A cidade de Drakenshold não dormia. Sob o peso das torres antigas e das ruas de pedra encharcadas pela chuva, a capital do reino pulsava com um som baixo e constante: o eco de rivalidades que nunca cessavam. Entre suas muralhas góticas, magia e pólvora conviviam lado a lado — carruagens puxadas por cavalos dividiam espaço com máquinas modernas de ferro que soltavam fumaça azulada, enquanto as velas dos templos iluminavam ruas onde luzes elétricas já piscavam, instáveis. Era um mundo preso entre dois tempos, um reino que tentava se modernizar sem jamais abandonar o peso do passado.
No coração dessa cidade dividida, duas famílias governavam mais do que apenas terras. Governavam medos, lealdades e ódios.
De um lado, os Morthain: guerreiros antigos, donos de arsenais, treinados na disciplina da espada e da pólvora. Seu brasão era um corvo negro em fundo prateado, símbolo de força e vingança. O patriarca, Lorde Edric Morthain, era conhecido pela dureza, incapaz de sorrir até mesmo em vitórias. Seus homens patrulhavam ruas como se fossem soldados de guerra, mantendo a ordem com mãos de ferro.
Do outro lado, os Valebryn: estrategistas, nobres de sangue antigo, guardiões da magia ancestral que corria pelo reino antes mesmo da pólvora ser inventada. Seu brasão era uma serpente dourada em fundo vermelho, símbolo de astúcia e poder. A matriarca, Lady Selene Valebryn, dominava feitiços de ilusão e política com a mesma precisão. Seus seguidores falavam em tons baixos, mas eram tão perigosos quanto qualquer espada Morthain.
As famílias não se enfrentavam apenas em batalhas. Estavam em cada contrato, em cada casamento arranjado, em cada voto comprado no Conselho Real. E, acima de tudo, estavam enraizadas no ódio de gerações.
Naquela noite, a chuva caía pesada sobre os telhados de pedra quando Caelan Morthain se aproximava do portão norte da cidade. Tinha vinte e dois anos, olhos negros como o brasão da própria família e uma postura que misturava orgulho e cansaço. Desde cedo aprendera a carregar uma espada quase maior do que ele, mas agora, além da lâmina, carregava também a pressão de ser o herdeiro que todos esperavam.
O portão estava vazio, exceto pela silhueta de dois guardas e o brilho distante de lanternas mágicas. Caelan passara horas em uma patrulha frustrante, perseguindo apenas ecos de criminosos que nunca apareciam. “Ladrões treinados por Valebryn”, diziam os soldados, cuspindo o nome como veneno.
Ele sabia que era mentira. Mas, em Drakenshold, a mentira já tinha se tornado tradição.
Enquanto secava o cabelo encharcado, ergueu o olhar para o horizonte. As torres vermelhas da mansão Valebryn brilhavam à distância, iluminadas por relâmpagos. Um aperto involuntário se formou em seu peito. Não era ódio, embora fosse isso que todos esperassem dele. Era algo mais difícil de explicar, uma curiosidade quase proibida. Desde criança ouvira histórias de monstros, feiticeiros e traições vindos daquela família. Mas Caelan nunca vira um Valebryn de perto.
Do outro lado da cidade, na ala mais alta da mansão escarlate, Lyanna Valebryn caminhava pelo corredor iluminado por tochas mágicas. Seus passos eram silenciosos, calculados, como se cada movimento fosse parte de um feitiço invisível. Tinha dezenove anos, cabelos longos da cor do vinho e olhos verdes que refletiam cada segredo escondido sob aquelas paredes.
Lyanna crescera entre livros de feitiços, armas raras e reuniões da mãe, Lady Selene, onde políticos e mercadores se ajoelhavam disfarçados de aliados. Desde pequena aprendera a sorrir mesmo quando o coração ardia de raiva, a enganar quando precisava sobreviver.
Naquela noite, carregava nas mãos um grimório pesado, mas sua mente estava longe das páginas. Pela janela aberta, a jovem observava a cidade — torres escuras, ruas enlameadas, e além delas, as mansões cinzentas dos Morthain.
Era proibido olhar. Proibido pensar. Proibido imaginar. Mas Lyanna sempre se perguntava se a vida do outro lado das muralhas era tão diferente da sua.
— Lyanna. — A voz firme de sua mãe ecoou pelo corredor. — Feche a janela. O inimigo não deve ser contemplado como se fosse um pôr do sol.
