A noite se aprofundava, e uma chuva fina e persistente caía sobre a cidade, transmitindo uma sensação estranhamente assustadora. Lá fora, em algum lugar na escuridão úmida, talvez houvesse alguém como eu, Hayami: uma alma solitária, presa nos próprios pensamentos e, por isso, totalmente incapaz de encontrar o sono.
O relógio digital na cabeceira já marcava três da manhã, mas meus olhos estavam bem abertos, ardendo sob a fraca luz. A cada minuto que passava, meu corpo ficava mais inquieto, mais agitado sob o edredom. E lá fora, como se acompanhasse minha tensão crescente, a chuva se intensificava, batendo no vidro com um ritmo mais tenso.
Rolei na cama, suspirando de frustração. Estiquei o braço, peguei meu celular na mesinha de cabeceira e coloquei uma música para tocar, na esperança desesperada de que o som me embalasse. Era sempre a mesma rotina inútil, e, previsivelmente, era mais uma tentativa falha de calar a mente. Eu continuava acordada, e agora, a trilha sonora apenas se somava ao barulho da chuva implacável.
A melodia suave que escolhi era mais um lamento do que um convite ao sono, carregada de uma familiar melancolia que parecia apenas ecoar o vazio no quarto. Olhei o celular, meus dedos traçando o contorno frio da tela, mas eu não via as letras ou as redes sociais. O que eu estava procurando ali, na imensidão luminosa da internet? Uma mensagem que nunca viria? Uma resposta para uma pergunta que eu nem sabia formular?
Não era uma preocupação específica que me prendia, mas sim a ausência de algo. Era o medo silencioso do dia que viria, a rotina fria de sempre, a sensação opressiva de que, não importa o quanto a chuva caísse e lavasse a cidade, nada realmente mudaria na minha vida. Fechei os olhos, mas a imagem do teto branco, refletindo a luz intermitente da rua, persistia na minha mente.
Eu estava ali, Hayami, uma espectadora da minha própria vida, enquanto o mundo dormia e o temporal marcava o ritmo da minha ansiedade. Cada gota que batia na janela era um pequeno lembrete do tempo que se esvaía, inatingível.
Seria sempre assim? Presa nesta madrugada fria, esperando por um amanhecer que nunca traria o que eu realmente precisava?
A lembrança veio, cortante e fria, rompendo o ciclo de pensamentos vazios. O violino melancólico da música parecia dar o ritmo exato para o flashback inevitável.
Não era o trovão lá fora, mas o eco de uma voz que me mantinha acordada. O cheiro de papel velho e café frio. A sala pequena da Professora Elara, duas semanas atrás. A luz de outono entrava fraca pela janela, mas as palavras dela caíram sobre mim como um bloco de gelo.
― Hayami, - ela disse, os óculos escorregando na ponta do nariz. ― Você tem o talento, eu sei. Mas falta a disciplina. Você se perde nos 'e se' antes de sequer tentar o 'agora'. -
Eu mal podia respirar. Eu tinha dedicado meses a esse projeto. Aquele era o meu bilhete de saída, o começo da vida que eu tinha planejado, longe dessa rotina fria.
― Este projeto, - ela continuou, sem vacilar, ― não vai acontecer. Não agora. Você não está pronta para o peso da responsabilidade.
Não foi uma rejeição, foi uma sentença de adiamento. Uma prova de que, não importa o quanto eu me sentisse madura ou pronta, o mundo me via apenas como uma garota sonhadora, incapaz de dar o primeiro passo real.
Retornei ao presente com um sobressalto. Meu coração batia no mesmo ritmo frenético da chuva na janela. Era isso. Era por isso que eu não dormia. Eu havia falhado em dar o primeiro passo, e a única coisa que eu podia fazer agora era ficar aqui, presa entre o que eu sou e o que eu deveria ter sido, enquanto a cidade inteira dormia aliviada.
8h30 da manhã: E o Apocalipse Pessoal Começa.
