Nunca imaginei que a vida pudesse mudar com tanta violência em tão pouco tempo.
Sempre pensei que o destino fosse uma coisa que a gente moldava aos poucos, como argila entre os dedos. Mas não. Às vezes ele escapa. Escorrega. Cai no chão e se parte — e você nem tem tempo de juntar os cacos antes de alguém colocar você num carro e te levar para longe da única coisa que você conhecia como lar.
Foi assim que tudo começou.
Com o silêncio de um hospital. Com uma mala feita às pressas. Com uma casa que não era mais minha.
Com um abraço frio de um homem que dizia ser meu novo responsável — mas que não sabia nem a cor da minha escova de dentes.
A verdade é que eu não escolhi estar ali.
Não escolhi os Calderon.
Eles chegaram como um pacote completo. Uma família com sorrisos treinados, rotinas estabelecidas e regras silenciosas. Um lar grande demais, limpo demais, perfeito demais. E no meio disso tudo… eu.
A intrusa.
A peça que não se encaixava.
Demorei a entender que essa história não era sobre a família perfeita que me acolheu. Nem sobre o luto que eu arrastava como uma corrente invisível.
Essa história é sobre o que vem depois.
Sobre o espaço entre o que fomos e o que ainda podemos ser.
Sobre o estranho momento em que a gente se perde — e, sem perceber, começa a se encontrar.
E, talvez… só talvez…
Seja também sobre aprender a amar quem a gente nunca imaginou chamar de família.
Eu observei a janela do carro durante quase todo o caminho, como se aquele vidro embaçado pudesse me devolver algum sentido. Cada paisagem que passava se misturava às minhas lembranças, e em algum momento, tudo começou a parecer borrado — como as últimas semanas da minha vida. Tudo rápido demais, tudo fora do meu controle.
A estrada era longa e serpenteava entre colinas e campos verdes, como se zombasse do que eu sentia. Era bonita, admito. Mas a beleza não serve de consolo quando o peito está oco.
Minha mochila estava jogada ao meu lado, aberta. Metade das minhas coisas ainda estava dentro dela, a outra metade... eu nem sabia mais onde tinha ido parar. Depois que minha mãe se foi, ninguém me perguntou o que eu queria. Não houve escolha. Houve apenas decisões tomadas por advogados, um juiz, e um homem chamado Ernesto Calderon — que, até dois meses atrás, era apenas o novo marido da minha mãe, alguém com quem ela trocava e-mails e sorrisos discretos.
Ele não era meu pai.
Nem próximo disso.
Mas agora... era tudo o que eu tinha.
— Chegando, — disse ele, sem tirar os olhos da estrada.
Balancei a cabeça em silêncio, sem conseguir disfarçar a rigidez nos meus ombros. Ele tentou puxar conversa algumas vezes durante o trajeto, mas se cansou da minha indiferença. Eu não estava pronta para conversas. Talvez nunca estivesse.
Assim que viramos uma curva, avistei a casa. Era… enorme. Dois andares, janelas simétricas, uma varanda com vasos de plantas perfeitamente alinhados. Parecia saída de um catálogo imobiliário.
Nada nela parecia acolhedor.
Ernesto estacionou com cuidado e desligou o carro.
— Vai dar tudo certo, Valentina. Eu sei que isso é difícil.
— Não sabe, — rebati, finalmente. Minhas palavras saíram mais afiadas do que eu pretendia.
Ele suspirou, mas não respondeu.
A porta da frente se abriu antes que eu saísse do carro. Cinco rostos curiosos se empilharam no batente como se estivessem em fila para me analisar. Eu não sabia quem era quem, só sabia que todos eram filhos dele — meus “meio-irmãos”, segundo os papéis oficiais.
Meio-irmãos. Meio desconhecidos. Meio tudo.
Peguei minha mochila, respirei fundo e caminhei em direção à casa. Cada passo parecia mais pesado que o anterior. O ar ali tinha outro cheiro. Outro ritmo. Era como se eu tivesse atravessado para um universo paralelo.
A primeira a se aproximar foi uma menina ruiva, uns dois anos mais nova do que eu. Ela sorriu, hesitante, como se estivesse tentando ser gentil sem invadir meu espaço.
— Oi, eu sou a Bianca. Bem-vinda.
Não respondi de imediato. Só forcei um aceno com a cabeça e continuei andando. Os outros ficaram parados, observando. Um dos garotos, alto, de expressão fechada e braços cruzados, parecia particularmente irritado com a minha chegada. Ele não sorriu. Não se moveu. Só me encarou com olhos que diziam: “Você não pertence a isso aqui.”
Eu concordava com ele.
Ernesto me conduziu até o quarto que seria “meu”. Uma suíte no segundo andar, com cama arrumada, cortinas novas e uma escrivaninha com um caderno em cima, como se alguém estivesse tentando prever o que uma garota da minha idade gostaria.
— Compramos umas coisas novas pra você. Achamos que ia gostar.
— Não precisava, — murmurei, largando a mochila no chão.
— A porta fica trancada por dentro. Se quiser privacidade, fique à vontade. O jantar é às sete.
Ele hesitou antes de sair. Acho que queria dizer algo, mas desistiu.
Quando fiquei sozinha, sentei na beira da cama e fiquei ali. Olhando para o nada. O silêncio da casa era desconfortável. Não porque fosse quieta demais — havia sons vindos do andar de baixo, vozes, passos, uma risada distante —, mas porque era um silêncio que me excluía. Um silêncio que me dizia: "Você não faz parte disso."
Olhei para o caderno na escrivaninha. Abri a capa. Era novo, sem linhas, com folhas brancas e cheias de possibilidades que eu não queria explorar.
