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O Herdeiro Perdido, Retornou

Capítulo 1

...📍PERSONAGENS PRINCIPAIS 📍...

...📍 Bella Stewart 📍...

...📍Atlas 📍...

...— BELLA STEWART —...

Eu sempre achei curioso como as pessoas confundem luxo com segurança. A mansão dos Stewart parecia uma fortaleza contra qualquer coisa do lado de fora: cercas altas, câmeras discretas, vidro temperado por todos os cantos. Mas, por dentro, o que nos mantinha presos não era aço — era expectativa. Era o “dever”.

Meu nome é Bella Stewart. Filha única, herdeira, vitrine. Escolha a palavra que preferir.

Naquela manhã, o sol entrava em linhas perfeitas pela janela do meu quarto. Eu estava sentada diante do espelho, lutando com um vestido azul-claro que minha mãe jurava que “destacava minhas curvas”. Eu me olhava e via uma versão impecável de mim que parecia sempre atuando. Senti vontade de desabotoar tudo e colocar um moletom velho, mas isso, na linguagem da minha família, seria praticamente um ultraje nacional.

Uma batida leve na porta, me tirou dos meus devaneios.

— Senhorita Bella, seu pai a espera para o café — avisou Rose, uma das funcionárias, com doçura.

— Já vou, Rose. — Respirei fundo, recolhi o cabelo num coque baixo e desci as escadas.

A mesa do café da manhã parecia um catálogo: frutas perfeitamente cortadas, pães alinhados, a xícara de porcelana da minha mãe posicionada exatamente a dois dedos da borda do jogo americano. Meu pai lia o jornal como se fosse um relatório, e minha mãe mexia o café em círculos silenciosos.

— Bom dia. — Sentei, apoiando as mãos no colo para não demonstrar tédio.

— Ombros. — Minha mãe ergueu o olhar só para corrigir minha postura. — Hoje à noite há um jantar importante. Você precisa estar impecável.

— Sempre há um jantar importante. — Sorri sem humor. — E eu sempre preciso estar impecável. A senhora me diz isso todos os dias, que até já memorizei.

Meu pai baixou uma aba do jornal, olhos frios e práticos.

— Richard Moreau estará presente. A parceria com o grupo dele pode se consolidar. Não quero imprevistos.

Richard Moreau. A náusea veio automática. Elegante, rico, vinte anos mais velho e com a aura pegajosa de quem acha que tudo tem preço — inclusive gente. Minha mãe já me apresentou a ele três vezes, todas com aquela frase “um homem admirável” grudada no céu da boca.

— Não contem comigo para isso. — Minha voz saiu calma. — Eu não vou me casar com um homem por conveniência.

Minha mãe pousou a colher, um tilintar metálico que ecoou, e meu pai virou outra página como se eu fosse um ruído de fundo. Aos poucos, aprendi que, na linguagem deles, ignorar era a forma mais eficiente de esmagar.

Empurrei a cadeira, sem apetite.

— Vou sair. — Levantei, pegando minha bolsa. — Preciso resolver uma coisa da faculdade.

Ninguém perguntou o quê. Ninguém perguntou se eu estava bem. Ninguém perguntou nada.

Entrei no meu carro esportivo, um dos poucos caprichos que eram meus de verdade, e toquei o portão. Quando ele se abriu, senti o ar frio varrer o peito. Liberdade, mesmo que breve, tem sabor de vento e música alta.

Dirigi sem destino, deixando que a cidade trocasse de cenário pela janela: dos prédios espelhados e calçadas cheias de gente de terno para ruas mais antigas, com portas de ferro pintado e padarias fumegando pão fresco. Gosto de observar a vida que não precisa se justificar.

Até que, no semáforo de uma rua estreita do centro, meu carro deu um soluço. Depois outro. E então morreu.

— Ah, não. — Dei dois toques no volante, inúteis. — Agora não. Por favor.

Tentei religar. Nada. Respirei, olhei ao redor. Não era o bairro mais convidativo, e eu com aquele vestido, salto, cabelo bem preso... um alvo.

