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VÍNCULO PROIBIDO

Capítulo 1 — O pacto de sangue

A neve escondia o sangue por algumas horas, mas nunca o apagava.

Jay Volkov sabia disso desde criança.

O galpão de Moscou cheirava a ferro e pólvora. Três homens estavam amarrados, dois ainda vivos. Jay limpou a lâmina em um pano branco que agora já não era tão branco assim. Só então guardou a faca dentro do sobretudo escuro.

Oleg, seu homem de confiança, aproximou-se.

— O Conselho está esperando o seu sinal. O emissário do Win já chegou a Bangkok. Querem saber se vamos ou se acabamos com isso aqui mesmo.

Jay ajustou a manga da camisa, revelando por um instante o braço tatuado de dragões e nós eslavos. A respiração dele era calma, mas o olhar frio cortava como gelo.

— Vamos. — A voz era firme, sem emoção. — Guerra rende dinheiro, mas a paz assina cheques maiores.

Oleg assentiu em silêncio. Jay caminhou até a porta do galpão e saiu para o frio. As botas esmagaram a neve com passos pesados. Moscou brilhava ao longe, mas Jay sabia que por baixo das luzes havia apenas monstros de terno.

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Do outro lado do mundo, em Bangkok, o calor grudava na pele.

Win caminhava pelo porão de um antigo mercado abandonado, agora transformado em sala de acerto de contas. O ventilador girava preguiçoso no teto, espalhando o cheiro de suor e sangue.

Ton, seu braço direito e amigo de infância, falou baixo:

— Volkov aceitou vir. Não confio nisso.

Win limpou o sangue da mão com um pano, sem pressa.

— Você nunca confia em nada, Ton. — A voz dele carregava ironia. — E eu não confio em emissários. Quero olhar Jay nos olhos.

Ton cerrou o maxilar.

— Ele vai querer ditar termos, humilhar você.

Win riu curto, mas o riso não tinha humor.

— Se ele quiser me humilhar, vai ter que me enterrar junto.

O nome da irmã atravessou sua mente como uma lâmina. Nin. A lembrança dela era a única coisa capaz de suavizar por um instante o peso do mundo. Mas logo veio a raiva: saber que ela estava prestes a ser oferecida como moeda num jogo de poder.

— Prepare o hotel do rio — ordenou Win, virando-se para Ton. — Lugar neutro o bastante para que ninguém exploda nada.

Ton assentiu. Mas no fundo dos olhos, havia preocupação.

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O hotel escolhido era luxuoso, com vista para o rio Chao Phraya. Luzes refletiam na água escura, desenhando um caminho cintilante. O saguão era de mármore e silêncio tenso.

Jay foi o primeiro a chegar. Entrou vestindo um terno negro impecável, o olhar cinzento frio, acompanhado de Oleg e mais quatro homens. Caminhava devagar, como um predador que já domina o território.

Logo depois, Win atravessou as portas de vidro. Camisa preta parcialmente aberta, revelando o início de sua tatuagem nas costas. Olhos escuros e faiscantes, expressão carregada de orgulho. Ton vinha logo atrás.

O encontro dos dois foi um choque silencioso.

Win encarou Jay de cima a baixo e falou com desprezo:

— Volkov.

Jay arqueou uma sobrancelha, a boca se curvando em um meio sorriso frio.

— Win.

Eles se mediram por alguns segundos que pareceram minutos. O ambiente ao redor parecia desaparecer, restando apenas a tensão entre eles.

Um funcionário do hotel, visivelmente nervoso, conduziu os grupos até uma sala reservada no último andar. Dentro, havia uma mesa longa, cortinas pesadas e nenhuma decoração além de garrafas de água e chá.

O advogado mediador pigarreou, tentando soar firme.

— Senhores, agradeço a presença. Vamos discutir os termos de paz.

Jay sentou-se à mesa, apoiando o braço tatuado de forma visível.

— A trégua interessa apenas a quem perde. Eu não perco.

Win permaneceu de pé, as mãos nos bolsos, a voz carregada de deboche.

— Estranho. Tenho visto muitos russos ocupando cemitérios ultimamente. Não parece vitória.

Ton avançou meio passo, pronto para reagir, mas Win ergueu a mão em aviso.

O advogado abriu a pasta.

— O acordo proposto prevê cessar as hostilidades por seis meses, renováveis. Rotas compartilhadas em partes iguais. E, para selar o pacto... o casamento do senhor Jay Volkov com a irmã do senhor Win.

O silêncio foi cortante.

Jay estreitou os olhos, fitando o rival.

— Então é isso? Você vai me dar sua irmã para me amarrar?

Win estreitou o sorriso, o olhar queimando.

