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O Fim do "Apocalipse Zombie"

Capítulo 1: O Eco da Risada no Fim do Mundo

O som não era um grito. Era um ruído seco e úmido, um estalo de osso e um jorro de líquido que manchou para sempre a alma de May Otsuki. Ele via o machado que suas próprias mãos seguravam cravado no crânio daquela que o trouxera ao mundo. Os olhos dela, outrora cheios de uma doçura cansada, agora eram opacos, vidrados, sem um pingo de humanidade. A doença, aquele maldito vírus que transformava pessoas em monstros, levara sua mãe horas antes. Agora, levava a última migalha de sanidade de May.

Ele não chorou. Um riso escapou de seus lábios, um som agudo e quebrado que ecoou na sala silenciosa e sombria. Era um riso de puro desespero, a primeira de muitas piadas de mau gosto que ele faria sobre a morte.

— Você sempre disse que eu ia ser a sua morte, mamãe — sussurrou ele, a voz trêmula. — Que piada… que piada horrível.

Ele deixou o machado cair no chão com um baque metálico. Sem olhar para trás, pegou uma mochila já semi-abastecida e saiu de casa, deixando a porta aberta para o mundo podre entrar.

A cidade era um cadáver em decomposição. O cheiro de morte era tão pesado que dava para sentir o gosto na boca. May, movido por uma energia maníaca que brotava do seu trauma, parecia uma mariposa atraída pela chama do perigo.

— Olha só, galera! Fila única para o abraço grátis! — gritou ele, correndo em direção a um pequeno grupo de zumbis que arrastavam os pés em sua direção. Com uma faca de cozinha em cada mão, ele dançava entre eles, seus movimentos imprevisíveis e cheios de uma agilidade sobrenatural, uma mistura do estilo descontraído de Gojo Satoru com a tendência autodestrutiva de Osamu Dazai.

Foi em um beco, enquanto despachava o último zumbi com um golpe preciso (e desnecessariamente teatral), que ele sentiu uma presença. Não era a presença pesada e animalesca dos mortos-vivos. Era algo mais denso, mais silencioso. Mais perigoso.

May se virou, um sorriso largo e insano ainda estampado no rosto, e o viu.

Era alto, muito alto, talvez 1,95m. Seus cabelos castanhos com longos cachos balançavam suavemente sobre os ombros. A pele era negra como ébano, e seus olhos… eram olhos de lobo, de um amarelo intenso e penetrante que parecia ver através da fachada de loucura de May. O olhar era pesado, calado, carregado de uma dor tão profunda quanto a dele, mas congelada em gelo, não queimando em fogo.

O desconhecido — Matheus Shinu — simplesmente fitou May por um longo momento, sem dizer uma palavra. Seu rosto era uma máscara de impassibilidade. Então, como havia aparecido, ele se virou e começou a sair do beco, seus passos absolutamente silenciosos.

— Ei! Gritinho! — chamou May, sua voz ecoando contra as paredes de concreto. — Nem um "obrigado por limpar o beco"? Que falta de educação!

Matheus nem hesitou. May, sentindo uma faísca de interesse naquele vazio que era o seu peito, decidiu segui-lo. A noite foi passada nas traseiras de um supermercado abandonado. May falou sem parar, contando piadas mórbidas, teorias conspiratórias absurdas e falando sobre doces que ele sentia falta. Matheus permaneceu em silêncio, sentado de costas para a parede, seus olhos de lobo vigilantes, observando May com desconfiança. Ele estava com a guarda alta, seu corpo um fio de aço pronto para se romper.

Ao amanhecer, a discussão veio.

— Você não pode me seguir — a voz de Matheus era surpreendentemente suave, mas firme como pedra. — Eu vou sozinho.

— Tá, mas isso é muito chato! — reclamou May, balançando os pés como uma criança. — Dupla é mais divertido! Além do mais, você é forte. Eu vi. E eu também sou! Água e óleo, nós vamos ser a dupla mais irada do apocalipse!

— Eu não quero uma dupla. Não quero ninguém. Perder pessoas… é uma dor que não vale a pena.