— Problema? — A voz veio de trás, grave, crua, como quem fala pouco e resolve muito.

Virei. O homem era alto, ombros largos em uma camiseta escura sem logo, jeans gasto, botas marcadas de graxa. Trazia uma caixa de ferramentas numa das mãos e sombra de barba, daqueles que o dia teima em não domar. O sol cortava o rosto dele em metade luz, metade sombra, e os olhos — castanhos densos — me analisavam com uma calma desconfiada.

— O carro apagou do nada. — Tentei parecer prática. — Acho que… bom, eu não sei o que eu acho.

Ele aproximou, abriu o capô com um gesto que dizia “faço isso desde sempre” e se inclinou, as mãos trabalhando com naturalidade. O cheiro metálico subiu com o calor. Eu observava mais o jeito do que a mecânica: precisão sem pressa, a firmeza de quem aprendeu a não desperdiçar movimento.

— Superaquecido — decidiu, seco. — E você tem um vazamento. Pequeno, mas é um problema.

— Isso é caro?

Ele me lançou um olhar curto, divertido.

— Depende pra quem.

— Ótimo. — Cruzei os braços, ofendida e um pouco sem graça. — E… dá pra consertar agora?

— Aqui, no meio da rua? Não. — Fechou o capô, apoiou a mão em cima como se domasse uma fera. — Posso rebocar para a oficina. Daí eu vejo direito.

— Quanto tempo?

— Dois dias.

— Dois dias? — Minha voz aumentou um tom. — Eu tenho… compromissos.

— Talvez seus compromissos aprendessem a esperar se você aprendesse a fazer revisão de carro. — O canto da boca ergueu num quase sorriso. — Tem gente que acha que máquina aguenta capricho.

Ninguém falava comigo assim. Ninguém. A primeira reação foi querer mandá-lo para aquele lugar. A segunda foi notar que, estranhamente, eu não me sentia ofendida — me sentia vista. Como se, por um segundo, alguém me tratasse como uma pessoa qualquer.

— Qual é o seu nome? — saiu antes que eu pudesse segurar.

Ele secou as mãos num pano velho preso ao cinto.

— Atlas.

— Eu sou a Bella. — Estendi a mão por impulso.

Ele olhou para minha mão arrumada, anéis discretos, esmalte sem lascas. Havia ironia em seus olhos, mas também uma educação que não esperava. Apertou de leve, firme o suficiente para que eu sentisse a textura da pele, o calor.

— Já tinha suspeitado. — concluiu ele.

— Suspeitado do quê?

— Que você não é daqui. — Ele apontou, com um gesto quase imperceptível, do vestido aos saltos, do relógio à bolsa. Não havia deboche, só observação. — E que não está acostumada a ficar parada quando algo não sai do jeito que quer.

Eu deveria ter respondido com um comentário afiado. Em vez disso, ri. Uma risada curta, surpresa, que me escapou. Ele não riu de volta — apenas me encarou, como se tentasse decidir em que prateleira do mundo eu me encaixava.

O reboque chegou rápido, e Atlas coordenou tudo sem alarde. Meu carro subiu, vencido por cintas e metal. Ele abriu a porta da caminhonete e apenas assentiu, como quem dizia “sobe” sem precisar gastar palavra.

Olhei para a altura da caminhonete e cruzei os braços.

— Você só pode estar de brincadeira… Eu não vou subir aí. Olha a altura disso! Estou de salto, Atlas. Não é apropriado.

Ele arqueou uma sobrancelha, claramente se divertindo com meu drama.

— Então vai andando.

Pisquei, sem acreditar no que ouvi.

— Andando? — repeti, indignada. — Até onde?

— Oficina fica a umas três horas de caminhada. — Ele respondeu sério, apoiado no carro como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Se andar rápido, duas e meia. Mas com esses saltos, duvido que chegue hoje.

Abri a boca, fechei, e encarei meus saltos reluzentes. Três horas. No asfalto quente. O suor já me escorrendo pelo cabelo perfeito, a maquiagem derretendo... Impossível.

— Você tá de brincadeira. — murmurei, mordendo o lábio.

