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Laços Inesperados

apresentação dos Personagens

Capítulo 01

SOPHIA O despertador insistente cortou o silêncio do minúsculo apartamento.Sophia esticou o braço para desligá-lo, esbarrando em uma pilha de livros de psicologia empilhados no criado-mudo. Seus olhos castanhos, ainda pesados de uma noite maldormida, percorreram aquele espaço modesto que mal podia pagar. A cidade grande era tão cheia de oportunidades quanto de solidão. Aos 22 anos, ela se via dividida entre as apostas altas de seu curso e a realidade cinza das contas que não paravam de chegar. Havia uma determinação quieta nela, uma resiliência moldada por ter que lutar sozinha. Hoje era dia de mais uma entrevista de emprego. "Babá", lia ela no anúncio impresso. Não era seu sonho, mas era um começo. Um passo necessário.

RICARDO Do outro lado da cidade,atrás de uma mesa de escritório impessoal e fria, Ricardo finalizava mais um e-mail antes mesmo do café da manhã. Trajar um terno italiano caro era sua armadura contra o mundo. Aos 35 anos, ele havia construído um império com suas próprias mãos, mas falhara redondamente em construir um lar. Seus olhos, de um azul intenso que outrora poderia ter sido caloroso, agora só refletiam a frieza das planilhas e dos negócios. A perda da esposa, Marina, dois anos antes, deixara um vazio silencioso e uma dor que ele se recusava a tocar. Trabalhar era mais fácil do que sentir. Sua secretária interrompeu-o lembrando-o da entrevista com a nova candidata a babá. Ele suspirou, irritado pela interrupção em sua rotina. Era apenas mais uma função a ser preenchida, mais um problema logístico a ser resolvido.

LAURA No andar de cima da mansão ampla e silenciosa,uma menina de cinco anos se encolhia sob a colcha. Laura tinha os mesmos olhos azuis do pai, mas onde os dele eram gelo, os dela eram um oceano de medo e tristeza. Desde que perdera a mãe, as palavras simplesmente fugiram. Elas estavam presas em algum lugar profundo dentro dela, junto com a memória daquele dia. Seu mundo era composto de silêncios, desenhos com lápis de cor e a presença constante, porém distante, de sua tia Clara. Ela observava o mundo de longe, como se estivesse vendo tudo de dentro de uma bolha, incapaz de tocar ou ser tocada. A ideia de uma nova babá a assustava. Todas eram temporárias. Todas iam embora.

CLARA Falando nela,Clara entrava no quarto da sobrinha com um sorriso que não alcançava seus olhos calculistas. "Hora de se vestir, querida. Seu pai marcou entrevista com outra moça." Ela ajustou a blusa impecável, sentindo o familiar peso do ciúme. Cuidadora não oficial de Laura desde a tragédia, ela via aquela casa e aquela família como sua segunda chance, sua propriedade. Qualquer ameaça a essa dinâmica, especialmente uma jovem e doce babá, era uma declaração de guerra não dita. Ela era a sombra nos corredores, a voz sussurrada que podia moldar opiniões com uma observação afiada disfarçada de preocupação.

ISABEL E em um elegante café no centro,Isabel revisava mentalmente seu plano. Linda, ambiciosa e acostumada a conseguir o que queria, ela via em Ricardo a consolidação de um status que ela almejava. Laura era apenas um obstáculo inconveniente em seu caminho. A notícia de uma nova babá a deixou em alerta. Ela não permitiria que ninguém atrapalhasse seus planos de reassumir seu lugar ao lado de Ricardo, seja quem for.

Cinco vidas, cinco universos particulares de dor, ambição e esperança. Seus caminhos estavam prestes a se colidir em uma conjunção de destino, sob o mesmo teto. Tudo começaria com uma simples entrevista de emprego.

A Entrevista

Capítulo 2: A Entrevista

O som dos pneus do ônibus chiando no asfalto molhado era a trilha sonora da ansiedade de Sophia. Ela apertou a pasta com seu currículo contra o peito, como se aquelas folhas de papel pudessem protegê-la do frio e do nervosismo. A chuva fina da tarde pintava a cidade de tons de cinza, e ela se perguntou, não pela primeira vez, o que estava fazendo ali, longe de tudo que era familiar.

O endereço anotado em um post-it levou-a até um bairro de ruas arborizadas e casas grandes, tão diferentes do seu estúdio minúsculo. Cada residência parecia uma fortaleza, imponente e fechada. A número 725 era a mais impressionante: linhas modernas, um jardim impecavelmente cuidado e uma aura de silêncio quase absoluto.

