome de Cate no identif i cador de chamadas do telefone. Cate Hof f man e eu nos conhecemos há quase 16 anos em uma festa fora do campus na primeira semana como calouras da Universidade de Cornell, quando fomos formalmente apresentadas ao mundo universitário de ?ogos como beer pong,5 quarters6 e “Eu nunca”.7 Vários drinques mais tarde, depois de perguntarem inúmeras vezes se éramos irmãs, e de reconhecermos algumas semelhanças como lábios carnudos, nariz pronunciado e luzes loiras, prometemos cuidar uma da outra — uma promessa que cumpri mais tarde, salvando-a de um mauricinho com olhar malicioso, membro de uma fraternidade universitária, levando-a até seu dormitório e segurando seu cabelo enquanto vomitava as tripas em uma hera. A experiência nos aproximou e continuamos melhores amigas nos quatro anos seguintes e depois da formatura. De nossos 20 e poucos anos em diante, nossa vida tomou caminhos diferentes ou, mais precisamente, a minha mudou e a dela permaneceu praticamente igual. Ela ainda vive na cidade (no mesmo apartamento em que uma vez moramos ?untas), ainda namora um homem atrás do outro e ainda trabalha com televisão. A única diferença de fato é que agora ela trabalha na frente das câmeras, apresentando um programa de entrevista da televisão a cabo chamado Cate’s Corner e, muito recentemente, obteve um pouco de fama na área de Nova York.

— Olhe, Ruby? É a tia Cate? — disse com extremo ânimo, esperando que meu entusiasmo surtisse algum efeito sobre minha fi lha, que, nesse momento, estava emburrada, pois me recusei a colocar mais chocolate em seu leite. Atendi o telefone e perguntei a Cate o que estava fazendo acordada tão cedo.

— Estou indo à academia, comecei um novo regime para entrar em forma — disse Cate. — Preciso perder alguns quilinhos.

— Ah, precisa nada — disse revirando os olhos. Cate tem um dos corpos mais lindos que ?á vi, mesmo entre as mulheres que nunca tiveram fi lhos ou as que foram “retocadas”. Infelizmente, as pessoas não acham mais que somos irmãs.

— O.k., talvez não na vida real. Mas você sabe que a câmera engorda no mínimo quatro quilos — disse, mudando abruptamente de assunto, como sempre. — Então, o que você ganhou? O que você ganhou?

— O que eu ganhei? — perguntei, enquanto Ruby reclamava que queria sua torrada “inteira”, uma decisão radical, ?á que sempre exige que sua torrada se?a cortada em “pequenos pedacinhos quadrados”, todos exatamente do mesmo tamanho e sem casca. Cobri o telefone com a mão e disse:

— Querida, acho que alguém esqueceu a palavra mágica.

Ruby me olha pasma, indicando que não acredita em mágica. Até agora, ela é a única criança em idade pré-escolar que conheço que ?á questionou a veracidade do Papai Noel, ou pelo menos a logística de suas entregas.

Contudo, mágica ou não, não me mexo até ela retif i car seu pedido.

— Quero inteira, por favor.

Aceno enquanto Cate continua ansiosamente:

— De aniversário de casamento. O que o Nick te deu?

Os presentes de Nick constituem um dos tópicos favoritos de Cate, talvez por nunca ter passado da fase dos buquês de fl ores com cartões escritos “obrigado pela noite passada”. Por isso, diz que vive indiretamente através de mim. Em suas palavras, tenho a vida perfeita — palavras que ela solta em um tom que fi ca entre o dese?oso e o acusatório, dependendo do último encontro que teve.

Não importa quantas vezes eu diga que não é bem assim e que morro de inve?a de sua agitada agenda social, de seus encontros picantes (incluindo um ?antar recente com um ?ogador do Yankee) e de sua absoluta e maravilhosa liberdade, o tipo de liberdade para a qual ninguém dá valor, até que se tenha fi lhos. E não importa quanto eu conte, em meus desabafos, sobre as queixas típicas de uma mãe que não trabalha, mais precisamente da frustração de terminar o dia no mesmo lugar onde começou, e do fato de eu, às vezes, passar mais tempo com o Elmo, a Dora e o Barney que com o meu marido. Nada disso consegue convencê-la.

Ainda assim, ela trocaria sua vida comigo em um piscar de olhos.