— Eu não dou nada. Estou apenas fazendo você engolir o próprio orgulho.

Jay inclinou-se para frente, aproximando-se da mesa.

— Eu protejo o que é meu.

Win respondeu de imediato, a voz como um rugido contido:

— E eu não entrego nada do que é meu. Nem quando digo que dou.

A tensão era tanta que Oleg e Ton colocaram discretamente as mãos sobre as armas.

O advogado interveio rápido.

— Talvez possamos conhecer a senhora Nicha. Assim confirmamos a seriedade do acordo.

A porta se abriu minutos depois. Nin entrou, usando um vestido preto elegante, cabelos presos, postura firme. Olhou para o irmão primeiro, recebendo um breve aceno, antes de encarar Jay.

— Senhor Volkov — disse ela, com a voz firme apesar da situação.

Jay inclinou levemente a cabeça, olhando-a nos olhos.

— Nin. — Ele usou o apelido de imediato, testando limites.

Win endureceu a expressão, quase perdendo o controle.

Nin sustentou o olhar.

— Não sou uma ponte. Se tentarem me atravessar, eu quebro no meio.

O silêncio que seguiu foi pesado. Jay, pela primeira vez, pareceu conter um sorriso.

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As negociações avançaram durante horas, cheias de provocações.

Quando restava apenas a última cláusula, Jay perguntou em tom frio:

— O casamento. Quando.

Win respondeu sem hesitar:

— Trinta dias. Aqui, em Bangkok.

Jay assinou o documento, o traço firme.

— Aqui, então.

O advogado colocou duas pequenas caixas sobre a mesa. Dentro, anéis simples de platina.

— Tradição.

Win pegou o dele sem emoção. Jay fez o mesmo. Os dois se levantaram, próximos demais, como se o ar entre eles fosse pólvora prestes a explodir.

Jay falou baixo, perto do rosto do rival:

— Um lembrete: o que é meu, eu protejo.

Win respondeu no mesmo tom, os olhos faiscando.

— Um aviso: o que é meu, eu não entrego. Nem quando dou.

O advogado pigarreou, quebrando o feitiço.

— Está selado.

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Na saída, Nin abraçou o irmão em silêncio.

Depois olhou para Jay uma última vez.

— Se alguém tentar me usar nesse jogo, eu mesma escolherei quem queimar primeiro.

Jay inclinou a cabeça, como quem aprova.

— Bom saber.

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Quando deixaram o hotel, Win murmurou a Ton:

— Ele acha que vai me dobrar. Mas se encostar um dedo errado na minha irmã, eu arranco o braço inteiro.

No carro, Jay comentou com Oleg:

— Ele vai queimar a própria casa para não me deixar ver as paredes.

Oleg perguntou:

— E você acredita nele?

Jay olhou para a cidade iluminada pelo rio e respondeu com frieza:

— Acredito no que vi. E vi um homem que vai quebrar... ou me quebrar.

A noite seguiu densa, carregada de promessas de guerra e de algo ainda mais perigoso.

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Capítulo 2 — Território inimigo

O carro de luxo preto atravessou os portões altos da mansão da família de Win. Guardas armados alinhavam-se em posição, os olhos desconfiados acompanhando cada movimento dos homens de Jay. O clima era de guerra, mesmo diante de uma trégua assinada.

Dentro do veículo, Jay observava a arquitetura imponente do casarão. Colunas altas, lanternas orientais iluminando o caminho, estátuas de leões guardando a entrada. Ele sorriu de canto.

— Belo teatro. — O tom era baixo, mas carregado de ironia.

Oleg, sentado ao lado, comentou em russo:

— Eles querem mostrar poder, mas parecem nervosos.

Jay ajeitou o paletó.

— Nervosos, Oleg, são sempre os mais perigosos.

O carro parou diante da entrada principal. Win já estava ali, esperando, braços cruzados, a tatuagem do dragão aparecendo discretamente pelo decote da camisa. O olhar era puro veneno.

— Bem-vindo à minha casa, Volkov — disse Win, sem esforço para soar cordial.

Jay saiu do carro com calma, ajustando as mangas da camisa. Sua presença era um desafio em si.

— Casa bonita. — Ele passou os olhos pelo lugar. — Espero que tenha espaço para todos nós.

Win apertou a mandíbula.

— Você não está em Moscou. Aqui não dita as regras.

Jay deu um passo à frente, diminuindo a distância, e respondeu em tom baixo, frio:

— Eu nunca preciso estar em Moscou para ditar regras.

O silêncio pesou entre eles. Ton, ao lado de Win, levou a mão discretamente ao coldre, mas um olhar rápido de Win bastou para contê-lo.