Atlas deu de ombros, o traço de um sorriso no canto da boca.

— Sua escolha, princesa.

Revirei os olhos, respirei fundo e, com toda a dignidade que consegui manter, tirei os saltos. Segurei um em cada mão, subi um pé de cada vez, e acabei sendo praticamente puxada por ele para dentro da caminhonete.

— Satisfeito? — resmunguei, ajeitando o vestido amarrotado.

— Bastante. — ele respondeu, ligando o carro. — Já é um começo: desapegar dos saltos pra não morrer na estrada.

Eu virei o rosto, fingindo estar ofendida, mas por dentro tive que morder o riso.

Capítulo 2

...— BELLA STEWART —...

O interior tinha cheiro de óleo e café frio. Uma medalhinha amassada balançava no retrovisor. Havia um boné no painel e um bilhete preso com fita isolante: “não esquecer a marmita — mãe”. Sorri sozinha. Gostei da ideia de alguém lembrando Atlas de comer.

— Oficina muito longe? — perguntei.

— Dez minutos. — Ele ligou o rádio baixo, numa estação de notícias. Mãos grandes no volante, postura atenta. Era o oposto dos homens com quem eu costumava lidar: não parecia interessado em impressionar ninguém.

Virei o rosto incrédula.

— Como é que é?! Você disse três horas!

Dessa vez, ele riu. Não uma gargalhada, mas um riso baixo que revelou dentes perfeitamente alinhados e bonitos. E, por um instante, eu fiquei presa olhando, surpresa com o quanto aquele sorriso suavizava o jeito duro dele.

— Mentira. — Atlas confessou, ainda rindo. — Se eu falasse a verdade, você nunca ia subir nessa caminhonete.

Apertei os lábios, tentando não sorrir junto, mas foi impossível. A audácia dele me irritava e, ao mesmo tempo, me fazia sentir viva.

— Você trabalha sozinho? — tentei puxar conversa.

— Tinha mais dois. — Pausa. — Mas devido algumas coisas, agora trabalho só.

— Deve ser cansativo.

— É trabalho. — Ele deu de ombros. — Cansativo é fingir o dia inteiro. Ou trabalho ou não como.

Eu virei o rosto para a janela, como se a rua tivesse ficado fascinante. Aquela frase me acertou num ponto que eu passava maquiagem por cima.

Chegamos. A oficina era um galpão simples com paredes pintadas de branco encardido e um letreiro azul desbotado: Oficina Atlas e Silva. O “e Silva” tinha sido retocado à mão. Havia plantas em latas de tinta nos cantos, um rádio velho com a antena remendada e um cachorro muito atento deitado na sombra, orelhas em alerta. Ele ergueu a cabeça e abanou o rabo quando viu Atlas.

— O nome dele é Thor. — Atlas comentou, notando meu olhar.

— Thor e Atlas. — Sorri. — Você gosta de mitologia, pelo visto.

— Meu pai gostava. — O jeito como ele disse “meu pai” carregava uma saudade. — Eu gosto de ter no que pôr o nome.

Houve algo no modo contido como ele disse aquilo que me deu vontade de perguntar mil coisas e nenhuma. Em vez disso, segui o protocolo.

— Tem um lugar, ahn, limpo, para eu esperar e chamar um carro?

— Tem a sala ali. — Ele apontou para um escritório pequeno com uma janela. — Água filtrada, café ruim. Wi-Fi… às vezes. Mas você pode chamar seu motorista, imagino.

— Não tenho motorista. — Falei mais rápido do que pretendia. — Quer dizer, tenho. Mas não quero.

Ele me lançou um olhar breve que dizia muito: “entendi”. Não insistiu. Voltou para o carro, anotou números numa prancheta, abriu o capô de novo, examinou. Eu o observei de lado, como quem observa um idioma novo. Havia dignidade no jeito de trabalhar, uma espécie de orgulho sem plateia. Senti um aperto de admiração que era também curiosidade. Quem era ele antes de ser “o cara da oficina”? Quem ele era quando ninguém olhava?

— Posso ver seu número? — Ele apareceu ao meu lado com uma caneta. — Quando estiver pronto, te ligo para avisar.