Quando comecei a responder à pergunta de Cate, Ruby soltou um grito assustador:

— Nãããããão, mamãe? Eu disse inteira?

Fiquei paralisada com a faca no ar, percebendo que acabara de cometer um erro fatal, fazendo quatro cortes horizontais em sua torrada. Droga, pensei enquanto Ruby exigia que eu colasse os pedaços de pão de volta, acrescentando à sua atuação uma corrida melodramática até o armário onde guardávamos os materiais de artes.

Enquanto ela pegava um tubo de cola entrando na minha frente de maneira desaf i adora, eu considerava a possibilidade de provocá-la passando de fato a cola sobre sua torrada “com um R cursivo, igual ao do papai”.

Entretanto, em vez disso, disse com toda a calma que me cabia:

— Ruby, você sabe que não pode colar comida.

Ela me encarou como se eu falasse grego, o que exigiu que eu fosse mais clara:

— Você terá de sobreviver com os pedaços.

Ouvindo essa pequena dose de disciplina, ela continuou a sofrer pela torrada que poderia ter sido inteira. Pensei que uma maneira fácil de consertar as coisas teria sido comer eu mesma a torrada e fazer outra para ela, mas havia algo tão irritante em sua expressão que me encontrei recitando em silêncio as palavras do pediatra, de vários livros e de minhas amigas mães que também não trabalham: “Não se renda às exigências de seus fi lhos”. Uma fi losof i a totalmente oposta ao ditado que costumo defender:

“Escolha suas batalhas” — que confesso ser o código secreto para “Mantenha-se fi rme apenas se for conveniente;

caso contrário, satisfaça a vontade do outro a fi m de facilitar sua vida”. Além do mais, pensei enquanto me preparava para um impasse terrível, estava tentando evitar carboidratos desde aquela manhã.

Então, com as minhas celulites resolvendo o caso, coloquei determinadamente o prato com a torrada diante dela sobre a mesa e anunciei:

— É isso ou nada.

— Nada, então? — ela gritou.

Mordi os lábios e encolhi os ombros como se dissesse “Pode fazer greve de fome, então” e saí para a sala de TV onde Frank comia silenciosamente seus cereais secos, sem leite, um de cada vez, a única coisa no mundo que ele come no café da manhã. Passando minha mão por seus cabelos macios, suspiro no telefone e digo:

— Desculpa, Cate. Onde estávamos?

— Falando sobre seu aniversário de casamento — disse Cate, cheia de expectativas, esperando ansiosamente que eu descrevesse uma noite romântica perfeita, o conto de fadas a que ela tanto se apega e que tanto dese?a.

Na maioria dos dias, odeio desapontá-la. Porém, enquanto escutava os soluços cada vez mais altos de minha f i lha e a via tentar enrolar sua torrada como uma massinha de modelar, só para provar que eu estava errada e que aquele alimento podia sim ser colado, senti prazer em dizer a Cate que Nick havia sido chamado pelo hospital no meio do ?antar.

— Ele não mudou seu horário de plantão? — perguntou decepcionada.

— Não, ele esqueceu.

— Nossa, que chato — disse. — Sinto muito.

— Pois é.

— Então vocês não trocaram presentes? Nem mesmo quando ele chegou em casa?

— Não — respondi. — Combinamos de não darmos presentes este ano. Estamos um pouco apertados.

— Sim, claro — concordou Cate, recusando-se a acreditar em outra coisa sobre a minha vida, que cirurgiões plásticos não são podres de ricos, pelo menos os que trabalham em hospitais universitários a?udando crianças, e não em clínicas particulares realizando implantes de silicone.

— É verdade — eu falei. — Abrimos mão de uma de nossas fontes de renda, lembra?

— Que horas ele chegou em casa? — Cate perguntou.

— T arde. T arde demais para s-e-x-o — disse torcendo para que minha fi lha superdotada não memorizasse as quatro letras e as proferisse para, digamos, minha sogra, Connie, que disse há pouco tempo que achava que as crianças viam muita TV.

— E você? — indaguei, lembrando que ela havia tido um encontro na noite anterior. — Aconteceu algo de interessante?

— Não, o período de seca continua — respondeu.

— O quê? A seca de cinco dias? — brinquei.

— Cinco semanas, para falar a verdade — ela respondeu.

— O sexo nem foi o problema, levei um bolo.

