O dia mal tinha clareado e eu já estava de pé. Vesti um vestido branco de algodão, simples, fresco, e soltei o cabelo liso, que caiu pesado até a cintura. Olhei no espelho: bonita, sim. Mas eu não vivia de beleza. O que me mantinha viva era respeito.
Antes de sair, passei no quarto do Lorenzo. Ele ainda dormia, pequeno, perdido nos lençóis. Beijei a testa dele e ajeitei os cachinhos bagunçados.
— Dorme tranquilo, meu príncipe. Mamãe tá no corre, mas já volta.
Desci as escadas da mansão até a garagem. O carro preto já estava lá, mas ninguém no volante. Eu nunca gostei de motorista. Gosto de ter o controle nas mãos, de sentir a direção, de saber pra onde vou e como chego.
Entrei, bati a porta e liguei o motor. O ronco do carro ecoou nas vielas estreitas do Vidigal. À medida que eu descia, gente me cumprimentava.
— Bom dia, Briana!
— Bom dia, dona!
Eu respondia a todos, olhando nos olhos, sorrindo de leve. Respeito não é só medo, é também saber dar valor a quem segura seu território.
Cheguei na boca, no QG. O movimento já tava a mil. Gente contando dinheiro, rádio chiando, cheiro forte de erva queimando. Assim que estacionei, todos ajeitaram a postura. Não porque eu mandei, mas porque minha presença pedia isso.
— Até que enfim, irmã — ouvi a voz do Lucca, meu irmão mais novo, vindo ao meu encontro.
Ele tinha só 20 anos, mas já carregava uma maturidade rara. Era meu braço direito, frio, calculista, e eu sabia que podia confiar nele de olhos fechados.
— Já sabe dos dois na esquina da minha casa? — perguntei, indo direto ao assunto.
Ele assentiu com a cabeça.
— Tô em cima. Vou puxar informação hoje ainda.
Sorri de leve. Com Lucca eu não precisava repetir as coisas duas vezes.
Foi quando Luiza apareceu, com uma mochila jogada no ombro e sorriso aberto.
— Rainha! — ela disse, abrindo os braços como se fosse me abraçar, mas parou no meio do caminho, rindo.
— Já começou cedo? — perguntei, puxando uma cadeira de plástico e me sentando.
— Desde a madruga. O corre tá limpo, dinheiro rodou bem, ninguém andou fazendo gracinha. — ela largou a mochila em cima da mesa e se inclinou pra frente. — Mas, Bri… tem muito olho grande.
Lucca completou, frio:
— Esses cochichos na esquina não são à toa. É teste.
Cruzei as pernas debaixo do vestido, ajeitando o cabelo para trás. O silêncio que caiu no QG era pesado. Todo mundo ali esperava o que eu ia dizer.
— Então vamos fazer assim — falei firme, olhando pros dois. — Quero nomes, quero rostos. E quero saber quem tá tentando cutucar o que é nosso.
Luiza sorriu, aquele sorriso maroto de quem adora missão.
— Deixa comigo. Hoje mesmo trago resposta.
Lucca só assentiu. Ele não era de falar muito, mas a lealdade dele dizia tudo no olhar.
Levantei-me, ajeitei o vestido branco e caminhei até a varanda do QG, de onde dava pra ver quase todo o morro. Cruzei os braços e falei, sem precisar levantar a voz:
— Todo mundo sabe… esse morro tem rainha. E rainha nenhuma perde o trono.
O silêncio que se seguiu era o tipo de respeito que não se compra. Se conquista.
Voltei pra mansão ainda cedo, depois da passada no QG. Lorenzo já tava acordado, brincando na sala com os carrinhos que eu trouxe da última viagem. Sentei no sofá, tirei os saltos e deixei ele se jogar no meu colo.
— Mamãe, olha! — ele empurrava o carrinho vermelho pelo braço do sofá.
Sorri, beijo na testa dele.
— Tá voando, meu príncipe. Igual você quando crescer.
Mas enquanto eu ria com ele, a mente não parava. Aqueles dois na esquina não saíam da minha cabeça. Gente parada olhando minha casa nunca é coincidência.
Minutos depois, Lucca entrou sem bater. Ele nunca batia.
— Já puxei quem são. — falou, seco, jogando duas fotos impressas na mesa de centro.
Peguei. Dois moleques, 18 ou 19 anos no máximo. Caras novas, mas o olhar já carregado de malícia.
— São do Pavãozinho. — Lucca completou. — Tão sondando. Não entraram armados, mas vieram na maldade.
Lorenzo olhava curioso pras fotos, sem entender nada. Eu tirei rápido da frente dele e levantei.
— Onde tão agora?
— Continuam na esquina, de frente pro bar do Zeca.
Respirei fundo, peguei a chave do carro.
— Então vamos lá.
Lucca arregalou os olhos.
— Você quer ir pessoalmente?
Olhei pra ele com calma, ajeitando o vestido branco de algodão.
— Ninguém fica na porta da minha casa como se fosse terreno livre.
Deixei Lorenzo com a babá e desci. Dirigi eu mesma. O motor do carro rugia pelas ruas estreitas, chamando atenção de todo mundo que me via passar. Olhares se cruzavam, cumprimentos rápidos, aquele respeito mudo que só quem conhece sabe.
Quando dobrei a esquina do bar do Zeca, os dois estavam lá, encostados no poste, rindo baixo. Quando me viram, congelaram.
Estacionei o carro de frente pra eles, desliguei o motor devagar. Saí com calma, sem pressa, como quem não precisa provar nada. O vestido balançava com o vento, e eu só levei um cigarro à boca antes de acendê-lo.
— Vocês moram aqui? — perguntei, soltando a fumaça.
