Agosto de 2024
O som intermitente do monitor cardíaco ecoava como um relógio prestes a parar.
Melissa Ashford pressionava as luvas contra o ferimento aberto na lateral do abdômen da paciente, sentindo o sangue quente se acumular na gaze que já não absorvia mais nada. O cheiro metálico tomava o ar da sala de cirurgia, misturado ao odor forte do antisséptico.
— Pressão caindo.— anunciou uma das enfermeiras, a voz carregada de pânico.
— Não vai cair.— Melissa respondeu, a determinação fria na voz contrastando com o suor que escorria por sua testa.
— Aumentem a dose de noradrenalina.
A garota na maca não tinha mais que dezoito anos. Tinha o rosto pálido, os lábios azulados e longos fios castanhos colados na pele pelo sangue seco. Melissa não sabia o nome dela, só sabia que havia sido retirada das ferragens de um carro que capotou numa das estradas mais perigosas do estado. O relatório dizia que ela estava sozinha.
— Ashford, ela está entrando em choque irreversível! — o anestesista alertou.
Melissa fechou os olhos por um segundo, apenas o suficiente para silenciar todos os sons ao redor. Então, abriu-os novamente com a mesma expressão que a tornara conhecida no hospital: a de alguém que não aceita perder.
— Ela não vai morrer na minha mesa.
As mãos se moviam com precisão cirúrgica, mas por dentro, Melissa sentia a exaustão bater. Há trinta horas sem dormir, ela estava sustentada apenas por café e adrenalina. Ainda assim, seu corpo parecia ignorar o cansaço, obedecendo a um único instinto: salvar vidas.
— Pinça. — pediu, e a enfermeira colocou o instrumento em sua mão antes mesmo que a frase terminasse.
Foram mais de quatro horas de luta até que, finalmente, o monitor emitiu um bip constante e estável. Melissa recuou, o peito subindo e descendo com força, sentindo os músculos das costas protestarem.
— Sutura finalizada. Ela vai viver — anunciou, e uma onda de alívio percorreu a sala.
Ao sair para o corredor, retirou as luvas e a máscara, sentindo o gosto amargo de sangue e metal ainda na boca. A porta de vidro se fechou atrás dela com um clique suave.
Megan, sua melhor amiga e também cirurgiã, encostada na parede com um copo de café, arqueou uma sobrancelha.
— Você tá com aquela cara de “salvei mais uma alma e tô fingindo que não tô exausta”.
Melissa suspirou, pegando o café das mãos dela sem pedir.
— Não fingi nada. Eu tô exausta de verdade.
— Então dorme. — Megan deu um gole no próprio café.
— Ou casa com um bilionário, que resolve o problema rapidinho.
Melissa riu de canto.
— Bilionário não cura câncer de pâncreas, Meg.
Megan ergueu o copo num brinde irônico.
— Mas paga o tratamento.
Melissa não respondeu. No fundo, sabia que Megan tinha razão. Mas naquele momento, só pensava na garota da sala de cirurgia. Não fazia ideia de que um ano depois, aquele salvamento cobraria um preço muito maior do que ela poderia imaginar.
1 Ano depois.....
Agosto de 2025.
O toque insistente do celular arrancou Melissa do seu momento raro de descanso no pequeno sofá do quarto da mãe no hospital. Ela atendeu sem sequer ver o número, achando que era alguma ligação médica de emergência.
— Melissa Ashford? — a voz masculina do outro lado era formal, quase mecânica. — Falo do Banco Central de Seattle.
Melissa se endireitou.
— Sim, sou eu.
— Senhora Ashford, lamentamos informar que a conta de poupança finalizada em seu nome foi encerrada ontem. O valor total foi retirado.
Ela piscou, tentando processar.
— Deve haver algum engano. Aquela conta é conjunta, mas... — a voz falhou, e um frio percorreu sua espinha. — Quem retirou o dinheiro?
— O co-titular. Seu pai.
O mundo pareceu encolher à sua volta. As paredes do hospital ficaram mais próximas, o ar, mais pesado. Aquele dinheiro não era luxo, não era reserva para férias ou compras. Era o pagamento das próximas sessões de quimioterapia da mãe.
— Isso é impossível... — murmurou, mas a ligação já havia terminado.
Melissa fechou os olhos, respirando fundo. Não era surpresa o pai fazer algo assim. Ele sempre encontrava um jeito de decepcioná-la, mas agora... agora ele tinha mexido com a única coisa que importava.