May olhou para ele, e pela primeira vez desde a morte da mãe, seu sorriso desapareceu por um segundo. Ele entendeu. Entendeu perfeitamente.

— Tudo bem — disse May, a voz um pouco mais baixa. — Mas o mundo lá fora é grande e cheio de zumbis. Vamos na mesma direção pelo menos? Prometo não ser um incômodo!… Muito.

Matheus olhou para aqueles olhos animados, que escondiam um abismo de culpa, e algo dentro dele — um instinto de proteção que ele pensava ter matado — cedeu. Ele não disse sim. Mas quando começou a caminhar pela estrada fora da cidade, onde carros abandonados criavam ferrugem, ele não protestou quando May começou a pular e cantarolar ao seu lado.

O dia estava quase acabando quando viram, no meio do nada, uma estrutura improvisada: um barracão de metal ao lado de um prédio baixo e fortificado. Parecia um oásis de ordem no caos.

Foi então que uma voz calma, mas inquestionável, veio de cima.

— Parem aí. Movam-se devagar e mostrem as mãos.

No telhado do barracão, um jovem segurava um rifle com a precisão de um atirador de elite. Seus cabelos eram de um loiro natural e seus olhos, verdes como esmeraldas, os observavam com uma inteligência calculista. Era Andier Benser.

— Uau! Um francês! — exclamou May, ignorando completamente a arma. — Ou é canadense? Tudo bem, nós somos super legais e, o mais importante, vivos!

Andier baixou o rifle, um leve suspiro escapando de seus lábios.

—Kaio, são humanos. Dois jovens. Podemos oferecer abrigo por hoje.

Dentro do bunker, que era na verdade a parte subterrânea do prédio, eles conheceram Kaio Rioko Sumaru. Ruivo, com cabelos longos até o quadril e olhos inteligentes que pareciam catalogar cada detalhe deles em segundos. Sua prótese no braço esquerdo era tão bem feita que realmente era difícil de distinguir.

— Prazer — disse Kaio, com um sotaque leve. — Meu pai era cientista. Este lugar era o laboratório dele.

— Ele estava trabalhando numa cura — explicou Andier, suas duas katanas repousando contra a parega. — Kaio está continuando o trabalho.

— E está quase pronto! — disse Kaio, animado. — Uma amostra está em estágio final de maturação. Dois dias, talvez.

Nos dois dias seguintes, o bunker se tornou um microcosmo do mundo. May quebrava a tensão constante com suas brincadeiras, sempre observado de longe por Matheus, cujos olhos de lobo agora perdiam um pouco da frieza quando pousavam no garoto energético. Em uma noite, durante seu turno de vigia, May sentou-se ao lado de Matheus, que estava olhando para as estrelas através de uma fenda.

— Você não precisa carregar tudo sozinho, sabe? — disse May, sua voz incomumente séria.

Matheus não respondeu, mas não se afastou. Era um começo.

Enquanto isso, a dinâmica entre Kaio e Andier era de uma dança silenciosa. Andier era a sombra protetora de Kaio, sempre presente, sempre atento. Kaio, por sua vez, confiava cegamente no francês, seus olhos verdes seguindo Andier pela sala com uma admiração que beirava algo mais.

— Você deveria descansar, Kaio — disse Andier, trazendo-lhe uma xícara de chá. — Você está há horas nisso.

— Só mais um pouco, Andier. É promissor — Kaio sorriu, e um leve rubor subiu às faces de Andier, que rapidamente se afastou para continuar sua vigilância.

No segundo dia, o que deveria ser um teste de rotina deu horrivelmente errado. Um dos sistemas de contenção de um zumbiu usado para testes falhou. A criatura, mais rápida e agressiva que as outras, se libertou, indo direto para Kaio, que estava distraído com seus frascos.

— KAIO! — O grito de Andier foi de puro terror.

Mas antes que ele pudesse sacar suas katanas, um vulto escuro passou por ele. Matheus, silencioso e mortal como uma sombra, agarrou o zumbi pelos braços, contendo-o com uma força brutal.