Nin apareceu no topo da escadaria. O vestido branco simples contrastava com a tensão ao redor. Ela desceu com passos firmes, tentando transmitir calma.

— Senhor Volkov — disse, inclinando levemente a cabeça. — Espero que a viagem tenha sido tranquila.

Jay sustentou o olhar dela por alguns segundos.

— Tranquila, até certo ponto. — Ele então olhou para Win. — Sua irmã sabe se portar melhor do que você.

Win explodiu imediatamente.

— Cuidado com a língua.

Jay arqueou uma sobrancelha.

— Só falo o que vejo.

Nin suspirou, colocando-se entre os dois.

— Já basta. — O tom dela era firme. — Esse pacto existe para cessar sangue, não para começar outro dentro da minha casa.

Jay desviou o olhar para ela, curioso.

— Vejo que alguém aqui tem bom senso.

Win fechou os punhos, mas conteve a raiva.

— Vamos entrar. — A voz dele era cortada, seca. — Antes que eu mude de ideia sobre essa trégua.

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A sala principal da mansão era um espetáculo de luxo: piso de madeira brilhante, grandes janelas com vista para os jardins, quadros antigos de guerreiros tailandeses. Jay caminhou pelo ambiente como quem inspeciona território conquistado.

— Bonito. — Ele comentou, tocando o braço de uma das poltronas. — Mas vejo rachaduras.

Win estreitou os olhos.

— Se procura fraquezas, Volkov, vai encontrá-las em você mesmo.

Jay virou o rosto devagar, encarando-o de perto.

— Você fala muito para quem tem tanto a perder.

Nin interrompeu antes que o ar pegasse fogo.

— Senhores, vocês têm um mês. — O tom dela era firme, quase autoritário. — Um mês para aprender a conviver sem arrancar a garganta um do outro. Ou esse casamento será o funeral de todos nós.

Jay sorriu de canto.

— A senhora tem mais coragem do que muitos homens que conheci.

Win respondeu com sarcasmo, olhando para a irmã:

— Ou mais ingenuidade.

Ela revidou de imediato:

— Ingênuo é quem pensa que pode lutar sozinho contra o mundo inteiro.

O silêncio que veio depois deixou claro: Nin não era apenas peça de troca. Era parte ativa do jogo.

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Naquela noite, Jay foi levado até um dos quartos de hóspedes da mansão. Luxuoso, mas claramente preparado às pressas. Ele fechou a porta e tirou o paletó, revelando o braço tatuado. Aproximou-se da janela e observou o jardim iluminado.

Um reflexo no vidro chamou sua atenção. Win estava parado à porta, encostado ao batente, braços cruzados.

— Espero que se sinta confortável — disse Win, carregado de ironia.

Jay virou-se lentamente.

— Não costumo dormir bem em território inimigo.

Win deu um passo para dentro do quarto, a expressão carregada de orgulho e raiva.

— Então não durma.

Jay avançou até ficar a poucos centímetros dele. A diferença de altura não era tão grande, mas a presença de Jay preenchia o espaço.

— Você gosta de me provocar.

Win não recuou.

— Eu gosto de lembrar você de que não manda aqui.

O ar entre os dois era denso, carregado de ódio. Olhares se cruzaram como lâminas. Por um instante, o silêncio disse mais que qualquer palavra: a atração proibida já estava ali, disfarçada de hostilidade.

Jay inclinou levemente a cabeça, o sorriso frio surgindo nos lábios.

— Vamos ver quem quebra primeiro, Win.

Win respondeu com um meio sorriso, mas os olhos eram pura chama.

— Vai ser você, Volkov. Sempre você.

Ele se virou e saiu do quarto, batendo a porta com força. Jay ficou parado, respirando fundo, a tatuagem no braço ardendo como se tivesse vida própria.

— Veremos — murmurou para si mesmo, olhando novamente pela janela.

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Na sala principal, Nin observava pela janela o encontro tenso de dois mundos que deveriam permanecer separados. Ela sabia, melhor que ninguém, que a guerra não havia acabado. Apenas mudado de forma.

E, em algum lugar dentro dela, crescia um medo que não ousava confessar: que o ódio entre Jay e Win se transformasse em algo ainda mais perigoso.

Capítulo 3 — No centro do tabuleiro

A casa acordou antes do sol.

Nin atravessou o jardim ainda úmido de orvalho, descalça sobre as pedras lisas. O vestido de algodão branco batia nos joelhos a cada passo. O ar trazia o cheiro doce das flores de jasmim e o som dos guardas trocando os turnos, botas em sincronia e rádios sussurrando códigos. Ela parou junto à escultura de um peixe de bronze e fechou os olhos por um segundo, como se pudesse, assim, pausar o mundo.