O celular explodiu em uma sinfonia irritante, o volume no máximo parecendo a sirene de evacuação de um míssil nuclear. Abri os olhos no pânico, mas o pânico dobrou ao checar a hora. O alarme estava configurado de forma épica e catastrófica. Eu tinha acabado de acordar duas horas inteiras depois do previsto. Duas. Horas. Perdidas. Sério, um brinde à minha competência matinal.
Eu tinha uma reunião de trabalho crucial... tinha. Porque agora, cruzar a linha de chegada a tempo seria um milagre maior do que ganhar na loteria duas vezes seguidas. Aliás, se o universo tivesse a decência de me dar um pingo de sorte na vida, eu estaria milionária, tomando croissant e café au lait em Paris, e não prestes a infartar no meio de um rush matinal caótico em Tóquio.
Joguei no corpo o uniforme da sobrevivência: uma calça preta de alfaiataria e uma blusa social no tom oposto. Praticidade é meu sobrenome, o oposto de "pente", "escova" ou "chapinha". Luxos que não me pertenciam. Enfiei os dedos no cabelo, puxei num rabo de cavalo rápido e pronto: look "executiva de alto escalão que desistiu da vida e está a três segundos de um colapso". No espelho, minha cara pálida de terror zumbi me encarava. A solução? Um batom vermelho venenoso. Nada grita "estou no controle absoluto" como lábios de femme fatale em cima de olheiras de panda.
Saí do apartamento ignorando o café da manhã. Ele também parecia ter entrado na greve universal contra mim.
As ruas de Shibuya, lá embaixo, estavam no seu estado habitual de caos coreografado: milhões de pessoas fluindo, carros deslizando, o mundo girando em uma rotina implacável. Por um segundo patético, me iludi, pensando que talvez o dia ainda pudesse ser salvo... até que o destino resolveu parar, apontar o dedo na minha cara e dar uma gargalhada histérica.
De repente, a multidão parou. Gritos. Olhei para a frente. Um banco na mesma rua estava sendo assaltado. Isso mesmo, assaltado. E como eu estava em um reality show só de desgraças, o criminoso em fuga precisava de um álibi de última hora. Ele varreu o olhar pelo mar de gente, ignorou todos os pedestres mais fortes ou mais rápidos... e adivinha quem ele escolheu como escudo humano? Exato: eu. A atrasada, descabelada e de batom vermelho. Porque, obviamente, se existe uma fila para a má sorte, eu não sou apenas a primeira, sou a atendente VIP. Às vezes, eu nem acho que é azar. É um patrocínio direto do universo. Ele investe pesado na minha ruína.
O homem era pura adrenalina e desespero, agarrando meu braço como um torno e empurrando um canivete enferrujado para o meu pescoço. "Pra trás! Todo mundo pra trás ou ela morre!" ele berrou, a voz rachada, enquanto arrastava meu corpo em choque. A multidão, antes uma maré, virou uma parede de concreto apavorada.
― Excelente, - pensei, com aquela calma fria que só o terror absoluto proporciona. ― Refém. Agora, além de atrasada, vou virar estatística no noticiário das 10.
Então, aconteceu. A mão dele tremeu, talvez pela sirene que finalmente rasgava o ar ou pelo foco vermelho de um sniper que, eu soube depois, estava a postos. Ele fez um movimento brusco e descontrolado, não para matar, mas para reafirmar o poder. Senti um arrepio gélido e, em seguida, uma dor fina e quente.
Ele tinha feito um corte superficial, mas inegável, bem na lateral do meu pescoço.
O susto foi o gatilho que a polícia precisava.
No instante seguinte, o mundo se resumiu a um clarão e um som seco e abafado vindo de algum lugar distante. O bandido cambaleou, o aperto no meu braço se desfez e, em um lapso de câmera lenta bizarro, seu corpo despencou sobre mim.
O impacto me derrubou. Mas antes que eu pudesse sequer processar a queda, senti um líquido espesso e quente me atingir, não como uma gota, mas como um respingo violento e quase artístico.
Abri os olhos, ofegante, sentindo a adrenalina pura correr pelas veias. O criminoso estava inerte ao meu lado. Olhei para a minha blusa social, que até dois minutos atrás era o uniforme da executiva atrasada e impecável.