— May! — gritou Matheus, sua voz comandando.

— Já tô indo, gritinho! — May, com um sorriso maníaco, pegou um pesado extintor de incêndio e, com um movimento amplo e carregado de adrenalina, atingiu a cabeça da criatura, esmagando-a com um golpe único e eficaz.

A amostra de cura, milagrosamente, estava intacta. Kaio a segurou com mãos trêmulas, respirando fundo. Ele olhou para Andier, depois para May e Matheus.

— Está pronta — ele anunciou, uma centelha de esperança em seus olhos. — É só uma amostra, mas… é um começo.

Naquela noite, enquanto Kaio e Andier conversavam em voz baixa em um canto, um compartilhando o alívio e o outro o medo que sentiu, May se aproximou de Matheus.

— Viu só? — disse May, seu sorriso agora mais genuíno, menos forçado. — Ter alguém não é tão ruim assim.

Matheus olhou para ele, para aquele idiota completo que todo mundo amaria, e pela primeira vez, um micro-sorriso, quase imperceptível, tocou seus lábios.

— Não — ele sussurrou. — Não é.

E no coração do bunker, cercado pela escuridão do mundo exterior, quatro vidas dançavam no fio da navalha, seus destinos agora inextricavelmente ligados pela promessa de uma cura, pela ameaça da morte e pelos primeiros e tímidos fios de um romance que florescia no solo árido do apocalipse.

Capítulo 2: O Peso do Silêncio e o Som de um Nome

A descoberta da amostra viável da cura criou um novo e estranho ritmo dentro do bunker. A esperança, um visitante raro naqueles dias, agora pairou no ar como um perfume delicado, misturando-se com o cheiro constante de ferrugem, pó e desinfetante.

Kaio praticamente vivia em seu pequeno laboratório improvisado, uma sala que outrora fora um escritório, agora tomada por microscópios, frascos de vidro e anotações meticulosas. Seus olhos, cercados por sombras de cansaço, brilhavam com um fogo científico que nem mesmo o apocalipse conseguira apagar.

— A estrutura do vírus é... fascinante — ele murmurava para si mesmo, manipulando a amostra com a precisão de um ourives. Sua prótese do braço esquerdo, uma obra-prima da engenharia de seu pai, movia-se com uma fluidez quase orgânica. — Ela ataca o sistema límbico, mas deixa o córtex motor intacto... é uma praga inteligente.

Andier era sua sombra constante. O francês de olhos verdes não demonstrava abertamente seus sentimentos, mas sua devoção era palpável. Ele mantinha vigília na porta do laboratório, suas katanas sempre ao alcance. Seus olhos, no entanto, raramente se fixavam nas ameaças externas, mas sim nas costas curvadas de Kaio, numa mistura de preocupação e uma admiração que beirava a reverência.

— Você precisa comer, Kaio — disse Andier, sua voz suave quebrando o silêncio concentrado. Ele colocou um prato com rações enlatadas e uma maçã um pouco murcha na mesa, ao lado de um frasco.

Kaio ergueu os olhos, um sorriso cansado surgindo em seu rosto.

—Obrigado, Andier. Só mais meia hora, prometo.

— Você disse isso há duas horas — retrucou Andier, sem rancor, cruzando os braços. Era uma dança familiar entre eles.

Do outro lado do bunker, a dinâmica entre May e Matheus era um contraste caótico. May, energizado pela recente ação, parecia determinado a quebrar a couraça de Matheus de uma vez por todas.

— Então, é isso? — perguntou May, balançando as pernas enquanto estava sentado em uma pilha de caixas, observando Matheus afiar uma faca com uma pedra. O som shink, shink era o único que Matheus parecia disposto a produzir. — Você vai ficar me encarando com esses olhos de lobo daqui até a eternidade zumbi? Não vai me contar como conseguiu ficar tão bom em esfaquear coisas? Ou como mantém o cabelo tão hidratado no fim do mundo? É um segredo? É sebo de zumbi?