— Nin.

A voz veio das sombras do corredor externo. Jay estava encostado no pilar, camisa preta dobrada nos antebraços, o braço tatuado em arabescos de dragões sob a luz pálida da manhã. O olhar varreu o jardim antes de pousar nela — não como um homem que admira, mas como um general que mede distâncias.

— Senhor Volkov — disse Nin, controlada. — Acorda cedo.

— Quem dorme, perde terreno — respondeu Jay, neutro. — E hoje, terreno é tudo o que você tem.

— Engano seu. — Nin ergueu o queixo. — O que eu tenho é tempo. O terreno nunca foi meu.

Jay deu dois passos, mantendo distância respeitosa.

— Tempo é a única moeda que os nossos inimigos não costumam conceder.

— “Nossos”? — Nin arqueou uma sobrancelha. — Ainda soa estranho me ouvir incluída no plural russo.

— O plural é uma armadura. — Jay apontou, com um gesto mínimo, para a ala dos fundos. — Hoje à tarde você vai ao templo deixado por sua mãe. É o que está na sua agenda, certo?

Nin mediu as palavras.

— Certo. Como soube?

— Eu leio casas. — Jay inclinou a cabeça para uma mesa baixa onde repousava um arranjo de flores frescas, incensos e um porta-fotos vazio. — E leio silêncios. Seu mordomo abriu o altar na noite passada. Ele não faz isso sem motivo. Metade das pessoas anuncia seus segredos com o zelo de quem esconde.

Nin inspirou devagar.

— E o que você pretende com essa leitura? Proibir minha saída?

— Pretendo que você volte viva. — Jay não mudou o tom. — Mude o trajeto. Troque de carro. Três motos na retaguarda. Eu vou atrás, fora de vista.

— O senhor manda nos outros, não em mim. — Nin manteve a voz calma. — E a última pessoa que me disse como devo andar terminou… distante.

— Eu não digo como você anda. — Jay sustentou o olhar. — Eu digo como as balas voam. E elas têm o péssimo hábito de encontrar caminhos óbvios.

A porta de madeira se abriu no andar de cima, e Win surgiu na varanda, de camiseta e calça de treino, o cabelo ainda úmido, o dragão desenhado nas costas marcando o tecido como fogo por baixo da pele. Ele apoiou as mãos no corrimão, os olhos negros cravando na cena lá embaixo.

— Jay — chamou Win, sem esforço de cordialidade. — Saia do meu jardim.

Jay não se virou.

— Seu jardim tem pontos cegos. Estou nomeando cada um.

Win desceu os degraus devagar, cada passo uma ameaça contida. Ton apareceu logo atrás, discreto, atento, um cão de guarda com planos próprios.

— Você não nomeia nada aqui — disse Win, parando a poucos metros de Jay. — Eu dou os nomes. Eu dou as ordens.

— Então ordene que a sua irmã não morra por previsibilidade. — Jay finalmente se virou e encarou Win. — O trajeto dela para o templo é um convite.

Nin cortou o ar com a mão.

— Eu estou ouvindo. Se for para falar de mim, falem comigo.

Win respirou fundo e assentiu para ela, sem tirar os olhos de Jay.

— Vamos para a sala de reuniões. — Win indicou o caminho. — E trate de levar seus mapas, Volkov. Quero ver essas “leituras”.

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A mesa de reuniões recebia luz diagonal por duas janelas altas. Mapas da cidade se espalhavam sobre a madeira: rotas, horários, pontos de parada, nomes de ruas. Oleg, ao lado de Jay, rabiscava com caneta e imãs. Ton, junto de Win, examinava cada marcação como quem busca um erro para cravar.

— — O trajeto atual — disse Jay, batendo com o indicador numa linha vermelha — passa por três cruzamentos previsíveis e uma ponte única. Se eu fosse você, esperaria na segunda curva, onde o muro alto cria sombra. Uma moto encosta, atira e some. Dois segundos de operação. Sem drama, sem vídeo para internet.

— — Isso é Bangkok, não Moscou — rosnou Ton. — Ninguém encosta numa comitiva nossa com facilidade.

— — Facilidade é questão de estudo — rebateu Jay, sem olhar para Ton. — E criminosos estudam melhor do que políticos.

Win manteve o olhar em Nin.

— — Você aceita mudar o trajeto?

Nin cruzou as mãos sobre a mesa.

— — Aceito, com uma condição: quero escolher a parada intermediária. No caminho do templo há um mercado antigo onde as crianças ensaiam dança. Eu vou parar ali e levar flores.

Win tensionou o maxilar.

— — Multidão.