A garota suspirou, fechando as cortinas de veludo. Mas no fundo, algo já estava aceso nela — uma faísca que nenhuma ordem poderia apagar.
O destino, contudo, não se importa com muralhas nem com proibições.
Na semana seguinte, um grande banquete seria realizado no palácio real. Não para selar a paz — paz era uma palavra vazia em Drakenshold —, mas para comemorar a vitória do reino contra invasores estrangeiros. Nobres de todas as casas seriam obrigados a comparecer. Inclusive Morthain. Inclusive Valebryn.
Caelan sabia que teria de estar lá, representar seu brasão, suportar os olhares hostis da outra família. Lyanna sabia o mesmo, e já preparava o vestido carmesim que brilharia sob as tochas.
Eles não sabiam, mas naquela noite, no coração iluminado do palácio, os caminhos de duas vidas moldadas pelo ódio finalmente iriam se cruzar.
Um olhar. Um silêncio. Uma faísca.
E o início de algo que poderia destruir não apenas suas famílias, mas toda a cidade que respirava sob as muralhas de Drakenshold.
O palácio real de Drakenshold era mais antigo que qualquer lembrança viva. Suas paredes carregavam retratos de reis esquecidos, vitrais coloridos que contavam histórias de batalhas, e um teto abobadado que parecia tocar o próprio céu. Naquela noite, o grande salão estava tomado por tochas mágicas suspensas no ar, flutuando como estrelas presas à vontade de um feitiço antigo.
Nobres, soldados, mercadores e mágicos enchiam o espaço, vestidos em trajes luxuosos, cheios de joias e símbolos de suas casas. O cheiro de vinho e especiarias se misturava ao som de violinos, criando uma atmosfera quase encantadora — quase, porque debaixo daquela beleza, todos sabiam que a noite era apenas uma desculpa para medir forças.
Caelan Morthain entrou acompanhado do pai e de seus tios. Usava um casaco negro de tecido pesado, bordado discretamente com o corvo prateado da família. Carregava a expressão séria que o pai exigia dele em público: sobrancelhas firmes, olhar frio, boca fechada. Por dentro, no entanto, sentia-se preso. Cada passo no mármore era como carregar uma corrente invisível.
— Mantenha os olhos erguidos. — Lorde Edric sussurrou, sem sequer virar a cabeça. — Somos Morthain. Nenhum olhar deve nos intimidar.
Caelan assentiu em silêncio, embora soubesse que não precisava de mais lições. Desde criança aprendera a andar como um guerreiro, mesmo quando só queria ser um garoto.
Do outro lado do salão, o brasão vermelho e dourado dos Valebryn surgia em meio ao tumulto. Lady Selene caminhava com a postura de uma rainha que não precisava da coroa, envolta em seda escarlate que parecia mudar de tom conforme a luz das tochas a tocava. Atrás dela, discretamente, vinha Lyanna.
O vestido carmesim que usava se ajustava ao corpo sem exageros, mas chamava atenção pela forma como refletia o brilho mágico da sala. O cabelo solto caía em ondas até a cintura, e os olhos verdes, ainda que escondidos sob a sombra dos cílios, observavam cada detalhe como quem grava segredos.
Ela não queria estar ali. O coração batia acelerado, e o peso do nome Valebryn parecia esmagar seus ombros. Mas obedecer era a única opção.
O mestre de cerimônias anunciou a chegada das famílias mais importantes, e os olhares se voltaram em ondas silenciosas. Morthain e Valebryn entraram quase ao mesmo tempo. O salão inteiro prendeu a respiração. O rei não estava presente — não precisava. Todos sabiam que a verdadeira tensão da noite estava nos dois clãs rivais dividindo o mesmo espaço.
Caelan caminhava ereto, mas, contra a própria vontade, seu olhar desviou. Passou pela multidão, pelas taças erguidas, pelos rostos borrados pelo álcool… até encontrar os olhos de Lyanna.
Foi um segundo, talvez menos, mas pareceu uma eternidade.
Ela não desviou.
Havia desafio em seu olhar, mas também algo mais. Uma curiosidade que refletia a dele, como se ambos compartilhassem a mesma pergunta silenciosa: como é possível que o inimigo não seja um monstro?
O coração de Caelan acelerou. Recuou o olhar imediatamente, temendo que o pai tivesse notado. Mas o impacto já estava feito.