Matheus não respondeu. Seus dedos longos moviam a lâmina contra a pedra com um ritmo constante e hipnótico.

— Tudo bem, tudo bem. Jogo do silêncio. Eu sou ótimo nisso — May pulou da pilha de caixas e começou a andar em círculos. — Aposto que você era um modelo. Ou um assassino de aluguel. Algo dramático. Eu, por outro lado, era um estudante terrível. Minha mãe... — A menção dela fez sua voz fraquejar por uma fração de segundo, mas ele se recuperou rapidamente, forçando um sorriso mais largo. — Minha mãe dizia que eu tinha TDAH e um péssimo senso de humor. Ela acertou em cheio, não é?

Shink, shink.

May parou atrás de Matheus, olhando para seus ombros largos e as costas tensas. A energia maníaca pareceu esvair-se dele por um momento, deixando para trás apenas um garoto assustado e traumatizado.

— É só... o silêncio é muito barulhento, sabe? — sua voz saiu num sussurro, quase uma confissão. — Quando está quieto, é a única coisa que eu consigo ouvir.

Matheus parou. O som da faca sendo afiada cessou. Seus ombros, que estavam rigidamente erguidos, abaixaram-se um milímetro. Ele não se virou, mas sua atenção estava agora completamente focada na voz quebrada de May.

Foi nesse momento de vulnerabilidade que os sensores de movimento na periferia do bunker emitiram um alerta baixo. Andier estava ao lado do painel em um instante, seus olhos verdes escaneando as telas.

— Movimento. Múltiplos alvos. Vinte, talvez trinta. Se aproximando rapidamente — ele anunciou, sua voz um tom mais grave.

O bunker inteiro entrou em estado de alerta. Kaio guardou a preciosa amostra em um cofre blindado. Matheus se levantou, a faca agora firmemente empunhada em sua mão, seus olhos amarelos brilhando com uma luz predatória na penumbra.

May, é claro, sorriu.

—Dia de festa! E eu nem me arrumei.

Eles se posicionaram nas vigias. A horda era maior do que qualquer outra que haviam visto antes, atraída talvez pela atividade recente ou por pura má sorte.

— Andier, você e May na saída leste. É o ponto mais fraco. Segurem eles o máximo que puderem. Matheus, você cobre a entrada principal. Eu fico no sistema de câmeras e guio vocês — ordenou Kaio, sua voz tremendo um pouco, mas firme.

Andier e May correram para a saída leste, um corredor estreito que levava ao nível do solo. Quando Andier abriu a porta, a primeira leva de zumbis já estava lá. O francês se moveu como um redemoinho, suas katanas descrevendo arcos prateados no ar, cada movimento calculado e letal. Era uma dança de morte graciosa e eficiente.

May, por sua vez, era o caos personificado. Ele usava tudo o que estava à mão — um pedaço de cano, uma cadeira quebrada, seu próprio corpo em movimento constante — para criar distrações e golpes brutais. Ele ria enquanto lutava, uma risada alta e um pouco desequilibrada que ecoava pelo corredor.

— QUASE pegou, careca! — ele gritou, desviando de uma investida. — Sua mãe deve ter vergonha de você!

Enquanto lutavam lado a lado, uma estranha sincronia começou a surgir. A precisão mortal de Andier criava aberturas para os ataques imprevisíveis de May, e a agitação de May distraía as criaturas o suficiente para que os golpes de Andier fossem fatais.

Na entrada principal, Matheus era uma sentinela silenciosa. Ele não buscava a luta, mas a deixava vir até ele. Os zumbis que se aproximavam eram despachados com uma economia de movimento assustadora. Um golpe rápido, um estalo de pescoço, uma faca no crânio. Ele era um muro, impenetrável e frio.

De repente, a voz de Kaio veio pelo intercomunicador, urgente.

—Andier! Dois deles passaram pelo seu flanco direito! Eles estão indo em direção aos barris de combustível! Se eles derrubarem...

