As noites na vila de Ravaryn sempre foram tranquilas, quase sonolentas, mas naquela noite havia algo diferente. O silêncio não era repouso, era ameaça.
Do meu quarto, eu observava pela janela a rua deserta iluminada apenas pela luz fraca das tochas presas às paredes de pedra. O vento agitava as bandeiras no alto da praça, e as sombras se moviam como se tivessem vida própria. Apertei o xale contra os ombros e respirei fundo, tentando ignorar a sensação de que algo me vigiava.
A voz voltou.
Um sussurro, não mais dentro da minha mente, mas tão próximo que me arrepiei dos pés à cabeça.
"Sempre ou para sempre."
Engoli em seco. Não era a primeira vez que ouvia isso, mas nunca com tamanha clareza.
— Você também ouviu? — perguntei em um sussurro, mais para mim mesma do que para qualquer outra pessoa.
— Ouvir o quê? — A resposta veio carregada de curiosidade e impaciência.
Me virei, e lá estava Arlen, meu melhor amigo desde a infância. Ele estava encostado no batente da porta, os braços cruzados e aquele meio sorriso que sempre carregava quando achava que eu estava imaginando coisas demais.
— A voz. — murmurei, evitando seus olhos. — Alguém... falou comigo.
Ele arqueou uma sobrancelha, dando alguns passos para dentro do quarto.
— Lyra, você anda sonhando acordada de novo. — A risada dele foi suave, mas havia preocupação escondida em seu tom. — Desde que... — Ele parou, como se tivesse medo de terminar a frase.
Eu sabia o que ele não queria dizer: desde que sua família desapareceu.
— Eu não estou sonhando. — respondi firme, tentando parecer mais confiante do que realmente estava. — Essas palavras me perseguem, Arlen. Não é invenção.
Ele suspirou e se aproximou da janela, apoiando-se no parapeito. Do lado de fora, os passos de alguns guardas ecoavam ao longe, e o cheiro de lenha queimada vinha das casas.
— Sempre ou para sempre... — repetiu em voz baixa, quase como se estivesse experimentando o peso das palavras. — Isso não significa nada.
— Significa. — rebati de imediato. — Eu sinto que é um aviso.
Antes que ele pudesse responder, um estrondo ecoou na praça. Ambos nos viramos ao mesmo tempo. Uma carroça havia virado, derramando caixas e frutas pela rua, mas não era isso que chamava atenção: havia símbolos pintados nas laterais, símbolos que eu já tinha visto nos meus pesadelos.
Meu coração disparou.
— Arlen... você viu aquilo?
Ele estreitou os olhos.
— Não gosto disso. — pegou minha mão e a apertou. — Vamos até lá, mas você fica atrás de mim.
Descemos pelas escadas de madeira rapidamente, e o ranger dos degraus parecia mais alto do que nunca. O frio da madrugada cortou minha pele assim que saímos à rua. Algumas pessoas se reuniam em volta da carroça caída, cochichando entre si.
Uma mulher alta, envolta em um manto escuro, observava de longe. Seus olhos eram de um verde penetrante e pareciam brilhar mesmo à meia-luz. Quando percebi seu olhar fixo em mim, estremeci.
— Quem é ela? — perguntei a Arlen em um sussurro.
— Nunca a vi antes. — respondeu, a voz tensa. — Mas... parece que te conhece.
A estranha sorriu, como se tivesse ouvido nossa conversa, e se aproximou devagar, o som de suas botas ecoando nas pedras.
— Finalmente. — disse, e sua voz era tão suave quanto a que ecoava em meus sonhos. — A escolhida desperta.
Senti minhas pernas fraquejarem.
— Você... — minha voz falhou. — Você é a voz que eu ouço.
Ela inclinou a cabeça, os olhos nunca deixando os meus.
— A voz não é minha, menina. É sua. O destino apenas encontrou um modo de se fazer ouvir.
Arlen deu um passo à frente, se colocando entre nós.
— Quem é você? O que quer com ela?
O sorriso da mulher se alargou, mas não havia bondade nele.