Jay respondeu sem hesitar:

— — Multidão é duas coisas: caos e disfarce. Eu levo atiradores no alto do prédio da esquina e fecho três ruas com carros descaracterizados. — Ele se virou para Win. — A decisão final é sua. Mas eu não brinco com hipótese.

— — Você não “leva” nada — interrompeu Win, seco. — Se houver gente no telhado, são meus homens.

— — Seus homens não sabem a minha língua — devolveu Jay, baixo. — Um comando mal entendido custa um corpo.

Ton bateu a caneta na mesa, impaciente.

— — Já chega. Aqui não é curso de russo. E eu não vou aceitar sombra armada dele acima da minha irmã.

Oleg abriu a boca, mas Jay ergueu um dedo e o calou sem olhar. Depois, encarou Win com atenção predatória.

— — Você decide: morte por orgulho ou vida assistida.

Win demorou um segundo a mais do que gostaria. Quando falou, escolheu as palavras como quem escolhe lâminas.

— — Atiradores no telhado, mas são meus. Você envia os códigos e as posições. E qualquer ordem sua passa por mim. — Ele inclinou-se adiante. — Eu não perco o comando da minha casa para agradar a sua obsessão por controle.

— — Combinado — disse Jay. — Controle é a única coisa que nos mantém respirando.

Nin assentiu, leve.

— — Então vamos ao templo depois do almoço.

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O mercado antigo fervilhava no meio da tarde. Vendedores com frutas cortadas em flores, crianças improvisando passos sobre um tablado de madeira, turistas distraídos com celulares. A comitiva de Nin misturava-se como podia ao colorido do lugar: dois carros pretos, discretos, um à frente e outro atrás; no do meio, Nin sentada ao lado de uma Ayi idosa que costumava acompanhá-la desde pequena. Jay seguia em um sedã comum, duas quadras atrás, óculos escuros, rádio no ouvido. Win, contra a própria vontade, mantinha distância, observando dos telhados um jogo que preferia controlar no chão. Ton circulava a pé, camisa simples, um boné, celular no bolso — olhos afiados, boca dura.

— — “Ponto Alfa, posição” — murmurou Jay no rádio, em russo, olhando para o topo da esquina.

A resposta veio no idioma de Win, impecável, como combinado.

— — “Pronto. Dois no telhado, um no beiral.”

— — “Ponto Bravo?”

— — “Pronto.”

Jay desligou por um instante, observando o reflexo nas vitrines. O mundo inteiro era um espelho se você soubesse onde olhar. Ele notou o vendedor de flores que não vendia, as mãos muito limpas para carregar cestos, o olhar que não parava nas crianças. Notou também um homem parado à sombra, segurando uma sacola de mercado sem peso, o ombro direito um pouco mais baixo — postura de quem esconde ferro.

— — “Win” — disse Jay, tocando o ponto no ouvido, o tom seco. — “O homem de camisa listrada, sombra da árvore grande, ombro baixo. Vê?”

A resposta veio rápida, tensa.

— — “Vejo. Não é meu.”

— — “Nem meu.”

O tempo contraiu.

Nin desceu do carro com o arranjo de flores no braço. Sorriu para as crianças no tablado e, por um segundo, o mundo pareceu normal. A Ayi indicou o altar improvisado de madeira, e Nin se ajoelhou, colocando as flores com cuidado. O som dos instrumentos infantis preencheu a tarde.

— — “Não atira” — ordenou Jay no rádio, olhos pregados no homem da sombra. — “Ele não tem ângulo ainda. Vai esperar ela se levantar.”

Win, do alto, viu o mesmo. E viu outra coisa: um brilho mínimo, lá longe, no sexto andar de um prédio de escritórios. Um reflexo de sol que não combinava com janela — combinava com lente.

— — “Telhado Leste, sexto andar, janela três” — rosnou Win no rádio. — “Sniper.”

Jay já estava em movimento. Largou o carro aberto, atravessou a rua por trás de uma fileira de triciclos de comida e cortou o mercado em diagonal, os olhos não perdendo Nin de vista um único segundo.

— — “Cai!” — gritou Jay, em tailandês, sem pensar na língua, só no impacto. — “Nin, cai!”

Nin não questionou. O corpo reagiu antes da mente. Ela se lançou de lado e sentiu o mundo girar. O primeiro disparo cortou o ar um palmo acima do lugar onde sua cabeça teria estado. A Ayi gritou. Crianças correram como pássaros ao tiro. O homem da sombra puxou a sacola e Jay viu o ferro sair, brilho rápido — ele mergulhou, acertando Nin com o ombro e a levando ao chão, cobrindo-a com o próprio corpo.