Andier, no meio de seu combate, não podia se virar. — May! —

May, que acabara de empurrar um zumbi contra a parede, olhou para trás e viu a ameaça. Sem hesitar, ele correu. Mas um dos zumbis que Andier estava enfrentando se virou e agarrou a perna de May, fazendo-o cair de bruços no chão.

— Merda! — gritou May, tentando se libertar.

Foi então que uma sombra passou por cima dele. Matheus. Ele deve ter deixado seu posto na entrada principal, movendo-se com uma velocidade sobrenatural. Seus olhos amarelos flamejavam no corredor escuro. Ele não usou sua faca. Com as mãos nuas, ele agarrou a cabeça do zumbi que prendia May e torceu com uma força brutal, arrancando-a quase do corpo com um estalo seco e horrível.

Ele então se virou para os dois zumbis perto dos barris. Em dois movimentos fluidos e silenciosos, eles estavam mortos no chão.

O corredor ficou em silêncio, exceto pela respiração ofegante de May. Ele olhou para cima, para Matheus, que estava de pé sobre ele, seu peito subindo e descendo levemente. Pela primeira vez, May viu algo além de gelo naqueles olhos de lobo. Havia uma fúria contida, um instinto protetor tão feroz quanto o dele próprio era autodestrutivo.

Matheus estendeu a mão. May, sem seu sorriso habitual, pegou-a e se levantou. A mão de Matheus era grande, áspera e incrivelmente quente. Ele não a soltou imediatamente.

— Obrigado, Gritinho — sussurrou May, sua voz séria.

Matheus apenas acenou com a cabeça, uma única vez, antes de soltar a mão dele e voltar para seu posto, mas não sem antes lançar um último olhar para garantir que May estava inteiro.

A horda foi contida. A ameaça, afastada. Quando a adrenalina baixou, a exaustão tomou conta de todos. Kaio veio correndo, aliviado, verificando se Andier estava bem antes de olhar para os outros.

Mais tarde, na calmaria pós-batalha, May estava sentado no chão, encostado na parede, limpando o sangue de sua faca. Matheus se aproximou e se sentou ao seu lado, um ato simples, mas que significava mundos. O silêncio entre eles agora era diferente. Não era mais um muro, mas um espaço compartilhado.

— May — a voz de Matheus era um ruído baixo e áspero, como se não fosse usada há séculos.

May ficou imóvel, olhando para frente. Era a primeira vez que Matheus dizia seu nome.

— O silêncio... — Matheus começou, escolhendo as palavras com cuidado. — Para mim, é mais barulhento quando estou sozinho.

Ele não disse mais nada. Não era necessário. May virou a cabeça e olhou para ele, e desta vez, seu sorriso não era uma máscara. Era pequeno, trêmulo, mas real. Ele havia conseguido. Ele havia encontrado uma brecha na fortaleza.

Enquanto isso, no laboratório, Kaio observava Andier limpar suas katanas.

—Você foi incrível lá fora — disse Kaio, sua voz suave.

Andier parou o que estava fazendo e olhou para Kaio, seus olhos verdes sérios.

—Eu faço o que é necessário para te proteger, Kaio. Sempre.

A intensidade daquela declaração pairou no ar entre eles, carregada de tudo o que não era dito. Kaio corou levemente e baixou os olhos para a amostra, mas um pequeno sorriso teimoso persistiu em seus lábios.

O bunker estava salvo por mais um dia. E dentro de suas paredes de metal, quatro corações, cada um quebrado à sua maneira, começavam a aprender que, talvez, no fim do mundo, as peças que faltavam pudessem ser encontradas nos outros. A cura, eles perceberam, não estava apenas em um frasco. Estava também no toque de uma mão, na sombra de um protetor, no som de um nome sussurrado no escuro.

Capítulo 3: Lazuli Vermelho

A euforia pela amostra viável durou exatamente 47 horas. Foi o tempo que Kaio levou para esgotar todos os seus recursos e chegar a uma conclusão frustrante, anunciada com a batida de sua testa contra a mesa de metal do laboratório.

— Não vai dar certo.