— Respira, mel. — Megan surgiu atrás dela, com um copo de café na mão e o cabelo preso num coque bagunçado. — Você tá branca feito papel
Melissa contou o que havia acontecido, e Megan soltou um palavrão alto o suficiente para dois pacientes do corredor olharem feio para ela.
— Eu sempre disse que seu pai merecia um documentário no Investigação Discovery.
— Megan, não é hora pra piadas.
— Eu não tô brincando. — Ela se aproximou, baixando a voz. — Mas relaxa... a gente vai achar um jeito.
Melissa balançou a cabeça.
— Não existe um jeito. Ou eu consigo vinte mil dólares até o fim da semana, ou a próxima sessão da minha mãe não acontece.
Hospital de Seattle ala oncológica.
Melissa estava sentada no sofá observando sua mãe dormir enquanto pensava em um jeito de arranjar vinte mil dólares.
— Meg to ferrada.— Melissa disse ainda encarando a mãe dormindo.
— Mel vamos conseguir dar um jeito. — Megan disse apertando a mão da amiga.
Antes que Melissa pudesse perguntar como, o celular vibrou novamente. Dessa vez, um número desconhecido apareceu na tela.
Ela atendeu.
— Senhorita Ashford? — a voz feminina era educada, profissional.
— Aqui é a secretária do senhor Carter Black. Ele gostaria que a senhorita comparecesse à sede da Black’s Corporation amanhã, às nove da manhã.
Melissa franziu o cenho.
— Quem?
— Carter Black.
Ela olhou para Megan, que estava com um olhar curioso.
— E... o que exatamente ele quer comigo?
— O senhor Black prefere explicar pessoalmente.
A ligação caiu. Melissa ainda segurava o celular na mão, como se tentasse entender o que acabara de acontecer.
Megan sorriu abertamente agora.
— Viu? Eu disse que às vezes a vida manda um bilhete premiado.
— Ou uma armadilha. — Melissa suspirou.
Ela não sabia, mas acabara de colocar o primeiro pé dentro de um jogo que Carter Black já estava planejando havia meses.
O Primeiro Encontro
Melissa entrou no saguão da Black’s Corporation com a mesma postura que usava no hospital queixo erguido, passos firmes, e expressão de quem não tinha tempo para perder.
O prédio era imponente, com paredes de vidro que refletiam o céu cinzento de Seattle e um piso de mármore tão polido que parecia espelho. Homens e mulheres em ternos impecáveis cruzavam o hall como peças de um relógio perfeitamente sincronizado.
— Senhorita Ashford? — uma recepcionista de sorriso ensaiado se aproximou.
— Por favor, me acompanhe.
O elevador subiu em silêncio, exceto pelo som mecânico das portas se fechando e o leve zumbido do motor. Melissa não sabia ao certo o que esperar, mas uma coisa era clara, aquele Carter Black não era um homem qualquer.
A porta do elevador se abriu para um andar inteiro dedicado a um único escritório. O ambiente era amplo, minimalista, e dominado por paredes de vidro que revelavam uma vista panorâmica da cidade.
No centro, atrás de uma mesa de madeira escura, estava ele.
Carter Black.
Ele se levantou lentamente quando ela entrou. Alto, muito mais do que ela imaginara , ombros largos, terno preto impecável, gravata ajustada com perfeição. O cabelo escuro estava penteado para trás, e os olhos acinzentados pareciam estudá-la como se pudesse desmontá-la peça por peça.
— Senhorita Ashford. — Sua voz era grave, controlada, sem um traço de calor.
— Sente-se.
Melissa obedeceu, cruzando as pernas e apoiando as mãos no colo.
— Me desculpe, mas... eu ainda não entendi o motivo de estar aqui.
Carter não respondeu de imediato. Em vez disso, abriu uma pasta sobre a mesa, revelando um arquivo com páginas encadernadas.
— Li muito sobre você. Médica brilhante. Especialista em cirurgias de alto risco. Trabalha horas a fio. Vive para salvar vidas.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Isso está no meu currículo público.
— E também sei — ele continuou, como se não tivesse ouvido
— Que sua mãe está doente. Câncer pancreático. Tratamento caro.
O ar pareceu rarear. Melissa manteve a expressão firme, mas por dentro sentiu o estômago se contrair.
— O senhor está me investigando?
Carter encostou-se na cadeira, cruzando os dedos sobre o abdômen.
— Eu não “investigo”. Eu obtenho informações.
Ela manteve o silêncio por alguns segundos, tentando entender aonde ele queria chegar.
— Por que tudo isso?
Ele inclinou-se levemente para a frente.
— Porque eu posso resolver o seu problema. E, em troca, você vai resolver o meu.