Ela estava tingida. Uma mancha enorme, vibrante, de um vermelho profundo, espalhada pela gola e pelo meu peito, manchando de vez a alfaiataria branca.
O batom vermelho femme fatale no meu rosto agora parecia uma piada cruel. Eu tinha conseguido meu visual "estou no controle", só que agora estava literalmente coberta pelo caos dos outros. Eu estava viva, ilesa exceto por um arranhão que logo estaria coberto por um Band-Aid, mas parecendo que tinha acabado de sair do set de um filme de terror.
Senti o próprio sangue escorrer do meu pescoço e se misturar ao do homem, um gotejar patético que anunciava: eu sobrevivi ao assalto, mas meu dia de trabalho estava oficialmente, e de forma sangrenta, arruinado.
O helicóptero de notícias já pairava sobre a rua. Eu era a refém que virou a pintura da tragédia. E eu ainda tinha que ligar para o meu chefe e explicar por que não chegaria a tempo para a reunião. Boa sorte para mim.
O cheiro de pólvora, sangue e pânico pairava no ar. Policiais me cercavam, gritando ordens em japonês frenético. Minha cabeça girava, mas um pensamento era mais urgente que a ambulância que acabava de chegar: o Chefe.
Enquanto um paramédico limpava a lateral do meu pescoço (o corte já era mais drama do que ferimento real, mas a mancha de sangue na minha roupa era uma declaração de guerra), eu enfiei a mão no bolso. Meu celular. Eram 9h47. Eu tinha perdido a reunião, a decência e a minha blusa favorita.
Ignorei o burburinho policial ao meu redor e disciei.
― Alô? - A voz de Kenji Tanaka, meu chefe direto, era grave e impaciente. Ele não era um monstro, mas era pontual ao extremo. Eu podia sentir o relógio dele tiquetaqueando pelo telefone.
Eu forcei uma calma que estava a milhas de distância do meu estado atual.
― Kenji-san, sou eu. Hayami.
― Hayami. Onde você está? A reunião com a Kawasaki-san começou há quinze minutos. Você está atrasada. - Sua voz era uma lâmina fria de aço.
Respirei fundo, olhando para o reflexo na tela do celular: uma executiva de batom vermelho e pescoço ensanguentado. Era a hora do meu pitch de vida. ―Kenji-san, lamento profundamente o atraso. É... é complicado.
― Complicado como, Hayami? Perdeu o trem? A linha Ginza está fluindo normalmente.
― Não, Kenji-san. Não perdi o trem. É que, enquanto eu estava a caminho do escritório, na frente do Miyashita Park... Eu procurei a palavra certa, tentando soar casual. ... houve um incidente imprevisto.
― Incidente?
― Sim. Um... um assalto a banco, - eu disse, o mais rápido possível, como se estivesse pedindo um café. ― Um criminoso estava em fuga, e ele... bem, ele me escolheu como refém.
Houve um silêncio tão longo do outro lado que pensei que a ligação tinha caído.
Finalmente, Kenji falou, e havia uma nota de frustração inacreditável em seu tom. ― Hayami. Por favor. O que exatamente você está dizendo?
― Estou dizendo que um homem acabou de me usar como refém, me deu um pequeno corte no pescoço, e a polícia o neutralizou, e eu estou atualmente no meio da Rua de Shibuya, sentada no chão, e coberta de sangue. - Olhei para a mancha vermelha na minha blusa. ― Para ser precisa, sangue que não é inteiramente meu.
Outro silêncio. Um mais carregado, de quem está decidindo se liga para a segurança ou para um psiquiatra.
― Você... você está ferida? - ele perguntou, a voz subitamente mais baixa.
― Não seriamente, Kenji-san. É só um arranhão. Estou com os paramédicos agora. Mas... bem, eu preciso ir a uma delegacia para prestar depoimento e trocar de roupa. Não acho que o meu visual atual seja apropriado para fechar um contrato. - Eu tentei um sorriso, mas senti o lábio tremer.
― Deus do céu, Hayami, - ele suspirou, um som de puro desânimo.