O som ecoou no bunker silencioso. Andier, que polia suas katanas na entrada, ergueu a cabeça imediatamente. May, que tentava ensinar Matheus a fazer malabarismos com três latas de ervilhas (e falhando miseravelmente, já que Matheus sequer movia um músculo), parou no meio de uma palhaçada.

— O que não vai dar certo, ruivinho? — perguntou May, deixando as latas caírem no chão com um estrondo.

Kaio ergueu a cabeça, uma mancha vermelha na testa. — A amostra. Ela é instável. A reação não se sustenta por mais de alguns minutos fora do ambiente controlado. É como... como fogo de palha. Precisa de um catalisador.

— Catalisador? — a voz de Matheus soou baixa, da sua sombra no canto.

— Um mineral. Algo para dar potência e estabilidade à fórmula. — Kaio pegou um dos cadernos de anotações de seu pai, desgastado pelas bordas. — Meu pai teorizava sobre isso. Ele mencionou um cristal. Lazuli Vermelho. Diziam que tinha propriedades energéticas únicas, mas era considerado lenda pela maioria.

— Onde a gente acha uma lenda? — May se animou, a perspectiva de uma caça ao tesouro sendo muito mais interessante do que ficar preso no bunker.

Kaio passou os dedos sobre um esboço tosco no caderno. — Nas minas antigas. Nos arredores da cidade. O acesso é perigoso. Desmoronamentos, becos sem saída...

— Eu conheço o caminho.

A voz que cortou o ar não foi a de Kaio, nem a de Andier. Foi a de May. Todos se viraram para ele. A máscara de palhaço havia escorregado de seu rosto, deixando para trás uma expressão pálida e séria.

— Você... o quê? — Kaio perguntou, confuso.

— As minas. — May engoliu seco. — Eu fui lá. Com a minha mãe. Antes... de tudo. Ela era geóloga. Estava mapeando a região. Eu... eu me perdi em um dos túneis mais profundos. Fiquei preso por horas. Foi o dia mais assustador da minha vida, até... bem, até não ser mais.

Ele olhou para Matheus, e pela primeira vez, não havia um pingo de encenação naquele olhar. Havia apenas o eco de um velho terror.

— Eu me lembro do caminho para o veio principal. A gente não chegou a extrair nada, mas ela apontou onde o Lazuli deveria estar.

O plano foi formado com uma urgência sombria. Eles precisavam do cristal. Sem ele, a cura era apenas uma nota de rodapé em um caderno empoeirado.

A jornada até as minas foi silenciosa, tensa. Andier e Kaio cobriam a retaguarda, os olhos verdes do francês varrendo a paisagem arruinada em busca de ameaças. Na frente, Matheus caminhava ao lado de May, uma presença sólida e silenciosa. May, por sua vez, estava estranhamente calado, seus olhos fixos no caminho à frente, como se estivesse revivendo cada passo daquela memória dolorosa.

A entrada da mina era uma boca escura e soturna na encosta de uma montanha, engolida por trepadeiras e mato. O ar que saía de lá era frio e cheirava a terra molhada e podridão.

— É aqui — sussurrou May, sua voz um pouco trêmula.

Dentro, a escuridão era quase absoluta. Usando lanternas, eles avançaram por túneis baixos e escorregadios. May guiava com uma certeza que só o trauma poderia fornecer, evitando certas passagens e indicando outras com um gesto quieto da mão.

— Esse túnel aqui — ele apontou para uma abertura mais estreita. — É mais estável. Leva direto à câmara principal.

Foi quando eles ouviram. Um arrastar de pés, vindo de várias direções ao mesmo tempo. Ecos de grunhidos baixos se propagaram pelas paredes de pedra. A mina não estava vazia.

— Andier, proteja o Kaio! — a ordem de Matheus foi um sopro firme.

A horda que surgiu das sombras era composta por criaturas que haviam se perdido naquelas cavernas, seus corpos mais secos, movimentos mais trôpegos, mas não menos perigosos. A luta no espaço confinado foi um pesadelo. Andier, com suas katanas, era limitado, forçado a golpes curtos e precisos. Matheus era uma força da natureza, usando o próprio corpo como arma, quebrando pescoços e esmagando crânios contra as paredes de rocha.