Passei. Ele digitou no próprio celular, um aparelho com a tela trincada no canto. O toque do meu nome no telefone dele foi quase cômico: Bella Stewart. Parece que o sobrenome entra antes da gente em qualquer lugar.

— Só “Bella” está bom. — arrisquei.

— Certo, “Só Bella”. — O canto da boca dele cedeu um centímetro. — Dois dias.

Assenti. De repente, dois dias pareceram uma eternidade e um piscar de olhos ao mesmo tempo. Meu pai ficaria furioso, minha mãe me daria aquele sermão passivo e eu seria empurrada de volta para o vestido perfeito e a conversa perfeita ao lado do “homem admirável” no jantar.

Pedi um carro por aplicativo e esperei do lado de fora, sob uma árvore. Atlas ajeitava algo no motor do meu carro com concentração. O sol marcava o contorno dos ombros dele, e eu me peguei pensando em como ele devia ser aos seis anos: mãos curiosas desmontando brinquedos, a primeira bicicleta, o primeiro motor. Ri da própria imaginação. Eu era ótima em inventar histórias, péssima em viver a minha.

O carro chegou. Eu abri a porta, olhei de novo para ele. Entrei, e enquanto o carro arrancava, Thor latiu uma vez e deitou. A oficina foi ficando pequena pelo retrovisor.

No caminho, meu celular vibrou.

Mamãe: Onde você está? Seu pai quer você em casa às 17h para provar o vestido. O jantar começa às 19h. Não se atrase.

Pai: Não invente. Hoje é importante.

Olhei a hora. Faltavam ainda nove horas para eu me transformar de novo em vitrine. Mas sai era isso. Minha mãe sempre encurtando a corda invisível que ela amarrou em mim.

Pensei em Atlas dizendo “fingir o dia inteiro é cansativo”. Pensei no nome dele, esse peso bonito do mundo nos ombros.

Respondi um ok seco. Apoiei a cabeça no encosto e fechei os olhos por um instante. O vestido azul-claro, Richard Moreau, os cristais da sala, os flashes, as mãos calculando alianças como negócios — tudo me veio numa onda. Por cima, porém, ficou o som do capô se fechando, o “dois dias” de Atlas, a promessa muda de que, por algum motivo que eu ainda não entendia, meus passos tinham esbarrado em algo real.

Quando o carro entrou na alameda da mansão, o portão abriu-se com a docilidade dos hábitos. Pensei em Thor abanando o rabo, em latas de tinta virando vasos, na caneca de café frio do painel. A primeira coisa que fiz ao entrar foi mandar mensagem para um número salvo como “Atlas (oficina)”.

Bella: Se aparecer “surpresa idiota”, me avisa antes. E… obrigada por hoje.

Demorei para perceber que estava sorrindo para a tela. O retorno veio minutos depois, quando eu já atravessava o hall.

Atlas: Aviso sim, princesa.

Ri sozinha. Enfiei o celular no bolso antes que minha mãe me visse com uma expressão que não combinava com “refinamento”.

Subi para o quarto. Olhei para o vestido vermelho que estava estendido sobre a cama, pronto para me vestir como uma moldura. Toquei o tecido com as pontas dos dedos e, pela primeira vez, imaginei como seria escolher outra coisa.

Tenho tudo.

Pelo menos, é o que dizem. Faço faculdade, tenho dinheiro no banco, patrimônios em meu nome que recebi quando completei dezoito anos. Apartamentos, ações, participações em empresas que nem sei explicar direito como funcionam. No papel, sou a filha perfeita, a herdeira blindada contra qualquer ameaça do mundo.

Mas ninguém nunca conta o preço desse “tudo”.

Desde os meus dezoito anos, precisei colocar a vida para frente. Cada passo medido, cada movimento controlado. Nada era simplesmente porque eu queria, mas porque se encaixava no que esperavam de mim. Hoje, com vinte e cinco anos, meus pais ainda seguram a ponta da corda que amarraram em mim.

Eles me monitoram. Me vigiam. Às vezes acho que cada respiração minha passa por um filtro invisível, para ver se está dentro do padrão Stewart.