— Ah, cala a boca — disse, perguntando-me que homem poderia dar-lhe um bolo. Além de seu corpo perfeito, ela também é engraçada, inteligente e uma grande fã de esportes, capaz de falar sem parar sobre beisebol como a maioria das mulheres fala das últimas fofocas de Holly?ood.

Em outras palavras: ela é o sonho da maioria dos homens.

T udo bem que ela pode ser bastante carente e assustadoramente insegura, mas eles nunca saberiam disso logo de início. Em outras palavras, é possível que os homens terminem com ela, mas nunca deem um bolo.

Ruby avisa do outro c?modo que não é educado dizer “cala a boca”, enquanto Cate continua:

— Sim. Antes da noite passada, sempre tive isso ao meu favor, nunca havia levado um bolo e nunca saí com homem casado. Sempre achei que a primeira era minha recompensa pela segunda. Que carma?

— T alvez fosse casado.

— Não, def i nitivamente não era casado. Fiz minha lição de casa.

— Espere um pouco. Esse era o contador do eHarmony8 ou o piloto da sua última viagem?

— Nenhum dos dois, era o botânico da Starbucks.

Eu assobiava espiando escondida no canto do c?modo quando vi Ruby dar uma mordida furtiva na torrada. Ela odeia perder quase tanto quanto seu pai, que não consegue nem deixá-la ganhar em Candy Land.9 — Nossa? — disse. — Você levou um bolo de um botânico, incrível.

— Nem me diga — ela concordou —, e ele nem mandou uma mensagem de celular explicando-se ou pedindo desculpas. Um simples “Sinto muito, Cate, mas acho que pref i ro fi car com minha samambaia ho?e à noite”.

— Bem, talvez apenas tenha se esquecido — sugeri.

— T alvez tenha me achado velha demais — ela sup?s.

Abri a boca para refutar essa declaração, mas não consegui pensar em nada além do velho bordão, dizendo que o homem certo para ela está em algum lugar e que ela vai encontrá-lo em breve.

— Não sei não, T essa. Acho que você pode ter pego o último que havia sobrado.

Pela pausa que ela fez, eu ?á sabia exatamente o que diria a seguir, e logo adicionou em tom sádico:

— Os últimos dois melhores, sua desgraçada.

— Você pode me dar uma ideia de quando vai parar de falar sobre ele? — perguntei, referindo-me ao meu ex-noivo.

— Só para eu saber?

— Que tal nunca? — ela respondeu. — Ou, digamos, quando eu me casar. Mas espere aí. Essa é a mesma coisa que nunca, não é?

Soltei uma risada e disse que tinha de ir, ?á que minha memória estava me levando até Ryan, meu namorado da faculdade, e ao nosso noivado. Estávamos a poucas semanas de nosso casamento, concentrados nos roteiros para a lua de mel, nas provas fi nais do vestido e nas aulas para a primeira dança do casal. Os convites ?á haviam sido enviados, nossa lista de presentes estava completa e nossas alianças gravadas. Para todos em minha vida, eu era uma noiva típica e resplandecente, com os braços torneados, a pele bronzeada e o cabelo brilhante.

Literalmente resplandecente. Para todos, com exceção de minha terapeuta, Cheryl, que era quem, todas as terças-feiras às 19 horas, me a?udava a examinar a linha turva entre a ansiedade normal que antecede o casamento e o medo de compromisso proveniente do divórcio recente e doloroso de meus pais.

Pensando agora, a resposta era óbvia, a mera indagação sugerindo um problema, mas havia tantos fatores ofuscando a questão, confundindo meu coração. Para início de conversa, Ryan era tudo o que eu conhecia. Namorávamos desde o segundo ano na Cornell e perdemos a virgindade ?untos. Eu não conseguia nem imaginar bei?ar outro homem, muito menos amar outro homem. Tínhamos o mesmo círculo de amigos com quem compartilhávamos preciosas recordações dos tempos de faculdade e não queria perdê-los com um possível fi m no relacionamento. T ambém éramos apaixonados por literatura, fazíamos especialização em língua inglesa e éramos professores em escolas do ensino médio, embora eu estivesse prestes a começar a pós-graduação em Columbia, com o sonho de me tornar uma professora universitária. Na verdade, apenas alguns meses antes eu o havia dissuadido de se mudar para a cidade comigo, convencendo-o a deixar seu emprego e sua amada cidade natal de Buf f alo para viver uma vida mais excitante. E, embora fosse mesmo excitante, também era assustador. Eu cresci próximo a Westchester, fazendo viagens constantes para Manhattan com meu irmão e meus pais, mas morar na cidade era outra coisa, e Ryan era como minha rocha e meu porto seguro nesse mundo real, incerto e assustador. Ele era conf i ável, sincero, gentil e divertido, tinha uma família grande e barulhenta, e seus pais eram casados havia mais de 30 anos — um bom sinal, como dizia minha mãe.