Melissa sentiu uma pontada de desconfiança.
— Que problema?
Carter abriu um leve sorriso — não de simpatia, mas de quem segura um trunfo.
— Eu preciso de uma esposa.
O silêncio entre eles foi tão denso que o som distante da chuva contra o vidro pareceu um trovão.
Melissa piscou, certa de que tinha ouvido errado.
— Isso é algum tipo de piada?
— Não. — Ele se levantou, dando a volta na mesa até ficar a poucos passos dela.
— É uma proposta. E, se for inteligente, vai ouvir até o fim.
Melissa olhou ao redor, procurando uma câmera escondida. Aquilo só podia ser algum tipo de pegadinha elaborada.
— Seja lá qual for esse tipo de brincadeira, saiba que não me interessa. — Sua voz era firme, cortante.
Ela se levantou, ajeitando a bolsa no ombro, pronta para sair dali.
— Sente-se. — A ordem veio baixa, mas carregada de autoridade, como se ele estivesse acostumado a ser obedecido.
Melissa girou a cabeça lentamente na direção dele, incrédula.
— Com todo respeito, senhor Black, eu tenho pacientes de verdade para atender.
— E eu tenho uma solução de verdade para o seu problema. — Ele cruzou os braços, o olhar inabalável.
— Se sair por aquela porta, vai passar as próximas semanas correndo atrás de dinheiro que não tem, enquanto o estado da sua mãe piora.
O impacto daquelas palavras foi como um soco seco no peito. Melissa deu um passo à frente, encarando-o.
— Não ouse falar da minha mãe.
— Então sente-se. — A voz dele não se alterou, mas havia algo naqueles olhos cinzentos, um peso, que a fez hesitar por um instante.
Melissa ficou parada, dividida entre o orgulho e a necessidade. Por fim, soltou um suspiro irritado e voltou a sentar, mantendo o corpo rígido como uma barra de ferro.
— Cinco minutos.
Carter voltou para trás da mesa, como se tivesse acabado de vencer uma batalha silenciosa.
— Ótimo. — Ele abriu novamente a pasta.
— Eu não acredito em coincidências, senhorita Ashford. Um ano atrás, você salvou uma vida que me é... importante. E agora, eu posso salvar a sua situação.
— Está dizendo que isso é... o quê? Uma retribuição?
— Não. — Ele fechou o arquivo.
— É um negócio. Você se casa comigo por um período determinado, cumpre as cláusulas do contrato, e em troca, sua mãe terá todo o tratamento que precisar.
Melissa soltou uma risada breve, sem humor.
— E qual seria a parte “vantajosa” para o senhor?
Carter apenas a observou, o silêncio preenchendo a sala. Quando respondeu, a voz era mais baixa e cortante.
— Você não precisa saber disso. Não ainda.
Melissa o encarou mortalmente, os olhos azuis faiscando.
— Tá pensando que eu sou quem? — Ela deu um passo à frente, o queixo erguido.
— Acha que vou mesmo cair nesse papinho? Duvido muito que um homem como você precise se casar. Muito menos com uma mulher como eu... simples, maluca e bagunçada.
Não havia humor algum na voz dela.
Carter sustentou o olhar por alguns segundos, como se estivesse analisando cada palavra, cada micro expressão. Então, falou, com a calma de quem já tinha a resposta antes mesmo de ouvir a pergunta.
— Justamente por isso.
Melissa franziu o cenho.
— Por isso o quê?
— Porque você não se encaixa no meu mundo. — Ele deu de ombros, como se fosse um fato óbvio.
— E isso a torna... útil.
Ela soltou um riso incrédulo.
— Útil. É assim que você define pessoas?
— Defino alianças. — Ele se inclinou levemente para a frente.
— Não quero alguém que me adore, nem que me entenda. Quero alguém que assine um contrato, cumpra seu papel e, quando o prazo acabar, siga a própria vida sem olhar para trás.
Melissa piscou lentamente, absorvendo cada palavra.
— Bom... nesse caso, fique tranquilo, senhor Black. Não vai ser difícil para mim não olhar para trás.
Ela se levantou de novo, decidida a ir embora.
Carter não tentou detê-la dessa vez. Apenas disse, com aquela voz baixa e firme que parecia gravar-se na pele.
— Pense bem, senhorita Ashford. A minha proposta tem prazo de validade. E a saúde da sua mãe também.
Melissa congelou por um segundo na porta, as mãos cerradas. Não olhou para trás. Saiu sem dizer mais nada.
Carter ficou sozinho, um leve traço de satisfação nos lábios. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela voltaria.
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