Caio ajeitou a faixa no peito antes de sair de casa. Olhou-se no espelho com atenção. O cabelo curto, o olhar firme e a barba rala que começava a despontar eram sinais de que finalmente sua vida seguia o caminho certo. Apesar de tudo, ainda havia um longo percurso pela frente.
No trabalho, a primeira a perceber sua chegada foi Júlia, sua melhor amiga desde a adolescência. Cabelos cacheados, sempre com um sorriso no rosto, ela tinha a habilidade de arrancar uma piada até nos piores dias. Para Caio, Júlia era mais que amiga: era porto seguro, confidente e protetora.
— Atrasado de novo, Caio! — ela brincou, levantando uma sobrancelha. — Se continuar assim, o chefe vai ter um ataque.
O chefe em questão era Dr. Renato Vasques, dono da pequena clínica de estética onde Caio trabalhava na recepção. Um homem de meia-idade, meticuloso e exigente, que parecia medir cada palavra que dizia. Embora fosse rígido, raramente tratava Caio com hostilidade, mas a frieza de seu olhar deixava claro que ele não tolerava falhas.
No fundo do corredor, Caio cruzou com Clara, a estagiária recém-chegada. Jovem, de olhos expressivos e um jeito tímido, ela sempre abaixava a cabeça ao falar. Parecia esconder uma história própria, mas não deixava ninguém se aproximar demais.
No almoço, Júlia se aproximou novamente.
— Então, animado para o grupo de apoio hoje? — perguntou.
O grupo de apoio era organizado por Marina, uma mulher trans mais velha, que havia se tornado referência para Caio. Forte, determinada e com um coração acolhedor, Marina sempre lembrava a todos que não era preciso lutar sozinhos. Para Caio, ela era como uma mentora, alguém que já havia trilhado o caminho que ele sonhava em seguir.
No caminho para casa, Caio passou por uma livraria e, sem perceber, deixou cair alguns papéis de sua mochila. Quem os devolveu foi Gabriel, um rapaz de olhar gentil, sorriso fácil e um ar tranquilo.
— Ei, acho que isso é seu — disse ele, entregando as folhas.
Caio agradeceu, meio sem jeito, e seguiu seu caminho. Não imaginava que aquele encontro simples teria peso no futuro.
De volta ao apartamento, o silêncio parecia esmagador. Era ali, sozinho, que as dúvidas voltavam. Sonhava com o dia em que todos o reconheceriam como realmente era. Mas havia um detalhe, um segredo escondido no fundo de sua mente, que teimava em incomodar.
Ele não sabia ainda, mas todos aqueles rostos — Júlia, Renato, Clara, Marina e até mesmo Gabriel — seriam peças fundamentais na jornada que estava apenas começando.
Capítulo 1 – Entre Rostos e Segredos
Caio ajeitou a faixa no peito antes de sair de casa. Olhou-se no espelho com atenção. O cabelo curto, o olhar firme e a barba rala que começava a despontar eram sinais de que finalmente sua vida seguia o caminho certo. Apesar de tudo, ainda havia um longo percurso pela frente.
No trabalho, a primeira a perceber sua chegada foi Júlia, sua melhor amiga desde a adolescência. Cabelos cacheados, sempre com um sorriso no rosto, ela tinha a habilidade de arrancar uma piada até nos piores dias. Para Caio, Júlia era mais que amiga: era porto seguro, confidente e protetora.
— Atrasado de novo, Caio! — ela brincou, levantando uma sobrancelha. — Se continuar assim, o chefe vai ter um ataque.
O chefe em questão era Dr. Renato Vasques, dono da pequena clínica de estética onde Caio trabalhava na recepção. Um homem de meia-idade, meticuloso e exigente, que parecia medir cada palavra que dizia. Embora fosse rígido, raramente tratava Caio com hostilidade, mas a frieza de seu olhar deixava claro que ele não tolerava falhas.
