Não havia uma data específica para o dia em que aprendi a me tornar pequena. Era um processo lento, um desgaste contínuo.
Aos dez anos, quando meus pais fingiram que a gritaria no andar de baixo não era sobre mim — sobre o fardo que eu representava, a despesa desnecessária, a vida que eles "não mereciam" —, eu me encolhi sob o edredom e decidi que a única forma de não doer era não ser notada. Não pedir. Não esperar.
Aos vinte e um, a lição me foi tatuada na pele por Pedro. Ele era o amor, ou era o que eu pensava que era, até que sua mão se tornou mais pesada do que as palavras de meus pais. Primeiro, veio o insulto. Depois, o empurrão. No fim, a violência se tornou a única forma de controle. Ele me dizia que eu só servia para isso. Que o único valor que eu tinha era o que ele escolhia me dar, e que, se eu tentasse fugir, ninguém mais me olharia.
Quando consegui escapar, não chorei pelo amor perdido; chorei pela minha estupidez. Por ter violado a única regra que havia estabelecido na infância: Nunca dependa de ninguém.
O abandono me ensinou a desconfiar. A violência me ensinou a temer. Aos vinte e cinco anos, eu era a prova viva de que o amor não cura; ele mutila. E a única forma de sobreviver era me transformar na Muralha.
Fria, inatingível.
Não, Lucas. Você não vai quebrar a minha regra.
CAPÍTULO 1
Meu apartamento era o meu último e mais importante projeto. Não uma reforma com gesso e mármore, mas um projeto de isolamento. Depois que consegui me livrar daquele inferno ambulante que era Pedro, gastei cada centavo e cada dia de paz que me restava para transformá-lo em um bunker silencioso. As janelas eram espessas o suficiente para abafar o barulho da Avenida Getúlio Vargas, e a porta de aço, que o porteiro do prédio antigo insistiu em chamar de "charme retrô", para mim era apenas uma barreira. Uma barreira entre eu e o resto.
Eu só tinha vinte e cinco anos, mas sentia-me com o dobro dessa idade, e metade da paciência. O freelance como designer gráfico permitia que eu trabalhasse em casa, sem ter que lidar com a cordialidade falsa de escritórios ou com a insinuação que sempre se escondia atrás de um elogio. Eu valorizava minha solidão mais do que qualquer promoção.
Naquela manhã de terça-feira, o silêncio durou exatamente até as dez e meia.
Um estrondo seco me fez pular da cadeira, jogando meu mouse sem fio no chão. Não era o barulho familiar da cidade. Era um ruído agressivo, constante, vindo da parede que eu compartilhava com o apartamento vizinho. Era o som inconfundível de uma britadeira.
Inacreditável.
Fechei a tela do computador com mais força do que o necessário, respirando fundo para controlar o impulso irracional de chorar que sempre vinha quando meu controle era ameaçado. Um dos princípios da minha sobrevivência era a estabilidade. O barulho era o caos. E caos me lembrava de quando eu não tinha voz.
Agarrei meu moletom mais velho — o cinza, que dizia "não se aproxime" melhor do que qualquer placa — e enfiei o cabelo em um coque apressado. Minha intenção não era negociar. Era reclamar. E garantir que o idiota responsável soubesse que ele tinha acabado de comprar uma guerra.
Bati a porta do meu bunker atrás de mim e segui pelo corredor mofado. O ruído aumentava a cada passo, parecendo vibrar na minha caixa torácica.
Cheguei à porta 202, que deveria ser o apartamento do Sr. Osório, um senhorzinho surdo. Em vez do cheiro de naftalina, senti cheiro de pó e cimento. A porta estava escancarada, revelando um cenário de guerra: fios pendurados, sacos de entulho e quatro homens com capacetes que pareciam ter saído de um anúncio de cerveja.
Ignorei os pedreiros e procurei o responsável.
O cara estava parado no meio da sala destruída, com o celular no ouvido. Ele tinha as mãos nos quadris e vestia uma camisa de algodão que era casual demais para ser de trabalho e cara demais para ser de lazer. Ele não parecia um pedreiro, nem um engenheiro. Parecia... um invasor.
Ele tinha a pele bronzeada, o cabelo escuro e barba bem-feita. Seus ombros eram largos demais para a porta e ele se movia com uma autoridade tranquila que me irritou profundamente.
"Sim, mas a prefeitura precisa entender que não posso esperar. O prazo é apertado," ele dizia ao telefone, sem notar minha presença.
Meu sangue ferveu. Prazo apertado? E a minha sanidade?
"Com licença, senhor," minha voz saiu mais fria do que eu pretendia. Ele não reagiu. A britadeira ainda estava rugindo.
Dei um passo à frente, quase no meio do pó de cimento. "Eu disse, com licença!" gritei, sobrepondo-me ao barulho.