― Tudo bem. Esqueça a reunião. Eu vou cuidar da Kawasaki-san. Por favor, vá para casa. E me envie uma mensagem quando você estiver... segura.
― Entendido. Desculpe por ser refém, Kenji-san.
― Apenas vá. - E ele desligou.
Suspirei, guardando o telefone. Eu tinha acabado de ser dispensada do trabalho por ter sido refém de um assalto a banco. Um novo nível de azar. Olhei para o policial que me esperava.
― Ótimo. Agora, a delegacia. Pelo menos vou ter uma história de capa épica para a minha ausência.
Hayami guardou o celular com uma sensação agridoce. Ser dispensada por ter sido refém era uma conquista duvidosa, mas pelo menos Kenji-san não tinha surtado com o atraso de forma corporativa. Ele apenas soou como um homem exausto que estava prestes a mentir para a Kawasaki-san sobre o paradeiro de sua melhor executiva: "Hayami está em uma missão de importância capital... e com a lavanderia em dia."
O policial, um jovem agente Sato com sardas e um olhar de quem nunca havia visto tanta seda branca ensanguentada em uma manhã, a esperava pacientemente.
― Senhorita Hayami, por favor, me siga. Vamos para a Delegacia Central de Shibuya. Faremos o depoimento lá.
O Declínio Estilístico
Hayami se levantou, sentindo o ar frio de setembro arrepiar a pele onde o colete de pescador do assaltante a havia roçado. O paramédico já havia terminado o curativo discreto em seu pescoço. Ela parou.
― Agente Sato,- ela começou, com a dignidade de quem está prestes a reclamar de um defeito em um kimono de alta costura. ― Eu preciso de um favor de emergência. Eu não posso, em sã consciência, entrar em uma delegacia e depois pegar um táxi para casa vestida como a versão gótica de uma executiva de sucesso. O que as pessoas vão pensar? -
Sato piscou, perplexo com a inversão de prioridades.
― Bem, senhorita, que a senhora foi refém...?
― Não, - Hayami corrigiu, apontando para a mancha em seu colarinho.
― Que eu sou descuidada com a minha indumentária. Isso é seda pura. O sangue está coagulando e vai manchar permanentemente. O trauma psicológico é uma coisa; o dano material à minha reputação de dress code é outra.
Sato coçou a cabeça. ― Eu... não sei se podemos providenciar roupas. -
Hayami sorriu, um sorriso sarcástico e afiado que a fazia parecer perigosa mesmo coberta de sangue.
― Não se preocupe. A delegacia fica perto da Shibuya 109, certo? Ou qualquer loja de departamento que venda algo vagamente profissional. Eu tenho meu cartão. O senhor me acompanha, aguarda um minuto, e então prestamos o depoimento. Pense nisso: Evidência A precisa ser substituída antes de ser arquivada para a lavagem.
O Agente Sato, sem ter o que rebater contra a lógica fria e implacável da moda executiva japonesa, suspirou.
― Tudo bem. Mas faremos isso rápido. E a viatura vai esperar.
A cena que se seguiu foi digna de um reality show bizarro. Hayami, escoltada por um policial uniformizado, entrou no Departamento de Roupas Femininas de uma loja chique próxima. As vendedoras, acostumadas a manequins de seda, olharam para a mancha de sangue de Hayami com horror misto de fascinação.
Hayami foi direta.
― Preciso de uma blusa branca. Sem transparência, colarinho impecável, 100% algodão, e que possa ser comprada em 60 segundos. -
Enquanto a vendedora, pálida, vasculhava o estoque, o Agente Sato observava a cena, com a mão no coldre, como se pudesse haver um segundo assaltante escondido na seção de lingerie.
Hayami pegou o primeiro modelo que lhe entregaram. Ela olhou para a blusa ensanguentada em suas mãos e teve uma ideia perversa.
― Agente Sato, - ela chamou, segurando a blusa manchada com a ponta dos dedos. ― Você sabe o que eu vou fazer com isso?
― Lavar...? - ele sugeriu, cauteloso.