No fundo do corredor, Caio cruzou com Clara, a estagiária recém-chegada. Jovem, de olhos expressivos e um jeito tímido, ela sempre abaixava a cabeça ao falar. Parecia esconder uma história própria, mas não deixava ninguém se aproximar demais.
No almoço, Júlia se aproximou novamente.
— Então, animado para o grupo de apoio hoje? — perguntou.
O grupo de apoio era organizado por Marina, uma mulher trans mais velha, que havia se tornado referência para Caio. Forte, determinada e com um coração acolhedor, Marina sempre lembrava a todos que não era preciso lutar sozinhos. Para Caio, ela era como uma mentora, alguém que já havia trilhado o caminho que ele sonhava em seguir.
No caminho para casa, Caio passou por uma livraria e, sem perceber, deixou cair alguns papéis de sua mochila. Quem os devolveu foi Gabriel, um rapaz de olhar gentil, sorriso fácil e um ar tranquilo.
— Ei, acho que isso é seu — disse ele, entregando as folhas.
Caio agradeceu, meio sem jeito, e seguiu seu caminho. Não imaginava que aquele encontro simples teria peso no futuro.
De volta ao apartamento, o silêncio parecia esmagador. Era ali, sozinho, que as dúvidas voltavam. Sonhava com o dia em que todos o reconheceriam como realmente era. Mas havia um detalhe, um segredo escondido no fundo de sua mente, que teimava em incomodar.
Ele não sabia ainda, mas todos aqueles rostos — Júlia, Renato, Clara, Marina e até mesmo Gabriel — seriam peças fundamentais na jornada que estava apenas começando.
O relógio marcava sete da noite quando Caio chegou ao prédio comunitário onde aconteciam os encontros do grupo de apoio. O ar estava fresco, e um burburinho suave vinha da sala principal. Ao abrir a porta, foi recebido por sorrisos, abraços e o calor humano que sempre tornava aquele espaço diferente do resto do mundo.
Marina, firme como sempre, estava à frente, organizando as cadeiras em círculo. Usava uma blusa azul vibrante e brincos longos que balançavam enquanto falava. Sua presença preenchia o ambiente de forma quase magnética.
— Boa noite, gente! — disse, assim que todos se acomodaram. — Lembrem-se: este é um espaço de escuta, respeito e coragem. Aqui, ninguém precisa fingir nada.
As palavras de Marina ecoaram fundo em Caio. Ela não era apenas a coordenadora do grupo. Era referência, guia e quase um farol. Uma mulher trans de cinquenta e poucos anos, que já havia atravessado dores que muitos ainda temiam enfrentar. Perdera amigos, empregos e até a casa quando decidiu viver sua verdade, mas nunca desistira. Transformara a própria história em um caminho aberto para os outros.
Caio lembrava bem da primeira vez em que a conheceu.
Flashback
Foi numa tarde de inverno, quando um cartaz colado no portão do centro comunitário chamou sua atenção: “Encontro de Acolhimento — Todos Bem-Vindos”. Entrou tímido, com as mãos enfiadas no bolso do casaco, coração acelerado. A sala era pequena, as cadeiras dispostas em círculo. No centro, Marina falava com uma voz aquecida por risos e silêncios partilhados.
“Eu perdi muita coisa quando escolhi ser eu”, dizia. “Perdi casa, perdi emprego, perdi amigos. Mas também ganhei a mim mesma. E, no fim, percebi que não era uma escolha entre ser feliz e ser autêntica. Era aprender a juntar as partes.”
Ela olhou ao redor, sorrindo, e aquele sorriso atravessou a carapaça de medo que Caio carregava.
No intervalo, enquanto os outros conversavam em pequenos grupos, Caio ficou parado junto à parede, tentando controlar a respiração. Marina percebeu, aproximou-se com calma e estendeu a mão.
— Vem cá, quero ouvir sua parte.
Ele falou pouco, quase nada. Mas ela ouviu como se fosse muito. Antes de ir embora, Marina entregou-lhe um envelope amassado. Dentro havia dois papéis: o telefone de uma amiga que ajudava com documentos e outro de atendimento psicológico gratuito.