E eu me pergunto: de que adianta ter liberdade no papel, se na prática não posso escolher nem a cor do vestido que vou usar à noite?

Meus amigos da faculdade sempre falavam em viajar nas férias, pegar a estrada sem rumo, acampar na beira da praia. Eu sorria, fingia empolgação, mas sabia que jamais teria permissão para isso. No máximo, uma viagem “planejada” para a Europa, com motorista particular, hotéis cinco estrelas e roteiros aprovados pela minha mãe. Não é liberdade quando tudo já vem embrulhado e entregue pronto.

E o pior é que, depois de tanto tempo presa a essas correntes invisíveis, eu comecei a acreditar que talvez fosse normal. Que eu realmente fosse incapaz de decidir por mim mesma.

Capítulo 3

...— ATLAS —...

Eu não sei se acredito em destino. Pra mim, a vida nunca teve nada de mágica. Ela simplesmente acontece, cobra caro, e ou você paga, ou fica para trás. E é por isso que eu não tenho me impressionado tanto com aquela garota do carro importado. Não que ela passasse despercebida — seria impossível. Mas eu já vi gente demais achando que o mundo gira ao redor de um sobrenome. E o mundo, do meu lado da cerca, gira porque alguém está suando, se matando de trabalhar, e não porque nasceu dentro de uma casa com colunas de mármore.

Meu nome é Atlas. Tenho vinte e oito anos. O nome não foi escolha minha, claro, mas eu aprendi a carregar ele como um tipo de ironia: Atlas, o titã condenado a sustentar o céu nas costas. A diferença é que eu não sustento o céu — sustento minha mãe e meu irmão, depois que meu pai faleceu.

Minha mãe sempre foi meu porto seguro. O tipo de mulher que nunca teve luxo, mas que transformava qualquer pedaço de pão em banquete só porque sentava com a gente e fazia parecer especial. Eu e Elian fomos tudo que ela teve. Na verdade, nem sei se posso dizer que eu sou dela desde o começo.

Fui abandonado. Isso não é segredo. Minha mãe nunca escondeu de mim. Um bebê deixado na porta de uma casa simples, embrulhado numa manta, numa madrugada chuvosa. Ela me encontrou quando voltava de um turno de trabalho e, em vez de chamar alguém ou me largar num abrigo, me pegou no colo e decidiu que eu seria dela.

Eu sempre carreguei essa história como um peso e, ao mesmo tempo, como orgulho. Peso porque, de alguma forma, eu nunca soube quem realmente me colocou no mundo. Orgulho porque, mesmo sem ter nada, minha mãe escolheu ficar comigo. Isso é amor de verdade.

Dois anos depois, nasceu Elian. Esse sim, filho de sangue da minha mãe. Crescemos juntos, mas diferentes como água e fogo. Eu aprendi cedo que precisava ajudar, carregar, me virar. Elian, sempre foi o oposto. Não é que ele não tenha coração — até tem — mas ele nasceu com essa mania de achar que a vida vai se ajeitar sozinha, sem esforço.

Enquanto eu ia trabalhar na oficina, carregando caixas, consertando motor, fazendo de tudo um pouco, ele ia pra rua. Primeiro eram só amigos, depois brigas, depois copos de bebida. Quantas vezes já precisei buscar ele em um bar, em esquina, em briga besta… Eu perdi a conta. E cada vez que eu chegava, minha mãe estava em casa, preocupada, esperando a porta abrir com medo de ouvir notícia ruim.

Eu não consigo culpar ela. Mãe é mãe, sempre vai acreditar que o filho vai mudar. Mas eu sei que Elian ainda não entendeu o peso das coisas. A vida cobra cedo ou tarde, e eu tenho medo do dia em que ela vai bater na porta dele mais forte do que ele consegue aguentar.

Apesar disso, ele é meu irmão. Eu não deixo de cuidar. Não deixo de estar lá. Se tem uma coisa que aprendi com a vida é que, quando você ama alguém, você não escolhe só as partes boas. Você pega tudo: o erro, a fraqueza, a decepção. É pesado, mas é real.