Antes que sua coragem a abandonasse, ela inspirou fundo e pressionou a campainha. O som pareceu ecoar por eternidades dentro da casa.

A porta foi aberta por uma mulher de uns trinta e poucos anos, vestindo um conjunto de athleisure que provavelmente custava mais que o aluguel de um mês de Sophia. Seus olhos fizeram um rápido—e pouco sutil—scan da candidata, da gola simples do seu vestido à sua pasta modestinha.

"Sim?" A voz foi tão polida quanto seu visual, mas sem calor.

"Boa tarde. Sou Sophia. Tenho uma entrevista marcada com o Sr. Ricardo para a vaga de babá."

A mulher—Clara, como Sophia viria a descobrir—franziu levemente o nariz, mas abriu a porta. "Entre. Ele está te esperando. Espero que você seja mais... durável que as outras."

O comentário pairou no ar enquanto Sophia era conduzida por um hall amplo e decorado com um minimalismo que beirava a frieza. Não havia fotos de família, nenhuma peça fora do lugar, nenhum sinal de que uma criança vivia ali.

Ricardo não a recebeu em uma sala de estar aconchegante, mas em um escritório. Ele estava de costas para a porta, falando ao telefone em um tom baixo e autoritário. Quando se virou, Sophia sentiu um nó se formar em seu estômago. Ele era mais jovem do que imaginara, mas sua expressão era dura, marcada por uma cansada seriedade. Seus olhos azuis a avaliaram com a mesma frieza com que ele devia analisar um relatório financeiro.

"Sr. Martins?", ela começou, tentando disfarçar o tremor em sua voz. "Sou Sophia Oliveira."

Ele terminou a ligação sem pressa e indicou a cadeira à sua frente. "Sente-se. Tenho exatamente vinte minutos."

A entrevista foi mais um interrogatório. Ele questionou suas qualificações, suas experiências anteriores (poucas, mas sinceras), sua disponibilidade ("Ilimitada", ela mentiu, pensando nas contas) e seus motivos ("Adoro crianças", ela disse, e dessa vez era a pura verdade).

No meio de uma pergunta sobre primeiros socorros, uma pequena sombra apareceu na porta entreaberta. Era uma menina, escondendo-se atrás da moldura, segurando um coelho de pelúcia desgastado. Seus enormes olhos azuis, iguais aos do pai, observavam Sophia com uma mistura de curiosidade e medo intenso.

Ricardo seguiu seu olhar e sua expressão endureceu ainda mais. "Laura, você deveria estar com sua tia."

A menina não respondeu. Não se moveu. Apenas fitou Sophia, que instintivamente ofereceu um pequeno sorriso, suave e sem pressão. Um sorriso que dizia 'Oi, tudo bem? Eu não vou te machucar.'

Laura não sorriu de volta. Em vez disso, ela se afastou da porta e desapareceu no corredor silencioso, deixando para trás uma impressão de profunda tristeza.

Ricardo voltou-se para Sophia, seu olhar mais impenetrável do que nunca. "Minha filha é... quieta. Não fala. Sua função seria cuidar de suas necessidades básicas, levá-la à escola, garantir sua segurança. Nada mais."

A frieza da descrição doeu em Sophia. Aquela não era uma criança; era uma tarefa a ser cumprida.

"Entendo", ela respondeu, mas algo dentro dela se rebelou contra aquela ideia.

Ao final dos vinte minutos exatos, Ricardo levantou-se. "A Sra. Clara mostrará a saída. Entraremos em contato."

Era uma demissão polida. Sophia sentiu o peso da decepção. Ela precisava daquele emprego.

Enquanto seguia Clara de volta para a porta, seus olhos vasculharam os arredores, esperando talvez ver a menina novamente. No degrau superior da escada, sentada e quase invisível na penumbra, estava Laura. Ela não estava mais segurando o coelho de pelúcia.

Em suas mãos, havia um giz de cera vermelho e um pequeno pedaço de papel.

E ela estava desenhando.

O Desafio

Capítulo 3: O Desafio

O primeiro dia oficial de Sophia como babá da pequena Laura começou com um silêncio que era quase físico. A mansão, mesmo sob a luz do sol da manhã, mantinha sua aura fria e impessoal. Clara a recebeu com um sorriso tenso e uma lista meticulosa de regras e horários, entregue com ares de quem transmitia um testamento sagrado.

"A Laura é uma criança de rotina", disse Clara, seu olhar perfurante. "Qualquer desvio... bem, você vai perceber. O almoço é às doze e quinze, não às doze e trinta. Ela não come a casca do pão. E, o mais importante, não force a barra. Ela não gosta de toques ou surpresas."