— — “Leste neutralizado!” — alguém berrou no rádio, um estampido devolvendo resposta ao estampido.

Ton apareceu do nada, como se tivesse saído do concreto, e imobilizou o homem da sacola com uma chave de braço que estalou, o ferro caindo e batendo no chão. Oleg interceptou outro movimento anos-luz à direita, arrastando um adolescente que filmava perto demais — não era um assassino, era só internet; mas internet também mata.

Jay manteve o corpo sobre Nin por um segundo a mais que o necessário, sentindo o coração dela galopar contra suas costelas. Depois, levantou-se num salto e a ergueu pelo cotovelo, os olhos varrendo ângulos, reflexos, sombras.

— — “Mais?” — perguntou no rádio, curto.

— — “Limpo” — respondeu a voz dos telhados. — “Por enquanto.”

Win desceu as escadas do prédio vizinho como se cada degrau pudesse se partir sob seus pés, atravessando o mercado em linha reta, empurrando gente, derrubando coisas, até parar diante de Nin e de Jay.

— — “Você a tocou” — disse Win para Jay, a respiração quente, a ira segurando a pele por dentro.

— — “Eu a cobri” — respondeu Jay, o olhar cinza aceso. — “É diferente.”

— — “Tire as mãos dela.”

As mãos de Jay não estavam mais sobre Nin, mas o comando não era sobre pele. Era sobre território. Nin sentiu.

— — “Win, eu estou bem” — disse Nin, firme. — “Ele me tirou da linha.”

Win a inspecionou de alto a baixo com as mãos leves, como quem confere um cristal após um tranco.

— — “Você está bem?”

— — “Sim.” — Ela olhou para Jay. — “Obrigada.”

— — “De nada.” — Jay inclinou quase imperceptivelmente a cabeça. Depois virou-se para os telhados: — “Levanta o perímetro. Sem heroísmo. Tirem esse atirador de cima e limpem os acessos.”

Ton, com o joelho nas costas do homem da sacola, falou sem virar o rosto:

— — “Você não dá ordens aqui, Volkov.”

— — “Acabei de impedir que sua casa perdesse o coração” — retrucou Jay, finalmente mirando Ton com um gelo que doía. — “Então eu dou ordens ao tempo que o tempo precisar para ela continuar batendo.”

Win deu um passo para frente, encostando quase o peito no de Jay, a proximidade elétrica, perigosa.

— — “Um passo a mais, e eu esqueço que a imprensa está a duas esquinas” — rosnou Win.

— — “Um passo a mais, e eu esqueço que a sua irmã pediu paz” — devolveu Jay, baixo, que só Win ouviu.

Nin entrou entre os dois, palmas espalmadas no ar, separando como quem acalma dois cães que as ruas ensinaram a matar.

— — “Chega” — disse Nin, e a palavra dela tinha peso. — “Eu quero voltar para casa. Agora.”

Win levou um segundo para soltar o fio que o puxava à briga. Depois tocou o ombro da irmã, suave.

— — “Vamos.”

Jay deu ordens curtas pelos rádios, os homens recolhendo como sombra bem treinada. O mercado voltou a respirar aos poucos, como um corpo que sobrevive a um afogamento.

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De volta à mansão, as portas fecharam com estrondo. Win conduziu Nin até a sala de chá e só então relaxou os ombros, o olhar ainda em chamas.

— — “Tragam água, gelo, e limpem qualquer arranhão” — ordenou Win a uma funcionária.

Nin tocou o próprio braço; havia um hematoma crescendo onde o chão a abraçou de mau jeito.

— — “Estou inteira.”

Jay entrou dois passos depois, Oleg ao lado, e parou à distância, respeito milimétrico, a tatuagem viva sob a luz.

— — “Perímetro levantado. — informou. — O atirador no sexto andar não tinha documentação. Profissional de aluguel. O homem da sacola é local. Tem cheiro de gente de fora pagando gente daqui.”

Ton cruzou os braços.

— — “Você tem cheiro de conveniente.”

Jay não deu a Ton o presente de um olhar.

— — “Há um terceiro elemento. — continuou. — Alguém tirou fotos na saída da garagem e mandou para o homem do telhado. Recebi uma mensagem anônima no meu celular com o mesmo enquadramento. — Ele tirou o aparelho do bolso, colocou sobre a mesa e mostrou a Win. — Essa foto foi tirada do corredor interno, seis minutos antes de você autorizar a partida.”

Win olhou a imagem: Nin de perfil, arrumando o cabelo diante do espelho do corredor, a moldura de madeira reconhecível, o jarro azul no aparador. O carimbo de hora brilhava como um insulto. O sangue subiu-lhe à cabeça e desceu em gelado.