May, empunhando uma barra de ferro que encontrara, lutava com uma fúria silenciosa, seus olhos fixos no caminho à frente. Ele não ria. Não fazia piadas. Cada golpe seu era carregado do desespero daquela memória.

Eles finalmente chegaram a uma câmara maior. E no centro, embutido na parede como uma veia pulsante de sangue coagulado, estava o Lazuli Vermelho. Brilhava com uma luz fraca e interior, mesmo na penumbra.

— É isso! — gritou Kaio, seu rosto iluminado pela lanterna e pela descoberta.

Enquanto Kaio e Andier começavam a trabalhar para extrair o cristal com ferramentas de geólogo que May, previdentemente, havia indicado que estariam em um baú nas proximidades, May ficou parado, olhando para um canto escuro da câmara. Um pequeno recesso na rocha.

— Eu fiquei preso ali — ele disse para Matheus, que estava ao seu lado. — Por seis horas. Até a minha mãe me achar. Ela... ela cantou para mim. Até a voz dela ficar rouca.

Matheus não disse nada. Apenas olhou para o recesso, depois para o rosto de May, iluminado pela luz fantasmagórica do cristal.

Foi então que um estremecimento percorreu a mina. Um ruído baixo e profundo, seguido por uma chuva de pedras e poeira.

— O teto! Está caindo! — Andier puxou Kaio para trás, segurando o pedaço de Lazuli que haviam conseguido extrair.

May, ainda paralisado pela memória, não reagiu a tempo quando uma grande pedra se soltou acima dele. Matheus se moveu. Não foi um movimento calculado ou gracioso. Foi um impulso puro, primal. Ele se jogou contra May, empurrando-o com força brutal para fora da trajetória da queda.

O mundo desabou em um rugido de pedra. May caiu de lado, atordoado, e quando a poeira baixou, seu coração parou. Uma pilha de rochas selava a passagem. Matheus estava do outro lado.

— MATHEUS! — O grito de May não foi uma brincadeira, não foi dramático. Foi um uivo de puro terror. Ele se arrastou de joelhos até a barreira, começando a arranhar as pedras com as mãos nuas. — Matheus! Gritinho, responde!

Kaio e Andier se juntaram a ele, tentando encontrar uma brecha. Os segundos se arrastaram como séculos. O som de zumbis se aproximando nos túneis ao redor tornava o pânico ainda mais agudo.

Então, um som. Fraco. Tok. Tok.

Era o som de uma pedra sendo batida contra outra, do outro lado. Um código. Lento, deliberado. Tok. Tok. Tok.

May calou-se, ouvindo. Lágrimas de alívio e desespero misturavam-se com a poeira em seu rosto.

— Ele está vivo — sussurrou Kaio. — Ele está nos dizendo para nos apressarmos.

Trabalhando freneticamente, os três conseguiram remover pedras suficientes para criar uma abertura. Do outro lado, na escuridão, os olhos amarelos de Matheus brilhavam como faróis. Ele estava encurralado em um espaço minúsculo, mas ileso.

Quando May puxou seu braço para trazê-lo de volta para a câmara segura, suas mãos se encontraram e se entrelaçaram com uma força que doía. May não soltou. Ele puxou Matheus para perto, seus olhos escaneando freneticamente seu rosto e corpo em busca de ferimentos.

— Seu idiota — May respirou, sua voz embargada. — Seu idiota completo.

Matheus, ofegante, não puxou a mão away. Ele apenas segurou mais forte, seu olhar intenso fixo em May, dizendo tudo o que suas palavras não conseguiam.

Eles fugiram da mina com o Lazuli Vermelho seguro no peito de Kaio, perseguidos pelos ecos dos mortos. Mas para May, o som mais assustador não era o dos zumbis. Era o silêncio que havia preenchido aqueles segundos intermináveis quando pensou que havia perdido Matheus. E o mais aterrorizante de tudo era perceber que aquele silêncio era infinitamente pior do que qualquer memória de uma mina escura.

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