Perfeito em tudo.

Por fi m, havia as doces declarações do próprio Ryan de que éramos perfeitos um para o outro. Que eu estava analisando demais as coisas, sendo neurótica como sempre.

Ele realmente acreditava em nosso relacionamento — o que, na maioria dos dias, era suf i ciente para que eu também acreditasse.

— Você é o tipo de garota que nunca estará totalmente pronta — ele me disse depois de uma sessão com Cheryl, contada a ele em detalhes apenas minimamente editados.

Estávamos sentados em um restaurante italiano no Village,10 aguardando pelo nhoque do dia, quando ele estendeu seu braço longo e delgado sobre a mesa e acariciou minha mão.

— É uma das coisas que mais amo em você.

Lembro-me de levar isso em consideração enquanto analisava sua expressão pragmática de decidir, com certo grau de tristeza e perda, que ele provavelmente estaria certo. Que talvez eu não estivesse preparada para aquele tipo de paixão incondicional e avassaladora que havia lido em livros, visto em fi lmes e mesmo ouvido alguns amigos, incluindo Cate, descrever. T alvez eu tivesse que me virar com os alicerces de nosso relacionamento — conforto, compatibilidade e compaixão. T alvez o que tínhamos fosse bom o suf i ciente e eu pudesse procurar pelo resto da vida e não encontrar nada melhor.

— Eu estou totalmente pronta — disse por fi m, convencendo-me de que essa era a verdade. Ainda não tinha certeza se estava decidida, mas, pelo menos em minha mente, a questão estava resolvida. Eu me casaria com Ryan. Decisão fi nal, última palavra.

Até três dias depois, ou se?a, quando vi o Nick pela primeira vez.

Eu estava em um vagão lotado do metr?, encarando minha viagem matinal até a aula, quando ele entrou duas paradas depois da minha, segurando uma caneca térmica de café grande e vestindo um avental cirúrgico azul-acinzentado. Seu cabelo negro e ondulado era mais longo do que é ho?e e lembro-me de pensar que ele se parecia mais com um ator que com um médico — e que talvez fosse um ator fazendo o papel de um médico, a caminho do set de fi lmagens. Lembro-me de olhar em seus olhos — os olhos castanhos mais acolhedores que eu ?á havia visto — e sentir-me dominada por um sentimento louco e visceral que só pode ser descrito como amor à primeira vista. Recordo-me de acreditar que estava salva por um momento, por uma pessoa que eu não conhecia e provavelmente ?amais conheceria.

— Olá — ele disse, sorrindo, enquanto alcançava a mesma haste de apoio à que me agarrava.

— Oi — respondi, recuperando o f?lego enquanto nossas mãos se tocavam. Conversamos durante todo o caminho até a cidade, falando sobre tópicos que nós dois, por incrível que pareça, não nos lembramos mais.

Em um dado momento, depois que nos aprofundamos em alguns assuntos pessoais, incluindo meu programa para me tornar Ph.D. e sua residência, ele avistou meu anel de diamantes e disse:

— Então, quando é o grande dia?

Disse que seria em 29 dias, e eu deveria parecer triste quando lhe respondi, pois seu olhar era compreensivo e perguntou-me se eu estava bem. É como se ele pudesse ver através de mim, em meu coração, e, enquanto eu olhava de volta para ele, não consegui me conter. Não podia acreditar que estava chorando diante de um total estranho, sendo que ainda não havia feito isso nem mesmo no sofá de tweed de Cheryl.

— Eu sei — disse ele gentilmente.

Perguntei como ele sabia.

— Estive em seu lugar — ele respondeu. — Claro que não estava a caminho do altar, mas mesmo assim… Ri soltando um soluço pouquíssimo atraente.

— T alvez tudo fi que bem — confortou-me, olhando para outro lado, como se estivesse tentando me dar alguma privacidade.

— T alvez — concordei, encontrando um lenço de papel em minha bolsa e me recompondo.