— Meu nome não importa. O que importa é a escolha que sua amiga terá de fazer. E quando esse momento chegar... — ela olhou para mim com intensidade — ...ela descobrirá que sempre e para sempre não são a mesma coisa.
O silêncio que se seguiu foi mais cortante do que qualquer grito. Eu não sabia se devia fugir, enfrentar ou simplesmente acordar daquele pesadelo. Mas algo dentro de mim dizia que aquilo era apenas o começo.
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Arlen segurava firme meu braço, como se tivesse medo de que eu me aproximasse da mulher misteriosa. Eu sentia os olhos dela queimando em mim, e, por um instante, tudo à minha volta pareceu se calar — as vozes da multidão, o vento noturno, até mesmo o bater apressado do meu coração.
Quando tentei piscar, ela já não estava mais lá.
— Onde ela foi?! — perguntei, com a respiração entrecortada.
Arlen olhou em volta, os punhos cerrados.
— Eu… eu não sei. Ela simplesmente sumiu.
Mas eu sabia. De algum modo, a mulher não precisava se mover como as pessoas comuns. Era como se tivesse atravessado a própria sombra e desaparecido dentro dela.
A multidão começou a se dispersar, voltando às casas, murmurando sobre o azar da carroça virada. Eu ainda não conseguia desgrudar os olhos dos símbolos pintados nas tábuas quebradas. Eram círculos entrelaçados, como correntes, marcados por runas antigas que não reconhecia, mas que despertavam algo em mim.
— Precisamos sair daqui. — Arlen puxou minha mão novamente. — Venha.
Deixamos a praça em silêncio, com o som de nossos passos ecoando pelas pedras molhadas. O frio da madrugada parecia ter se infiltrado na minha pele, mas não era apenas o clima. Era o pressentimento de que aquela noite tinha aberto uma porta que jamais se fecharia.
Nossa vila, Ravaryn, sempre foi pequena e isolada. Erguida no vale entre duas montanhas, parecia protegida do resto do mundo, como se fosse um lugar esquecido pelos deuses. As casas eram de pedra cinzenta, cobertas por telhados de palha, e o cheiro de lenha queimada fazia parte de cada esquina.
Quando criança, eu amava correr pela praça central durante os festivais. Minha mãe sempre me dava uma fita vermelha para amarrar no cabelo, dizendo que a cor afastava os maus espíritos. Meu pai, por sua vez, ficava me observando de longe, rindo quando eu tropeçava nas saias longas.
Sacudi a cabeça, espantando a lembrança. Fazia anos que eles haviam desaparecido sem deixar rastro. Não houve corpos, nem cartas, nem explicação. Apenas silêncio. Um vazio que ninguém ousava preencher.
Arlen notou meu olhar distante.
— Pensando neles outra vez?
Assenti em silêncio.
— Eu sei que dói. — ele disse com a voz baixa. — Mas você não pode se perder nisso, Lyra. Se essa mulher for mesmo real… se essas vozes forem um aviso, então você precisa estar preparada.
— Preparada para quê? — perguntei, minha voz soando mais frágil do que eu gostaria. — Eu não sei nem o que significa esse enigma. “Sempre ou para sempre”… como se fosse uma escolha. Mas entre o quê? Entre quem?
Ele parou de andar e me encarou.
— Talvez não devamos descobrir.
Havia sinceridade nos olhos dele, mas também medo. Pela primeira vez percebi que Arlen não estava apenas preocupado comigo. Ele temia o que eu poderia me tornar.
Antes que eu pudesse responder, um som distante cortou o ar: o soar grave dos sinos da torre central. Três badaladas lentas, seguidas de silêncio. Nunca eram tocados à noite, a não ser em casos de extrema urgência.
O coração apertou no peito.
— O que será agora?
Arlen não respondeu. Ele apenas me puxou novamente pela mão, correndo em direção à praça.
Quando chegamos, o ancião da vila já estava lá, ladeado por dois guardas. O rosto dele estava pálido, os olhos cheios de sombra.
— Habitantes de Ravaryn! — a voz dele ecoou pela praça, firme apesar da idade. — Uma marca foi encontrada. Um presságio antigo que anuncia tempos de trevas.
Senti meu corpo gelar. Eu já sabia de qual marca ele falava.