Peguei uma caneta da mochila e escrevi na primeira página:
“Essa não é minha casa.
Essa não é minha família.
Isso não é minha vida.
Ainda não.”
Depois fechei o caderno.
E chorei, pela primeira vez desde o enterro da minha mãe.
Não foi um choro barulhento ou dramático. Foi silencioso, cansado, e amargo. Um choro que só se permite quando você já não tem mais força para segurar nada.
A noite chegou devagar. Eu não desci para o jantar. Ninguém veio me chamar.
E, por algum motivo, isso doeu mais do que se tivessem batido na porta com um prato de comida.
Acordei com o som de vozes no andar de baixo. Por um momento, não reconheci o teto branco acima de mim, nem o lençol macio que cobria meu corpo. Tive um lapso de confusão — como se minha mente tivesse me levado de volta para a casa antiga, onde minha mãe ainda cantava baixinho na cozinha e o cheiro de café tomava conta das manhãs.
Mas não havia cheiro de café.
Não havia canto suave.
Só uma casa estranha. E uma garota estranha dentro dela: eu.
O relógio na parede marcava 8h12.
Me levantei devagar, o corpo ainda pesado pelo choro da noite anterior. Atravessei o quarto até a janela. Do lado de fora, o jardim da frente parecia recém-podado. Tudo ali era excessivamente organizado, como se qualquer bagunça fosse punida.
Peguei uma muda de roupa da mochila e fui até o banheiro da suíte. A água quente do chuveiro me trouxe algum alívio, como se quisesse apagar a realidade por alguns instantes. Vesti um jeans simples e uma camiseta preta, sem me preocupar com aparência. Não estava tentando impressionar ninguém. Nem queria.
Desci as escadas em silêncio, tentando não chamar atenção. Ao virar o corredor, dei de cara com uma garota — uns 16 anos, cabelo preso em um coque bagunçado, segurando uma tigela de cereal.
Ela me olhou por um segundo, como se estivesse tentando identificar se eu era real.
— Ah, oi... bom dia. — Ela mordeu o lábio, como se estivesse sem saber o que dizer. — Você dormiu bem?
— Sim. — Menti.
— Sou a Marina. Irmã do meio. Tem mais gente espalhada por aí, mas... cada um no seu mundo. — Ela sorriu de leve. — Quer comer alguma coisa?
— Não tô com fome, obrigada.
Ela assentiu, compreensiva, e voltou a se sentar no balcão da cozinha.
Andei pela casa com passos hesitantes, como quem pisa em território alheio. Tudo ali parecia ter dono: os móveis, as plantas, até o cheiro. Eu era a única peça solta.
Foi quando o vi.
Encostado no batente da porta da sala de estar, braços cruzados, olhar firme. Alto, postura imponente, cabelos escuros, e uma expressão que deixava claro que ele não estava disposto a ser simpático.
— Você fugiu do jantar ontem. — A voz dele era direta, sem suavidade.
— Não achei que alguém fosse sentir falta. — Cruzei os braços também, numa tentativa tola de igualar a tensão.
— A questão não é essa. A gente tem regras aqui. E uma delas é: ninguém janta sozinho.
— Engraçado... ninguém foi me buscar. — Sorri de canto, amarga.
— Porque não somos babás. — Ele deu um passo à frente. — Você não é uma criança.
— Não. E também não sou parte disso. — Dei de ombros. — Só estou aqui porque alguém achou que era o certo.
Ele me encarou por longos segundos. Eu podia ver nos olhos dele a mistura de julgamento e algo mais — talvez pena? Raiva? Não consegui decifrar.
— Eu sou o Lorenzo. — Disse por fim. — Sou o mais velho. Esse lugar pode parecer perfeito, mas ele só funciona porque todo mundo aqui respeita os limites. Você quer ficar na sua? Beleza. Mas não atrapalha quem já tá aqui.
— Pode deixar. Não pretendo tocar em nada.
— Ótimo.
Ele virou as costas e subiu as escadas, como se aquela conversa tivesse sido apenas um item riscado na lista de afazeres.
Fiquei ali, parada no meio da sala, com o coração acelerado. A primeira impressão que tive dele ontem se confirmou: Lorenzo Calderon era feito de concreto. Frio, rígido e impossível de atravessar.
Voltei para a cozinha. Marina ainda estava lá, agora no celular. Quando percebeu minha presença, ergueu o olhar com um sorriso tímido.
— Desculpa por ele. O Lorenzo é... assim mesmo.
— Não precisa pedir desculpa por ele. Eu já conheci gente pior.
Ela riu.
— Talvez. Mas com o tempo, você se acostuma.
— Não estou planejando ficar tempo suficiente pra isso.
Ela me olhou com atenção, mas não insistiu. Terminou o cereal e deixou a tigela na pia.
— Vai sair hoje? — perguntou, pegando uma mochila que estava pendurada na cadeira.
— Sair? Pra onde?
— Sei lá. Dar uma volta. Conhecer a cidade. Serra Dourada tem uns lugares legais.
— Acho que vou ficar por aqui mesmo.
Ela assentiu e foi embora. Fiquei sozinha outra vez.
Voltei para o meu quarto e me sentei à escrivaninha. O caderno ainda estava ali, com a capa fechada. Abri de novo, li a frase que havia escrito ontem. Pensei em riscar. Pensei em escrever outra coisa.
Mas não escrevi nada.
Em vez disso, me levantei, abri a janela e fiquei ali. O vento entrava devagar, bagunçando meus cabelos. Do lado de fora, ouvi vozes dos outros irmãos. Risadas, barulhos de passos correndo no quintal.
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