― Não. Eu vou emoldurar. Isso não é apenas uma blusa. É o meu Certificado de Fogo. Uma prova de que eu sobrevivi a um dia que a maioria das pessoas só vê no noticiário. E vou pendurar no meu escritório, Kenji-san vai odiar, e eu vou amar.
Ela se dirigiu ao provador. Em menos de três minutos, ela emergiu com uma nova blusa imaculada e uma atitude renovada. Ela pagou com o cartão, deixando a blusa ensanguentada em uma sacola plástica, como um artefato macabro.
O alívio do Agente Sato era palpável. ― Ótimo. Agora, a delegacia. Sem mais desvios.
A Confissão e a Crise Existencial
De volta à viatura, o cheiro de pólvora e pânico foi substituído pelo cheiro de seda nova e desinfetante da viatura. Na delegacia, enquanto Hayami narrava o evento ao Detetive Kaito (o mesmo que parecia ter esquecido de sorrir), ela concluiu o depoimento:
― Então, o sniper acertou o homem, e por causa da proximidade e da aerodinâmica da bala, o respingo de sangue pegou no meu colarinho. Um final trágico para ele, e uma catástrofe têxtil para mim. Fim.
Kaito, que havia ouvido centenas de histórias de crime, olhou para ela. ― ― Senhorita Hayami, o que você acabou de descrever foi um trauma significativo. Você está agindo com uma calma... surpreendente.
Hayami sorriu, um sorriso que não alcançava os olhos. ― Detetive, na minha linha de trabalho, se você não consegue manter a calma enquanto um cliente te grita, você não sobrevive. Manter a compostura enquanto um refém me usa como escudo é apenas um nível avançado de serviço ao cliente. O trauma virá depois que eu tiver que fazer o relatório de despesas da blusa. Essa será a minha verdadeira crise existencial.
Ela então pegou o telefone para enviar a mensagem ao Chefe.
Para: Kenji Tanaka
Assunto: Atualização da Missão.
Status: Em delegacia. Depoimento em andamento. Blusa substituída. Despesas de Emergência: ¥18,000. Por favor, aprove.
Hayami sabia que Kenji-san ficaria aliviado por ela estar segura, mas o custo da blusa, esse sim, seria o verdadeiro catalisador da sua próxima reunião. Afinal, a vida é uma série de pequenos desastres e faturas. E ela já estava pronta para a próxima.
Hayami já havia concluído o seu depoimento, assinando o formulário com uma caligrafia perfeita que desmentia o caos da manhã. Ela estava prestes a pegar um táxi para casa quando o Agente Sato, visivelmente tenso, retornou com um ar de urgência renovada.
— Senhorita Hayami — ele sussurrou, apontando discretamente para a saída. — Temos um pequeno... engarrafamento.
Hayami ergueu uma sobrancelha, endireitando o colarinho da sua nova blusa de ¥18,000.
— Engarrafamento? O cruzamento de Shibuya? Eu imaginei.
— Não. Engarrafamento de mídia, senhorita. — Sato engoliu em seco. — O assalto a banco no Miyashita Park e a subsequente ação do atirador se tornaram a notícia do momento. O homem que a fez de refém... tinha um certo histórico. E a imprensa descobriu que a refém está na Delegacia.
Hayami sentiu um arrepio. Ela se aproximou da janela, observando a rua. Um aglomerado de câmeras e microfones pontuava a calçada em frente. Os flashes começavam a pipocar.
— Ah, maravilha. Eu não estou apenas viva; eu sou a estrela da manhã. — Ela sorriu, mas o sorriso era duro. — Eles devem estar adorando a história da executiva ensanguentada. Que pena que eu estraguei o visual.
— O Detetive Kaito sugere que a senhora use a saída dos fundos. Podemos providenciar um carro descaracterizado para levá-la para casa.
Hayami ponderou. A discrição era a estratégia padrão, a que Kenji-san sem dúvida preferiria. Mas Kenji-san não estaria lá para lidar com a Kawasaki-san, a cliente pontual e de pavio curto. O que Kenji faria? Ele tentaria minimizar o desastre. O que Hayami faria? Ela usaria o desastre.
— Não, Agente Sato. Não faremos isso.
Ela virou-se para Sato, a nova blusa branca e imaculada parecendo um uniforme de batalha.