— Ela estava na carroça, não estava? — sussurrei para Arlen.
Ele apenas assentiu, sem coragem de olhar para mim.
O ancião ergueu uma das tábuas quebradas da carroça, mostrando os símbolos que eu já havia visto. As runas brilham por um instante sob a luz das tochas, como se estivessem vivas. Um murmúrio percorreu a multidão.
— A lenda retorna. — disse o ancião. — E com ela, a pergunta que ninguém deseja ouvir.
O silêncio tomou conta da praça, até que ele completou:
— Sempre ou para sempre?
Meu coração parou.
A mesma frase. As mesmas palavras que ecoavam em meus sonhos.
E, pela primeira vez, tive certeza absoluta de que não era coincidência.
O eco das palavras do ancião ainda pairava no ar quando um rugido grave rasgou o silêncio da praça. O som reverberou pelas montanhas como se algo gigantesco tivesse despertado.
As tochas tremularam, algumas se apagando, e o frio da noite se tornou cortante, antinatural. Do alto das muralhas, guardas gritaram em desespero:
— Eles estão vindo! Preparem-se!
E então vimos.
Das sombras do vale surgiram criaturas que não deveriam existir. Seus corpos eram retorcidos, alguns lembrando lobos de olhos incandescentes, outros parecendo homens cobertos de garras e presas. Suas silhuetas deformadas se arrastavam na direção dos portões, emitindo uivos e grunhidos que fizeram a multidão entrar em pânico.
— Corram para as casas! — berrou o ancião, mas era tarde demais. O portão da muralha estremeceu com o impacto da primeira investida.
Arlen me agarrou pela mão.
— Lyra, precisamos sair daqui! Agora!
Eu queria obedecer, mas algo me mantinha presa. Era como se minhas pernas não me pertencessem mais. Dentro de mim, uma onda de calor subia, latejando, pedindo para escapar — mas eu não sabia o que era. Não entendia.
De repente, uma flecha silvou pelo ar e atingiu uma das criaturas em cheio, fazendo-a tombar antes que alcançasse a praça. Outra, e mais outra seguiram a primeira, certeiras.
— Guardas?! — Arlen arregalou os olhos.
Mas não eram os nossos guardas.
As muralhas se abriram com estrondo, e cavaleiros armados avançaram pelas ruas estreitas, as espadas refletindo a luz das tochas. À frente deles vinha um jovem de armadura prateada, o estandarte real tremulando atrás de si. Seu rosto era firme, seus olhos claros como aço, e cada movimento parecia carregado de autoridade.
— Pelo Reino de Elíndar, protejam o povo! — sua voz ecoou poderosa sobre a confusão.
Um príncipe. Eu sabia quem era, mesmo nunca tendo visto de perto. Kaelron, herdeiro do trono. O homem que todos diziam ser um guerreiro nato, mas que jamais havia deixado a segurança da capital.
O choque percorreu a multidão, mas não houve tempo para questionar. Ele desceu do cavalo com agilidade, espada em punho, e se lançou contra a primeira criatura que atravessou a muralha, abatendo-a com um golpe limpo.
Meu coração disparou. Não só pela brutalidade da cena, mas porque, por um instante, os olhos dele cruzaram os meus.
E naquele olhar havia algo estranho. Como se ele soubesse quem eu era.
As criaturas rugiram novamente, e a batalha se espalhou pela praça. Eu não podia me mover, não podia respirar. O calor dentro de mim latejava mais forte, como se implorasse para sair, mas continuei imóvel, assustada demais para entender o que acontecia comigo.
Arlen me puxou com força.
— Lyra, não olhe para eles! Precisamos encontrar abrigo!
Mas, mesmo sendo arrastada, virei o rosto uma última vez.
Kaelron lutava como se tivesse nascido para aquilo, seus golpes certeiros abrindo caminho entre a escuridão. Ainda assim, eu sabia, sem entender o porquê, que ele não tinha vindo salvar Ravaryn por acaso.
Algo não estava certo, por que uma príncipe viria para uma vila isolada?
O que não foi contado? Porque meu país sumirão sem deixar rastros?
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