E enquanto eu seguro as pontas com minha mãe e com Elian, ainda trabalho como um condenado. Oficina não é um serviço limpo nem leve. Você chega cedo, sai tarde, volta pra casa com cheiro de óleo, graxa e suor. O corpo dói, a mente pesa, mas no fim do mês tem comida na mesa. E isso é o que importa.

Eu nunca reclamei, porque sei que podia ser pior. Mas às vezes, quando encosto a cabeça no travesseiro e a calmaria da noite chega, eu penso em como seria ter uma vida que fosse só minha. Sem carregar ninguém, sem buscar meu irmão em boteco, sem minha mãe olhar pra mim com os olhos pedindo que eu não desista.

A verdade é que eu não sei nem se eu sei viver só por mim. Talvez eu tenha nascido com essa sina de carregar. Talvez seja por isso que o nome caiu tão certo: Atlas.

Saí da oficina já passava das oito da noite. O corpo doía como se cada músculo tivesse sido arrancado e colocado de volta no lugar errado. Mas essa era a rotina: motor atrás de motor, cliente atrás de cliente, e eu atrás do dinheiro que nunca parece suficiente.

Fechei a caixa registradora, contei o que entrou no dia e guardei num envelope. Não era muito, mas já dava pra segurar as contas da semana. Peguei o dinheiro que me cabia, enfiei no bolso e segui a pé até a padaria da esquina.

O cheiro de pão quente me acertou assim que abri a porta. Sempre gostei dessa sensação, talvez porque fosse uma das poucas coisas que me lembravam infância: minha mãe, o café preto dela e um pedaço de pão amanhecido com manteiga. Nada de banquete, nada de mesa farta. Só aquilo já bastava.

— Boa noite, Atlas. — disse o padeiro, acostumado a me ver quase todo fim de tarde. — O de sempre?

— O de sempre. — Respondi, passando as mãos na camisa cheia de graxa, como se isso adiantasse.

Ele embrulhou os pães num saco de papel, e eu aproveitei para pegar também um litro de leite e umas fatias de queijo. Coisa simples, mas que fazia diferença em casa. Depois, dei uma passada no mercadinho da rua de baixo e comprei arroz, feijão e algumas verduras. Nada sofisticado, só o básico.

Carregar aquelas sacolas não me incomodava. Pelo contrário, era satisfatório. Apesar de todo o peso que o nome “Atlas” carrega, pelo menos eu podia colocar comida na mesa da minha mãe.

Quando cheguei em casa, a luz da sala já estava acesa. Vi a cortina se mexer discretamente e, logo em seguida, minha mãe abriu a porta. O sorriso dela era sempre o mesmo, cansado, mas cheio de amor.

— Filho, demorou. — disse, estendendo a mão para pegar as sacolas. — Trabalhou demais hoje?

— Nada que eu não aguente, mãe. — Entreguei os sacos e beijei o rosto dela. — Trouxe pão fresquinho.

Os olhos dela se iluminaram como se eu tivesse trazido um presente caro. É isso que me dói: ver como coisas tão pequenas fazem tanta diferença.

Entrei, larguei as chaves em cima da mesa e me joguei na cadeira. A casa era simples, pequena, mas cada canto tinha história. O sofá gasto, a mesa de madeira com uma das pernas mancando, os quadros tortos nas paredes. Tudo aquilo era nosso. Tudo aquilo era real.

— E o Elian? — perguntei, já sabendo a resposta.

Minha mãe suspirou, olhando para o relógio de parede.

— Disse que voltava cedo, mas até agora nada.

Balancei a cabeça, frustrado.

— Eu vou atrás dele.

Ela não me impediu. Nunca impede. Só assente e continua mexendo as panelas, como se cozinhar fosse a forma que ela encontrou de segurar o mundo no lugar.

Mas sei que ela pensava assim como eu, que a qualquer momento o celular tocaria, e receberiamos uma ligação avisando que Elian se meteu em uma briga. Mas ela também sabia, que eu prontamente estaria lá para o defender, como sempre faço.

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