— Quando bater medo, liga. Quando não souber por onde começar, eu te mostro o caminho. Só não some, tá?
Aquela frase grudou em sua mente. Naquele dia, Caio saiu do centro comunitário sentindo, pela primeira vez, que tinha alguém ao seu lado. Marina não o salvou — deu-lhe ferramentas, um mapa e a certeza de que não precisaria andar sozinho.
De volta ao presente
Agora, sentado no círculo, com Júlia à sua direita e um rapaz desconhecido à esquerda, Caio respirava fundo. Quando chegou sua vez de falar, as mãos tremiam, mas a presença de Marina o mantinha firme.
— Eu... — começou, hesitante. — Eu estou feliz com cada passo que dou, mas, às vezes, parece que o mundo não me enxerga. Olho no espelho e vejo quem sou. Mas, fora daqui, sinto que ainda é preciso explicar... justificar... provar.
O silêncio respeitoso que se seguiu lhe deu coragem. Júlia pousou a mão sobre a dele. Marina, do outro lado, assentiu com firmeza.
— Você não precisa provar nada a ninguém, Caio — disse ela, a voz carregada de convicção. — O caminho é seu. E as pessoas vão aprender a ver o que já está em você.
As palavras lhe trouxeram alívio imediato, mas o segredo que guardava ainda latejava, escondido, como uma sombra à espreita.
Na saída, Marina o chamou de lado.
— Você tem carregado algo além do que mostra aqui, não tem? — perguntou, encarando-o com ternura.
Caio desviou o olhar. O nó na garganta não o deixou responder. Apenas acenou, confirmando sem palavras. Marina sorriu, delicada.
— Quando estiver pronto, fale. Não guarde sozinho.
Naquela noite, enquanto caminhava com Júlia pelas ruas frias, Caio pensava em como Marina parecia enxergar o que ele próprio ainda não conseguia nomear. E, deitado em sua cama mais tarde, sentiu que todas aquelas vozes — a força de Marina, a cumplicidade de Júlia, a timidez de Clara, a frieza de Renato e até a gentileza inesperada de Gabriel — ecoavam dentro dele.
No espelho do quarto, no entanto, havia outra voz, silenciosa e oculta, que insistia em se fazer ouvir.
Na manhã seguinte, Caio acordou com o barulho da cidade atravessando as cortinas do seu apartamento. O sol tímido da primavera mal iluminava o quarto, mas ele já se sentia inquieto. Hoje seria um dia importante. Sentia que cada pequeno deslize no trabalho poderia trazer consequências maiores do que simples repreensão. Ajustou a faixa no peito, respirou fundo e tentou convencer a si mesmo de que nada do que sentia seria percebido por outros.
Ao chegar à clínica, o corredor ainda exalava cheiro de desinfetante, um perfume frio que contrastava com o calor humano que ele desejava sentir. O relógio de parede ticava de forma insistente, lembrando-o de cada segundo que passava. Caio tentava manter o foco nas tarefas simples: organizar cadastros, conferir agendamentos e responder a ligações telefônicas. No entanto, sentia o peso da observação constante. Cada movimento seu parecia ser analisado.
Pouco depois, Dr. Renato Vasques atravessou o saguão com passos firmes, segurando uma pasta volumosa. O homem parou diante de Caio, apoiando a mão sobre a mesa e fitando-o com um olhar que misturava curiosidade, expectativa e julgamento.
— Espero que hoje não haja falhas — disse, a voz polida, mas carregada de frieza.
Caio apenas assentiu, engolindo em seco. Não era novidade sentir a pressão do chefe, mas havia algo no tom daquela manhã que o fez tremer por dentro. Ele sentiu o peito apertar, como se cada palavra fosse um peso sobre os ombros. Tentou disfarçar, mantendo o semblante calmo, mas não conseguiu evitar o leve tremor nos dedos ao organizar os documentos sobre a mesa.