Ele finalmente abaixou o telefone, virando-se para mim. E então, eu tive que parar de respirar por um segundo. Não por causa da beleza dele — que era óbvia, no estilo "capa de revista de investimento" — mas por causa de seus olhos. Eram de um castanho claro que parecia capaz de enxergar através do meu moletom.
"Ah, olá, vizinha. Desculpe. O barulho está insuportável, não é?" Ele disse, com um sorriso que eu imediatamente registrei como uma arma de manipulação.
"Não me chame de vizinha, e sim, está insuportável," eu retruquei, cruzando os braços com força. "Estou tentando trabalhar. Não sei quem é o senhor, mas preciso que pare com isso agora. Não se começa uma reforma desse porte sem avisar os moradores."
Ele não ficou ofendido. Nem ficou irritado. Ele apenas acenou para um dos pedreiros, que imediatamente desligou a britadeira, instalando um silêncio repentino e quase ensurdecedor.
"Melhor assim," ele murmurou. Guardou o celular no bolso da calça. "Eu sou o Lucas. Lucas Guimarães. Eu comprei este apartamento e vou morar aqui, mas sim, estou reformando. E você tem toda a razão."
Fiquei momentaneamente sem palavras. Eu estava preparada para gritar, para ser confrontada, para que ele tentasse me diminuir. Eu não estava preparada para Lucas concordar.
"O quê?" consegui perguntar, cética.
"Você tem toda a razão," ele repetiu, dando um passo em minha direção. A proximidade me fez recuar instintivamente, e ele notou. Seus olhos escanearam minha expressão, mas ele parou a dois metros de distância. O respeito pela minha bolha de segurança era inesperado.
"Eu lamento que o barulho tenha começado de forma tão brusca. O prazo realmente está apertado, mas isso não justifica o incômodo. Minha equipe voltará amanhã de manhã, mas podemos limitar os trabalhos mais pesados para a hora do almoço. O que acha? Das 13h às 15h."
Olhei para ele, procurando a mentira, o sarcasmo. O interesse oculto. O momento em que ele diria: agora que fui legal, você me deve algo.
"Não estou aqui para fazer acordos," eu disse, voltando ao meu roteiro defensivo. "Estou aqui para dizer que não aceito. E não preciso da sua... gentileza."
O sorriso dele diminuiu um pouco, transformando-se em algo mais sério, mas não menos cativante. "Tudo bem, Aurora."
Eu gelei.
"Como você sabe o meu nome?"
Ele inclinou a cabeça, o olhar fixo. "O porteiro comentou que a designer do 201 costuma reclamar de tudo. Eu perguntei o nome. Não achei que fosse um segredo de estado."
Ele estava me desarmando com a honestidade e a serenidade. Lucas estava quebrando a minha regra principal: nunca se comporte de maneira esperada.
"Certo. Lucas," eu disse, forçando-me a manter o tom frio. "Amanhã, às 13h, não é ideal, mas... pelo menos me dá tempo para sair de casa."
"Ótimo. E mais uma coisa." Ele estendeu a mão na direção de um saco de lixo próximo à porta dele. "Vi que você estava sem guarda-chuva hoje cedo e a previsão é de chuva. Se precisar de algo, de qualquer coisa, sou seu vizinho agora."
Ele não estava flertando. Ele estava sendo eficiente e útil, o que era pior. Útil. Como se eu precisasse de ajuda.
Recuei mais um passo, sentindo a raiva se misturar com uma confusão perigosa.
"Eu não preciso de nada. Eu sempre me cuido sozinha," eu respondi. Virei-me antes que ele pudesse responder e marchei para o meu apartamento, fechando a porta com um clique satisfatório.
Apoiei a testa na porta de aço, respirando fundo no silêncio recuperado. O invasor tinha prometido que a paz voltaria, e ela voltou. Mas, o silêncio agora parecia diferente. Não era vazio. Parecia suspenso.
Eu voltei para minha cadeira, mas não consegui trabalhar. Olhei para a parede compartilhada, onde a britadeira havia rugido. Lucas Guimarães, o empresário sorridente e paciente, estava lá. E a minha muralha acabara de levar o primeiro, e irritantemente gentil, abalo.
CAPÍTULO 2:
Ponto de Vista: Aurora
Voltei para a minha mesa e olhei para a tela. O projeto daquele logotipo colorido parecia infantil e ridículo. Como se pudesse existir alegria e simplicidade em um mundo onde a maior parte do tempo era gasta construindo armaduras.
-Lucas Guimarães, o vizinho novo, tinha arruinado minha manhã. Pior: ele a tinha arruinado com gentileza.