— O meu chefe, Kenji-san, está neste momento tentando reverter um enorme prejuízo de relações públicas e comerciais. A Kawasaki-san provavelmente está me julgando não apenas pelo atraso, mas por ter sido "descuidada" o suficiente para virar refém. Se eu me esconder, isso vai parecer que eu sou culpada ou que estou traumatizada demais para trabalhar. O que, sejamos honestos, é o que a maioria das pessoas esperaria.
Ela pegou sua sacola, o pacote com a blusa ensanguentada parecendo um troféu grotesco.
— Vou sair pela frente. Eu vou sorrir. E vou dar a eles exatamente uma declaração de cinco palavras.
Sato olhou para ela com admiração e pavor crescentes. — Cinco palavras? E o que elas seriam?
O Pitch de Cinco Palavras
Hayami ajeitou o cabelo, pegou o celular e fez uma última verificação no espelho da parede. Ela não estava ensanguentada, mas havia uma espécie de energia elétrica em seus olhos. Ela acenou para Sato.
— Vamos lá, Agente. É hora de fazer uma aparição pública que a Kawasaki-san não poderá ignorar.
No momento em que Hayami cruzou as portas duplas, as luzes da TV explodiram ao seu redor. Microfones e gravadores surgiram de todos os lados. Vozes frenéticas em japonês e até algumas em inglês gritavam perguntas sobre seu estado, o criminoso, o susto, o trauma.
Hayami parou, ereta, no meio do frenesi. Ela sorriu para as câmeras, um sorriso largo e controlado que não permitia qualquer sombra de pânico. Ela respirou fundo, esperou que o tumulto diminuísse por um segundo e, com a voz clara e firme de uma executiva que estava prestes a fechar o negócio de sua vida, ela olhou diretamente para a lente mais próxima e fez sua declaração.
— Sinto muito, Kawasaki-san. -
O silêncio que se seguiu foi quase audível, um choque coletivo da mídia que esperava lágrimas e fragilidade. Hayami sustentou o olhar por mais um segundo, um flash d“flash” erminação fria por trás do batom vermelho. Ela se virou, ignorando os gritos renovados da imprensa, e entrou no táxi que Sato havia chamado.
No banco de trás, enquanto o táxi se afastava da multidão e dos flashes, Hayami tirou o celular. Ela abriu a mensagem de Kenji-san, que ainda não havia lido.
De: Kenji Tanaka
Assunto: Status
Hayami: Você está bem?
Hayami sorriu, digitando rapidamente, enviando a mensagem com um toque de arrogância calculada.
Para: Kenji Tanaka
Assunto: Re: Status
Enquanto isso, a Refém Fechou o Negócio.
Ela não tinha a menor ideia se a Kawasaki-san estaria a par da história ou se Kenji-san conseguiria fechar a reunião. Mas ela havia feito a sua jogada. Hayami encostou a cabeça no banco, fechou os olhos. A adrenalina estava se dissipando, dando lugar a um cansaço avassalador. Ela pensou na blusa emoldurada, no Certificado de Fogo.
É. A crise existencial pode esperar. Agora, preciso de um café forte e de um analgésico.
Afinal, ser refém era apenas o aquecimento. A verdadeira luta começaria na segunda-feira, quando ela teria que discutir o relatório de despesas da blusa. E ela já estava pronta.
Hayami não estava apenas tentando fugir do trabalho; ela estava realizando uma manobra de relações-públicas não convencionais em tempo real. A declaração de cinco palavras ("Sinto muito, Kawasaki-san. Chegando.") foi a sua proposta comercial final, encapsulando tudo o que ela representava: implacabilidade, foco e eficiência.
A Reação Imediata
Kawasaki-san, uma executiva do calibre de Hayami, não estaria mais na reunião. Ela estaria em seu escritório, assistindo ao noticiário ou recebendalertaas no seu telefone.
Quando ela visse o rosto calmo de Hayami na tela, a blusa nova e imaculada, e ouvisse a declaração, a reação seria de choque seguido de admiração.