— — “Traidor dentro de casa” — sussurrou Win, mais para si do que para os outros.

Ton deu um meio passo à frente.

— — “Qualquer um com acesso ao corredor poderia…”

— — “Qualquer um com acesso e com vontade de transformar meu sobrenome em notícia” — cortou Win, o olhar perfurando paredes invisíveis. Depois virou-se para Jay. — “O que você quer?”

Jay respondeu sem brandura:

— — “Quero a Nin no quarto da ala central, com duas portas e uma saída de serviço que dá para o pátio interno. Meus homens na porta externa. Seus homens na porta interna. Todos os deslocamentos noturnos comunicados com quinze minutos de antecedência. E quero revisar seu pessoal de limpeza e cozinha. Hoje.”

— — “Você não mexe nos meus” — reagiu Win, instintivo, como quem protege um coração com os punhos.

— — “Alguém entre os ‘seus’ tirou essa foto” — devolveu Jay, batendo de leve no celular. — “E mandou para alguém do lado de fora em seis minutos. Alguém com crachá. Alguém que bebe chá no mesmo corredor em que sua irmã passa.”

Ton apertou os dentes até os músculos mastigarem o próprio rancor.

— — “Você está se ouvindo, Volkov? Você entra na minha casa, aponta para meu povo e…”

— — “E mantenho sua irmã respirando” — Jay cortou, sem elevar a voz. — “Se você prefere morrer por fidelidade errada, diga agora. Eu economizo tempo.”

O silêncio ficou denso. A funcionária trouxe água, gelo, curativo. Nin agradeceu com um aceno, mas não tirou os olhos dos dois homens — dois leões num ringue pequeno demais para dois.

— — “Win” — disse Nin, suave e firme ao mesmo tempo. — “Eu quero o quarto da ala central. As duas portas. Os dois grupos de homens. E a revisão da casa. Hoje.”

Win se virou para ela, e por um instante os olhos deixaram de ser lâmina para serem medo.

— — “Você confia nele?”

Nin respirou antes de responder.

— — “Eu confio no que ele fez hoje. E confio no que você fará se eu pedir. Peço isso.”

Win fechou os olhos por um segundo, o dragão nas costas queimando pela lembrança do tiro. Quando abriu, assentiu, mas a palavra saiu em ferro.

— — “Está bem.”

Jay soltou um ar que não era alívio; era prontidão.

— — “Começamos agora.”

— — “Eu acompanho a revisão” — disse Ton, áspero. — “Pessoalmente.”

Jay finalmente olhou para Ton como quem mede um problema com régua.

— — “Ótimo. Prefiro inimigos na luz.”

Ton sorriu sem humor.

— — “A luz me favorece.”

— — “Veremos.”

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A inspeção começou pelos corredores internos. Oleg checava câmeras, cruzando os carimbos de hora com o trajeto de Nin. Dois seguranças de Win, escolhidos pelo próprio Win, abriam depósitos, armários, checavam trancas. Ton caminhava sempre um passo à frente, como quem desafia. Jay seguia os fios invisíveis — o cheiro de limpeza forte demais num canto, a câmera que “casualmente” mudou o ângulo ontem, o carregador de celular esquecido numa tomada estratégica.

— — “Aqui” — disse Oleg, parando diante de um quadro decorativo. — “A câmera três, corredor central. O histórico mostra micro travamentos às 14:02, 14:03 e 14:04. A foto foi tirada às 14:05.”

— — “Corte programado” — avaliou Jay. — “Profissional ou alguém que recebeu instruções.”

Ton abriu o painel de energia da ala com uma chave.

— — “O técnico de ontem veio trocar um disjuntor. Serviço autorizado.”

Jay estendeu a mão.

— — “Ordem de serviço.”

Ton hesitou um meio segundo, e esse meio segundo virou um monólito. Depois entregou uma folha plastificada.

— — “Aqui.”

Jay leu silenciosamente.

— — “Telefone do contato. — apontou. — Vamos ligar.”

— — “Já liguei” — disse Ton, seco. — “Número fora de serviço.”

Oleg puxou o celular e fotografou o documento, enviando para uma equipe do lado de fora.

— — “Vamos cruzar com registros da companhia” — avisou Oleg.

Win apareceu no fim do corredor, silencioso como sombra.

— — “Progresso?”

Jay entregou o fato como um veredito.

— — “Alguém ajudou de dentro. Hoje.”

Win assentiu uma vez, devagar, como quem engole vidro.

— — “Tranque a casa. — ordenou Win. — Revezamento em turnos de três. E ninguém, ninguém, toca na minha irmã sem eu saber primeiro.”