Enquanto digitava informações no computador, Caio percebeu vozes baixas vindas da copa. Curioso, ergueu o olhar discretamente e reconheceu o timbre de Clara, a estagiária recém-chegada.
— Ele é simpático, mas... tem algo diferente, não acha? — murmurou, sem perceber que Caio podia ouvir.
Outra funcionária respondeu num tom baixo, porém carregado de julgamento:
— Já ouvi comentários, mas não quero me envolver.
As palavras cortaram Caio como facas invisíveis. Um calor estranho subiu pelo corpo, misturando vergonha, medo e uma raiva contida. Sentiu-se exposto, vulnerável, como se seu segredo estivesse sendo revelado sem consentimento. Respirou fundo, tentando manter a compostura, mas o peso era sufocante.
Júlia surgiu naquele instante, trazendo dois cafés com seu sorriso habitual. Ao perceber a expressão abatida do amigo, o sorriso se transformou em preocupação.
— O que houve? — perguntou, entregando-lhe uma caneca quente.
Caio hesitou. Parte dele queria desabar ali mesmo, contar tudo e aliviar a pressão que sufocava seu peito. Mas outra parte, mais cautelosa, lembrava-o de que ainda não estava pronto para se expor. Forçou um sorriso curto, que não alcançou os olhos.
— Nada demais… só cansaço — respondeu, tentando soar natural.
Júlia estreitou os olhos, desconfiada, mas não insistiu. Pousou a mão de leve em seu braço, transmitindo conforto silencioso, e disse:
— Você não precisa enfrentar nada sozinho.
Mesmo com aquelas palavras, Caio não conseguiu sentir alívio completo. A cada cochicho, a cada olhar desconfiado, sentia sua fortaleza interna rachar. Durante anos, aprendera a esconder partes de si mesmo, mas a sensação de que o mundo à sua volta começava a perceber era esmagadora.
No almoço, tentou se concentrar na comida, mas o sabor parecia perdido. Cada mordida lembrava-o do quanto se sentia deslocado. Clara passou por ele, desviando o olhar, e Caio percebeu novamente a distância que existia entre ele e os colegas. Não era hostilidade direta, mas a separação silenciosa fazia mais doer do que qualquer confronto aberto.
O restante do expediente se arrastou. Cada ligação atendida, cada agendamento confirmado, era uma pequena batalha para manter a calma. Caio tentava se convencer de que aquilo não mudaria nada, mas o desgaste emocional era evidente. Cada olhar, cada cochicho, cada comentário sutil no corredor pesava mais do que o normal.
Quando finalmente o relógio anunciou o fim do expediente, Caio sentiu um misto de alívio e ansiedade. O dia fora cumprido, mas o impacto emocional permanecia. Caminhou até a saída acompanhado de Júlia, respirando o ar fresco da tarde. As ruas pareciam mais silenciosas do que o habitual, e cada passo soava como se estivesse caminhando sobre vidro quebrado.
De volta ao apartamento, Caio se encarou no espelho do quarto. O reflexo lhe devolvia a imagem de quem ele era, mas não a sensação de segurança que tanto buscava. Encostou a testa contra o vidro frio, respirando fundo. O segredo que carregava, aquele que ainda não revelara a ninguém, parecia maior do que ele, exigindo atenção, coragem e tempo. Sabia, no fundo, que não poderia escondê-lo para sempre.
Sentado na beira da cama, observou as próprias mãos e sentiu a pressão de tudo o que vinha acumulando. Cada rosto que cruzava em seu cotidiano — Júlia, Clara, Renato, Gabriel — representava um desafio diferente, uma expectativa ou julgamento. O mundo parecia pronto para questioná-lo, e ele ainda precisava descobrir como responder sem se perder.
A noite caiu, silenciosa, mas pesada. No espelho, Caio viu não apenas seu reflexo, mas a tensão acumulada de dias e anos, a urgência de se mostrar por completo, de enfrentar o mundo com sua verdade. E naquele instante, decidiu que, cedo ou tarde, não poderia mais fugir.
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