O Foco Desviado: Kawasaki-san ficaria inicialmente aborrecida. O atraso e o escândalo são um incômodo. Mas no momento em que Hayami fala, o foco dela muda do incômodo para a performance.
A Leitura da Mensagem: "Sinto muito, Kawasaki-san. Chegando."
Tradução Subliminar: "Eu acabei de sobreviver a um evento de vida ou morte, fui esfaqueada (mesmo que superficialmente) e a sua reunião continua sendo a minha prioridade máxima. Eu sou a pessoa mais dedicada que você já conheceu. Contrate-me."
O Veredito: Para uma líder de negócios que mede o valor pela tenacidade e pela capacidade de controlar a crise, Hayami acaba de provar o seu valor de forma dramática. Ela não se tornou uma vítima frágil; ela se tornou uma máquina de resiliência.
O Próximo Contato
Kawasaki-san não se incomodaria mais com Kenji-san. Ela pegaria o telefone e ligaria diretamente para a Hayami, ignorando a hierarquia.
Enquanto Hayami relaxava no táxi, seu celular tocou. Era um número desconhecido.
— Alô? — Hayami atendeu, a voz ainda com um resquício da adrenalina.
— Hayami. — A voz do outro lado era profunda, rápida e totalmente desprovida de formalidades desnecessárias. Era Kawasaki-san. — Sou eu.
Hayami sentou-se, instantaneamente em modo de combate profissional, apesar do cansaço.
— Kawasaki-san. Sinto muito pelo incidente e pelo atraso na nossa reunião. Kenji-san está cuidando de tudo.
Houve uma risada baixa e curta do outro lado, que Hayami nunca tinha ouvido de uma cliente antes.
— Kenji-san? Kenji-san estava prestes a me dar uma desculpa elaborada sobre uma "emergência de família". Eu o interrompi. Não se preocupe com a blusa de ¥18,000 ou com o seu chefe. Eu assisti ao noticiário.
Kawasaki-san fez uma pausa.
— Se alguém na minha empresa fosse usado como refém e, ao sair da delegacia, enviasse uma mensagem clara à imprensa de que o nosso negócio é a sua prioridade, eu daria a essa pessoa uma promoção instantânea e um bônus por gerenciamento de crise.
O corpo de Hayami relaxou ligeiramente. O contrato estava salvo.
— Fico satisfeita em ouvir isso, Kawasaki-san. Então, podemos remarcar o...
— Não, Hayami. Você está dispensada pelo resto do dia. Vá para casa e beba algo forte. Você conquistou isso. — A voz dela ficou séria de repente. — Mas ligue para o meu escritório antes das 9h de amanhã. Eu não quero discutir mais a proposta de Kenji; quero discutir como você conseguiu sair de uma situação de refém e fazer um pitch de vendas melhor do que o de todos os seus concorrentes juntos. Eu quero a sua atitude e a sua energia neste contrato.
A linha ficou muda. Hayami encarou o telefone. Ela havia transformado um sequestro em uma vitória comercial e um atalho para o topo. Kenji-san ficaria furioso por ser contornado, mas agora Hayami tinha um padrinho no topo do board da cliente.
Hayami sorriu, olhando para a sacola plástica com a blusa ensanguentada no assento ao lado. Não seria emoldurada no escritório; seria um lembrete de que, em Shibuya, a sobrevivência era a melhor estratégia de carreira.
Kenji-san era um homem de controle. Ele controlava o tempo, a agenda e, sobretudo, as narrativas. O incidente de Hayami havia destruído todas as três.
Ele ligou para o número da Kawasaki-san, engolindo o orgulho.
— Kawasaki-san, sou eu, Kenji. Gostaria de me desculpar profundamente pela ausência da Hayami e pelo—
— Kenji-san. — A voz de Kawasaki-san era cortante, mas não irritada; era apenas final. — Não precisamos discutir isso. A Hayami me ligou. Eu vi o noticiário. O contrato está em vias de ser finalizado. A atitude dela é... precisamente o que estou procurando.
Houve uma pausa tensa, e Kenji sentiu o sangue subir.