Jay não sorriu, mas alguma coisa quase imperceptível mexeu no canto da boca — reconhecimento de um comando que faria ele mesmo.

— — “Concordo.”

Nin, à porta ao lado, observava. Trazia agora uma camiseta larga e um moletom claro, o curativo discreto no braço. Aproximou-se com passos leves.

— — “Eu vou para a ala central” — disse Nin. — “Quero ver o quarto antes do anoitecer.”

— — “Eu levo você” — disse Win.

— — “Eu acompanho, à distância” — disse Jay.

Os dois falaram juntos. Pararam. Se olharam. O ar faiscou.

Nin quase riu — não de humor, mas de exaustão.

— — “Vocês dois vão me matar de cansaço antes de qualquer atirador.”

Win abriu espaço com o braço, gesto quase gentil.

— — “Vamos.”

---

O quarto na ala central parecia um cofre de luxo: duas portas, uma para o corredor principal, outra para uma escada de serviço que descia ao pátio interno; janelas com vidros reforçados; uma varanda pequena demais para ser risco, grande o suficiente para respirar.

— — “Coloquem dois homens aqui fora e um no patamar da escada” — disse Jay, indicando pontos com o dedo. — “Câmeras novas nesse corredor. Troquem as senhas de acesso. Agora.”

— — “Eu autorizo” — confirmou Win, seco.

Nin cruzou até a varanda e olhou o jardim, agora estranho.

— — “Nunca pensei que o lugar onde cresci pareceria uma gaiola.”

Jay ficou um instante ao lado da porta, sem invadir a visão dela.

— — “Gaiolas também protegem, quando o mundo lá fora está pegando fogo.”

— — “É curioso ouvir isso de um incendiário” — disse Nin, sem doçura.

Jay não se ofendeu.

— — “Eu queimo o que precisa queimar. Para o resto ficar de pé.”

Win encostou no batente oposto, braços cruzados, vendo os dois com a raiva antiga que, hoje, vinha acompanhada de outra coisa que ele não admitiria.

— — “Chega por hoje.”

Nin virou-se para os dois, decidida.

— — “Eu vou dormir aqui. Sozinha. Com gente de vocês dois na porta. Amanhã, eu vou ao templo de novo. Com mais flores. E sem tiros.”

— — “Amanhã, não” — cortou Jay. — “Alguém ainda está contando as câmeras.”

— — “Amanhã, sim” — rebateu Win, olhando para Jay como quem aposta a alma — e talvez outra coisa. — “O mundo precisa ver que nós não recuamos.”

Nin respirou fundo, pesando.

— — “Amanhã, tarde. Caminho diferente. Duas paradas. E eu escolho as flores.”

Jay e Win se olharam. Por um instante, os dois concordaram sem palavras — e essa concordância doeu nos dois.

— — “Fechado” — disse Jay.

— — “Fechado” — repetiu Win.

Oleg apareceu na porta, discreto.

— — “Chefe, tem algo para ver.”

Jay se aproximou. Oleg mostrou a tela do celular: uma foto da maçaneta da porta de Nin, do lado de fora, com um fio vermelho amarrado em laço. O carimbo de hora: cinco minutos antes. Sem rostos. Sem passos. Só o sinal.

Jay ergueu os olhos para Win.

— — “Temos um recado.”

Ton, que vinha pelo corredor, viu o fio pela primeira vez. Parou. O olhar congelou.

Nin deu um passo à frente, encarando o sinal.

— — “O que significa?”

Win respondeu, a voz rouca:

— — “Significa que alguém sabe o que este quarto significa.”

Jay aproximou-se do laço e não tocou. — “E significa que o traidor está perto o suficiente para amarrar nós debaixo do nosso nariz.”

Nin ergueu o queixo, obstinada, o olhar aceso.

— — “Então desfaçam o nó. Todos.”

Win virou-se para Jay, e havia fogo e aço e outra coisa antiga nos olhos.

— — “A partir de agora, Volkov, você e eu dividimos este corredor.”

Jay assentiu, sem ironia.

— — “Corredores estreitos sempre aproximam os inimigos.”

Eles ficaram frente a frente por um segundo a mais do que o seguro. O silêncio deles tinha textura. Tinha cheiro. Tinha futuro.

Do lado de fora, a noite começou a cair, lenta. Em algum lugar, uma mensagem anônima foi enviada: “Noivas não chegam ao altar.” O texto apareceu no celular de Ton primeiro. A mão dele tremeu — não de medo. De decisão.

Dentro do quarto, Nin fechou as mãos, como quem segura o fio invisível que a prende a dois mundos.

E, pela primeira vez, sentiu que talvez fosse ela quem puxaria.

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