Sophia assentiu, segurando a lista como se fosse um mapa de um campo minado. Ela sentiu o peso da responsabilidade e da desconfiança de Clara, mas um olhar de relance para Laura, sentada imóvel no sofá da sala de estar, encheu-a de determinação. A menina parecia uma pintura triste, vestida perfeitamente, com os cabelos presos, segurando o coelho de pelúcia.

"Bom dia, Laura", Sophia cumprimentou, mantendo uma distância segura e usando um tom de voz suave e calmo.

Laura não respondeu. Nem sequer ergueu os olhos. Seu olhar estava fixo na janela, como se esperasse por alguém que sabia que nunca viria.

As horas se arrastaram em uma coreografia estranha e silenciosa. Sophia tentou seguir a rotina à risca, mas cada tentativa de interação—oferecer um brinquedo, sugerir um desenho, ler uma história—era recebida com um vazio absoluto. A menina comia quando servida, bebia quando a água era colocada à sua frente, mas era como se sua essência, sua alma, estivesse em outro lugar. Era desanimador.

No final da tarde, uma ideia surgiu na mente de Sophia. Ela se lembrou do giz de cera que vira no dia da entrevista. Sem dizer uma palavra, pegou uma grande folha de papel em branco da pasta que trouxera e um punhado de giz de cera de várias cores. Sentou-se no chão, a uma boa distância de Laura, e começou a desenhar. Não olhava para a menina, não a pressionava. Apenas desenhava.

Ela desenhou um sol grande e amarelo no canto superior esquerdo. Depois, algumas nuvens fofas e redondas. Um pássaro desengonçado voando em direção a elas.

Por longos minutos, nada aconteceu. Apenas o som suave do giz raspando no papel. Sophia já começava a achar que a ideia tinha falhado quando, pela periferia da visão, percebeu um movimento mínimo.

Laura havia se virado. Seus olhos, antes vidrados, agora estavam fixos no papel que ganhava cores. Ela observava, imóvel, mas com uma centelha de curiosidade que não estava lá antes.

Sophia continuou, desenhando agora uma casa simples, com uma porta retangular e uma janela quadrada. Sua mão escolheu um giz de cera vermelho, da mesma cor que Laura segurava antes.

Foi então que a menina se moveu. Lentamente, como se cada articulação doísse, ela se levantou do sofá. Seus passos foram quase inaudíveis no carpete espesso. Ela parou a alguns centímetros de Sophia, ainda segurando seu coelho de pelúcia.

O coração de Sophia bateu mais rápido, mas ela não fez nenhum movimento brusco. Apenas continuou a colorir o telhado da casa.

E então, Laura se ajoelhou. Seus pequenos dedos, pálidos e finos, pairaram sobre a caixa de giz de cera. Eles hesitaram por um segundo que pareceu uma eternidade, tremendo levemente.

Sophia prendeu a respiração.

Os dedos de Laura se fecharam. Eles não escolheram o vermelho. Escolheram um azul profundo, quase da cor dos olhos dela—e do pai.

Sem olhar para Sophia, sem fazer um som, a menina esticou o braço e, com uma linha trêmula e hesitante, começou a desenhar uma figura pequena e curvada ao lado da porta da casa.

Era uma menina. De cabelos longos.

E ao seu lado, um pequeno coelho.

Sophia não sorriu, não comemorou. Por dentro, however, uma onda de pura e triunfante emoção tomou conta dela. Ela havia conseguido. Havia aberto uma fresta, por menor que fosse.

Mas assim que a ponta do giz azul tocou o papel para fazer o olho do coelho, o som pesado da porta da frente sendo aberta ecoou pela casa.

Ricardo estava em casa mais cedo.

A mão de Laura congelou no ar. O giz azul caiu no carpete, rolando silenciosamente. A centelha de vida em seus olhos se apagou instantaneamente, substituída pelo medo e pelo recolhimento familiar. Ela se levantou de um salto, agarrou seu coelho com força e fugiu em direção às escadas, desaparecendo de vista antes mesmo de Ricardo entrar na sala.

Ele surgiu no umbral, terno impecável, expressão cansada. Seu olhar percorreu a sala, pousou em Sophia sentada no chão e na folha de papel cheia de cores—e na figura solitária da menina de cabelos longos, inacabada.

"Tudo sob controle aqui?", ele perguntou, sua voz um misto de cansaço e formalidade.

Sophia olhou para o giz azul abandonado no chão, depois para a escada vazia por onde Laura fugira.

A fresta havia se fechado.

"Sim, senhor", ela respondeu, sua voz um pouco mais áspera do que gostaria. "Tudo sob controle."

Mas nada estava. E ela mal podia esperar para tentar abri-la novamente.

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