Um deles tentou se justificar:
— Não, senhora… a gente só tava…
Levantei a mão, cortando a fala.
— Então explica. O que dois moleques do Pavãozinho tão fazendo na porta da minha casa?
Silêncio. O olhar dos dois tremia. Eu dei mais uma tragada e encarei direto.
— Aqui não é lugar de turista. Aqui não é lugar de curioso. Esse morro tem dona, e vocês tão pisando em terreno errado.
Lucca se aproximou, postura dura, mas eu levantei a mão de novo.
— Não precisa. Eles vão falar. — olhei nos olhos dos dois. — Vão falar agora.
O mais novo gaguejou:
— Foi… foi só curiosidade, dona. Só isso. A gente ouviu falar da senhora, queria ver se era verdade.
Sorri de canto.
— Pois agora vocês sabem. É verdade.
Soltei a fumaça devagar, dei dois passos pra frente e falei num tom baixo, mas firme:
— Esse é o primeiro e último aviso. Da próxima vez que eu ver cara de vocês aqui, não vai ter conversa.
Eles assentiram rápido, nervosos. Eu apaguei o cigarro na parede do bar e voltei pro carro.
Antes de entrar, olhei de novo, fria:
— Agora some daqui.
Os dois dispararam morro abaixo sem olhar pra trás.
Lucca abriu a porta do passageiro e entrou.
— Você podia ter mandado apagar os dois logo.
Respirei fundo, ligando o carro.
— Não, irmão. Sangue é a última carta que eu baixo. Primeiro eu ensino respeito. Se não aprenderem… aí sim, não sobra escolha.
Dirigi de volta pra mansão, a cabeça erguida. E no fundo, eu sabia: aquele não seria o último teste.
A manhã começou clara, mas com um peso no ar que só o Vidigal sabe carregar. Eu estava na varanda da mansão, vestindo um vestido azul claro de algodão, simples, leve, mas que caía com elegância sobre o corpo. O vento balançava o tecido e meu cabelo preto liso, lembrando que poder e presença não precisam de ostentação explícita.
Lorenzo brincava no quarto com blocos de montar. Sentei na poltrona da varanda, observando o movimento lá embaixo, respirando fundo. Olhares atentos, motos subindo, vendedores iniciando o dia. Nada escapava da minha visão.
— Chegou recado do Pavãozinho. Não é moleque — Lucca disse, aparecendo atrás de mim, postura firme, olhar calculista.
Meu coração não tremeu. Apenas engoli o café e encarei a rua.
— Quem manda? — perguntei, calma, controlada.
Ele entregou o bilhete. Nome no final: Marcos “Marajá” Silva. Um peso só de ler. Marajá não vinha sozinho, e ninguém que merecesse respeito mexia no Vidigal sem consequência.
Olhei para Lorenzo, ainda distraído com os blocos. Beijei a testa dele.
— Fica aqui, meu príncipe. Mamãe resolve e volta.
Luiza chegou com a mochila jogada no ombro, sorriso atento:
— Marajá não veio só. Trouxe Matheus. Dois homens que não titubeiam.
— Então vamos com cabeça — falei, respirando fundo. — Lucca, separa a galera de confiança. Luiza, pega informação das ruas, câmera, rádio, tudo. Quero saber quem chega e onde.
A chave do carro já estava na mão. Dirigir é meu jeito de sentir controle. O motor rugiu pelas ruas estreitas, e a comunidade se calou diante da presença da rainha.
Chegamos à boca/QG. O clima estava carregado. Todos sabiam que homens grandes do Pavãozinho significam perigo.
— Eles vêm pela ladeira do depósito antigo — disse um dos nossos. — Dois carros, prata e preto.
— Informação confirmada — Luiza completou. — Vieram discutir divisão. Querem fatia do que é nosso.
Cruzei os braços. “Dividir”? Isso é coisa de covarde.
— Aqui não se divide história nem respeito — falei, firme. — Se querem teste, façam no território de vocês.
Quando os carros chegaram, estacionei em frente. Desci devagar, vestido azul balançando, olhar direto. O silêncio tomou conta.
Do carro prata desceram dois homens: Marajá, alto, imponente, olhar calculista; Matheus, compacto, tatuagens saltando, energia pesada. Eles andavam como se já tivessem passado por sangue e morte.
— Briana — começou Marajá, voz baixa, controlada. — Vim por paz. Esse papo de “rainha” atrapalha o comércio. Proponho parceria.
O sorriso dele tinha intenções escondidas. Olhei pra Matheus, avaliando cada movimento.
— Parceria se conquista com palavra e respeito — falei, controlada. — Aqui não se divide nada.
Matheus deu um passo à frente. Lucca segurou o braço dele, firme, fazendo o homem recuar. Não houve gritaria. Só presença e autoridade.
— Vocês têm uma hora — disse Lucca. — Saiam da nossa área e nunca mais apareçam assim.
Marajá olhou, entendeu a firmeza, e recuou.
— Uma hora — disse ele, mas o tom já era de aviso, não de ameaça.
Os carros desapareceram ladeira abaixo. O silêncio reinou. Não era vitória, era aviso: homem grande não esquece, só recalcula.
No carro, voltando pra mansão, pensei no Lorenzo, no peso da responsabilidade, no equilíbrio entre mãe e rainha. Chegando, Luiza e Lucca já planejavam próximos passos: reforçar aliados, monitorar o Pavãozinho, evitar surpresa.
Eu desci na varanda, olhei pro morro e respirei fundo.
— Aqui não é só poder, é estratégia. Sangue é última carta. Sempre.
O vestido azul balançava com o vento. A imagem era de calma e força ao mesmo tempo: mãe, mulher, rainha. E ninguém, nem Marajá, esqueceria disso tão cedo.
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