Eu esperava um babaca. Um daqueles homens de terno que acham que podem comprar a paz ou intimidar as pessoas. Eu tinha o discurso pronto: a ameaça de chamar o síndico, a acusação de desrespeito. Em vez disso, recebi um pedido de desculpas sincero e uma proposta de negociação.
Ele era diferente. E diferente era perigoso.
Aos meus olhos, as pessoas gentis eram as que escondiam as intenções mais sujas.
O ex-namorado, Pedro, era o mestre em parecer inofensivo no início. Lucas, com aquela aura de "homem do bem", me cheirava a uma armadilha cuidadosamente montada.
Ele só está sendo legal porque quer que eu caia fora da próxima vez que ele for barulhento, pensei, tentando me convencer. É manipulação social. É uma estratégia de negócios, Aurora. Não é pessoal.
O silêncio era total agora, e a falta de ruído da britadeira era mais opressiva do que o próprio barulho. Eu não conseguia me concentrar. Minha mente ficava voltando para os olhos castanhos claros e a forma como ele recuou quando percebeu minha aversão à proximidade.
O respeito. Era genuíno, ou apenas parte do show?
No fim do dia, forcei-me a enviar o trabalho e, exausta pela tensão, decidi que precisava de uma caminhada.
Era meu ritual: sair após o anoitecer, quando a multidão diminuía e eu podia me misturar às sombras.
Abri a porta do meu bunker e me deparei com algo que fez meu cinismo vacilar.
A bagunça de cimento e pó ainda estava na frente da porta 202, mas na minha soleira — na minha soleira, que era a linha de demarcação do meu mundo —, havia uma sacola. Uma sacola de papel pardo de uma padaria chique que eu nunca teria dinheiro (nem coragem) de entrar.
Dentro, encontrei duas coisas: um pão integral quentinho, embrulhado no papel de seda, e um bilhete.
Respirei fundo, sentindo meu estômago embrulhar.
Aquilo era uma invasão. Era um presente. E eu odiava presentes, porque eles sempre vinham com uma taxa de retorno muito alta.
Desdobrei o bilhete. A letra era firme e elegante, sem ser exagerada.
"Um pão para a trégua. E desculpe pelo pó. PS: Se puder me dar uma dica sobre um bom lugar para comprar café moído por aqui, seria de grande ajuda. Estou tentando ser um bom vizinho."
— L.
Não Lucas. Apenas L. Ele não estava me pressionando. Estava fazendo um pedido casual, um ato de serviço disfarçado.
Senti raiva. Óbvio. Ele estava tentando ser amigável. E ele nem sequer mencionou o nome Aurora, só se referiu à situação de vizinhança.
Peguei o pão e entrei, fechando a porta de aço com raiva. Olhei para o pão. Estava quente e tinha um cheiro delicioso de alecrim. Por um momento, senti uma pontada de algo que não sentia há anos: cuidado.
Joguei a sacola na bancada da cozinha. Eu poderia jogá-lo no lixo, mas o desperdício me incomodava. Era um presente de um estranho, um homem que eu tinha acabado de conhecer. Era um risco.
Peguei a faca e cortei uma fatia fina. O sabor era rico e quente. Meus ombros relaxaram um pouco.
Ele só está tentando ser um bom vizinho, repeti para mim mesma.
Mas a racionalização parecia cada vez mais fraca. Por que ele se daria ao trabalho?
Ninguém, em minha experiência, fazia algo bom de graça.
Olhei para a janela. A rua estava escura, mas a luz do poste vizinho iluminava a entrada do prédio de Lucas.
O pensamento me atingiu: ele tinha me feito um pedido. Uma dica sobre café.
E se eu simplesmente respondesse com a dica, de forma fria e impessoal? Sem agradecimento. Sem contato. Apenas uma informação. Isso cortaria a cordialidade e o faria entender que eu não estava à venda.
Peguei um post-it e uma caneta.
O melhor café moído está na padaria A Esquina, na Rua Dom Pedro. Aberta até às 20h. Não espere um retorno. Não sou sua amiga.
Não. Muito agressivo.
Rasguei. Peguei outro post-it.
A Padaria A Esquina vende o melhor café moído.
Curto. Frio. Profissional. Isso era perfeito.
Mas... como eu entregaria isso sem ter que vê-lo?
Abri a porta de aço novamente e olhei para o buraco da caixa de correio da porta 202. Estava fora do meu alcance.
Caminhei até a porta dele e, hesitante, deslizei o bilhete por baixo. O pedaço de papel desapareceu na escuridão.
Meus dedos tremiam. Eu acabara de ter minha primeira interação não-conflitiva com um homem que eu jurava ser uma ameaça.
Eu me virei, apressando-me de volta para o meu bunker.
Eu não tinha deixado Lucas entrar, mas eu tinha respondido. E o medo era que ele considerasse isso um convite.
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