— Eu vejo. Fico aliviado por ter conseguido manter as coisas em movimento. Eu garantirei que ela preste relatórios minuciosos sobre o... incidente e suas repercussões.
— Não. — Kawasaki-san riu, um som seco. — Deixe-a em paz. Ela está exausta. A Hayami não será mais sua "gestora de contas" neste projeto; ela será minha "Especialista em Estratégias de Alto Risco". Eu a quero na minha linha de frente. Você apenas me fornece os recursos de que ela precisa.
Kenji-san fechou os olhos. A hierarquia, a regra de ouro do kigyou (negócios corporativos), tinha sido subvertida em menos de doze horas por uma refém e um pitch de cinco palavras.
— Entendido, Kawasaki-san. Farei com que Hayami comece a trabalhar nisso amanhã de manhã.
— Ótimo. Kenji-san, o projeto agora é Hayami. Meus cumprimentos.
Ela desligou. Kenji permaneceu com o telefone no ouvido por um momento. Ele não estava mais furioso; ele estava cansado. A declaração de Hayami não era uma insubordinação; era uma nova estrutura organizacional.
O Enquadramento do Certificado de Fogo
Enquanto isso, Hayami, já em casa, tomava um banho longo, permitindo que a água quente lavasse os resíduos de pólvora e pânico.
Quando estava vestida com um yukata confortável, ela olhou para a sacola plástica ao lado da cama. Lá estava a blusa de seda branca, agora uma relíquia macabra, com a mancha de sangue coagulado formando um design abstrato e inconfundível.
Ela sabia que Kenji faria uma última tentativa de reafirmar o controle, e a primeira linha de batalha seria o relatório de despesas.
O celular tocou. Era Kenji-san.
— Hayami. — A voz dele estava baixa, resignada. — Kawasaki-san ligou. Você se tornou a Especialista em Estratégias de Alto Risco.
— Eu sinto muito pelo seu dia, Kenji-san.
— Não se sinta. Apenas me diga uma coisa: o que devo fazer com este relatório de despesas? ¥18,000 por uma blusa que você usou por dez minutos. Não posso aprovar isso. O departamento financeiro vai me questionar.
Hayami sorriu, olhando para a mancha vermelha e preta.
— Claro que pode, Kenji-san. Mas não como 'Roupa Executiva'. Coloque como 'Evidência de Sobrevivência de Alto Nível' ou, melhor ainda, 'Custo de Aquisição de Novo Contrato'.
Ela fez uma pausa, mudando para o tom frio e persuasivo que usava em negociações difíceis.
— E um detalhe, Kenji-san. Eu preciso do seu cartão corporativo. Não é para outra blusa. É para uma moldura de alta qualidade, à prova de ácido.
— Moldura? — Kenji-san parecia genuinamente confuso.
— Sim. Você disse que eu preciso de um relatório sobre o incidente. Eu vou entregá-lo. Vou emoldurar essa blusa e colocá-la na parede do meu escritório. Ela será o meu Certificado de Fogo, Kenji-san. Uma prova visual de que, mesmo quando estou sangrando e sob a mira de uma arma, eu ainda fecho o negócio. É a declaração perfeita para qualquer cliente que duvide da minha dedicação.
Houve um silêncio que se estendeu pela linha. Kenji-san entendeu. Hayami não estava apenas desafiando a hierarquia; ela a estava redefinindo com artefatos.
— Você vai transformar o trauma em decoração de escritório... — Ele murmurou, uma pitada de fascinação e horror na voz.
— Exatamente. E você vai aprovar o custo da moldura como 'Material de Branding Corporativo'.
Um longo suspiro. A rendição de um salaryman formalizado diante de uma força da natureza.
— Feito, Hayami. Aprovado. Mas por favor, da próxima vez, tente pelo menos perder o trem, sim?
— Entendido, Kenji-san. Bom trabalho. — Hayami desligou.
Ela se levantou, caminhando até a janela e olhando para as luzes de Tóquio. A blusa de seda, em sua sacola, era o símbolo de sua nova realidade. Ela havia sido promovida a um nível onde as regras normais não se aplicavam. Ela era a refém que salvou o dia, e essa história era apenas o começo.
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