Um pouco depois, saímos do vagão na Rua 116 (que só depois eu soube que não era o destino de Nick) e a multidão se dispersou ao nosso redor. Lembro que estava muito quente, com o cheiro de amendoins torrados e o som de uma cantora de folk soprano vindo da rua de cima. O tempo parecia não correr enquanto o observava retirar uma caneta de um dos bolsos de seu avental e escrever seu nome e número do telefone que até ho?e guardo em minha carteira.

— Aqui está — disse ele, pressionando o cartão na palma de minha mão.

Li seu nome no cartão e pensei que ele tinha mesmo cara de Nicholas Russo. Deliciosamente sólido, sexy, bom demais para ser verdade.

Experimentei dizer em voz alta:

— Obrigada, Nicholas Russo.

— Nick — corrigiu. — E seu nome é?

— T essa — respondi, com as pernas bambas de tanta atração.

— Então, T essa, se quiser conversar, me ligue. Você sabe, às vezes a?uda conversar com alguém que não está… envolvido.

Olhei em seus olhos e consegui enxergar a verdade, ele estava tão envolvido quanto eu.

No dia seguinte disse a Ryan que não podia mais me casar com ele. Foi o pior dia da minha vida até aquele momento. Já haviam partido o meu coração antes dele — se bem que em um nível muito mais adolescente —, mas aquilo era muito pior. Era coração partido mais remorso e culpa, e até mesmo vergonha com o escândalo do cancelamento do casamento.

— Por quê? — ele indagou entre lágrimas sobre as quais ainda não consigo pensar atentamente.

Mesmo sendo difícil, senti que devia dizer a verdade, por mais brutal que fosse.

— Eu te amo, Ryan, mas não estou apaixonada por você, e não posso me casar com alguém por quem não estou apaixonada — sabendo que soava como uma desculpa de rompimento ?á muito man?ada. Como o tipo de desculpa superf i cial e sem conteúdo que homens de meia-idade dão antes de abandonar suas esposas.

— Como você sabe? — Ryan perguntou. — O que isso signif i ca, af i nal?

E eu só conseguia balançar a cabeça negativamente e pensar naquele momento no vagão, com o estranho chamado Nick vestindo o avental azul-acinzentado, e dizer incessantemente que sentia muito.

Cate foi a única que soube da história completa. A única que sabe a verdade, mesmo ho?e. Que conheci Nick antes de terminar o noivado com Ryan. Que, se não fosse por Nick, eu teria me casado com Ryan e que, provavelmente, ainda estaria casada com ele, morando em outra cidade com outros fi lhos e vivendo outra vida. T odas as mesmas desvantagens da maternidade, nenhuma das vantagens do amor.

É claro que houve especulações sobre inf i delidade entre alguns de nossos amigos que tomaram as dores de Ryan quando Nick e eu engatamos o namoro sério apenas alguns meses depois. Mesmo Ryan (que, naquela época, ainda me conhecia melhor que qualquer um, mais até que Nick) exprimiu dúvidas quanto à ordem e ao ritmo dos acontecimentos, como eu havia superado o ocorrido tão rapidamente.

— Quero acreditar que você é uma boa pessoa — ele escreveu em uma carta que ainda guardo em algum lugar.

— Quero acreditar que você foi sincera comigo e que nunca me trairia. Mas tenho dif i culdades em não me perguntar quando você e seu novo namorado de fato se conheceram.

Respondi a sua carta, apesar de ter me dito para não o fazer, declarando minha inocência e me desculpando mais uma vez pela dor que eu havia causado. Disse-lhe que sempre teria um lugar especial em meu coração e esperava que, com o tempo, me perdoasse e encontrasse alguém que o amasse como ele merecia ser amado. Estava implícito que eu havia encontrado o que queria para ele. Estava apaixonada por Nick.

É um sentimento que ?amais fora abalado. A vida não é divertida o tempo todo, e quase nunca é fácil, pensei, enquanto voltava à cozinha ainda relembrando meus erros, pronta para a minha segunda xícara de café, mas estou apaixonada por meu marido e ele por mim. É a constante em minha vida e continuará sendo conforme nossas crianças forem crescendo, minha carreira mudando, nossos amigos indo e vindo. Tenho certeza disso.

Mas ainda me pego batendo três vezes na tábua de carne de madeira, pois não faz mal se prevenir quando se trata das coisas que mais amamos.

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