Horas se passaram entre brindes, discursos e danças. Nobres fingiam sorrir enquanto suas palavras eram lâminas disfarçadas de elogios. O vinho escorria em taças douradas, e a música preenchia os silêncios que poderiam ser perigosos demais.
Caelan permaneceu ao lado dos tios, ouvindo histórias que já conhecia de cor. Seu corpo estava ali, mas a mente, não. O olhar insistia em procurar, mesmo contra a própria razão. Procurar por ela.
Do outro lado do salão, Lyanna tentava se distrair com conversas superficiais, mas era inútil. A imagem do rapaz de olhos sombrios atravessando o salão não saía de sua cabeça. Havia algo em sua postura, no modo como segurava a taça sem esforço, que parecia diferente de tudo o que contavam sobre os Morthain.
Eles não são monstros?
Ela balançou a cabeça discretamente, como se pudesse espantar o pensamento. Não podia se permitir aquilo. Não ali. Não nunca.
Foi no meio de uma troca de parceiros na dança que o inevitável aconteceu.
A música acelerou, e os casais trocaram de mãos. Em poucos segundos, Caelan se viu diante dela. A mão de Lyanna, fria pelo nervosismo, encostou-se na dele.
Os olhos se encontraram novamente.
O mundo pareceu se silenciar, mesmo com a música alta, mesmo com as conversas, mesmo com as dezenas de olhares ao redor. Era como se, por um instante, o palácio inteiro tivesse desaparecido, restando apenas os dois.
— Você… — Caelan murmurou, quase sem perceber que falava.
Lyanna ergueu o queixo, tentando esconder o turbilhão dentro de si. — Cuidado com o que diz, Morthain. Ou podem achar que esqueceu quem sou.
O nome pronunciado por ela soou como uma lâmina. Ele sentiu o peso, mas também a estranha doçura escondida nas palavras.
A dança seguiu, obrigando-os a se afastar em segundos. O contato acabou tão rápido quanto começou, mas o fogo já estava aceso.
Do alto da escadaria, Lady Selene observava. Seus olhos verdes estreitaram-se ao ver a filha dançando com um Morthain, mesmo que fosse apenas parte da coreografia.
Do outro lado, Lorde Edric também não perdeu o detalhe.
O salão seguiu em festa, mas sob as tochas mágicas, uma guerra silenciosa acabara de começar. Não era entre exércitos. Não era entre conselhos.
Era entre dois corações que jamais deveriam se aproximar.
E, ainda assim, já estavam perigosamente próximos.
O salão parecia ainda mais abafado conforme a noite avançava. O vinho escorria sem parar, as músicas mudavam, mas o ar estava impregnado de algo que não se dissipava: ódio contido.
De um lado, os Morthain ocupavam sua ala da mesa principal, todos vestidos de preto, suas presenças sólidas como muralhas. Do outro, os Valebryn reluziam em vermelho e dourado, ostentando não apenas riqueza, mas também a confiança fria de quem manipula sombras.
Entre eles, um espaço vazio no centro da mesa — um vão que, mesmo sem cadeiras, parecia mais pesado que pedra. Era simbólico, o espaço da paz que nunca se preenchia.
Caelan sentia os olhos do pai queimando sua nuca cada vez que desviava o olhar do prato. Não ousava procurar novamente a figura que lhe atravessara a mente desde a dança. Em vez disso, mantinha os ombros retos, a postura firme e o silêncio treinado.
— Veja como se portam, Caelan. — murmurou Edric, erguendo o cálice em direção aos rivais. — Serpentes, cada uma delas. Lindas, venenosas. E todos que se aproximam delas acabam mortos.
Caelan não respondeu. Apenas observou, por um instante, a forma como Lady Selene gesticulava ao conversar com um mercador, os dedos dela sempre em movimento, como se manipulasse fios invisíveis. Uma mulher que não precisava erguer a voz para comandar um exército.
— E lembre-se. — continuou Edric, sem perceber o desvio do filho. — Um Morthain não esquece. Eles roubaram terras, alianças, até sangue nosso. O dia em que baixarmos a guarda será o dia em que deixaremos de existir.
Caelan assentiu, engolindo o gosto amargo do vinho. A lição era sempre a mesma, repetida até cansar. Mas o olhar do pai era tão duro que tornava impossível discordar.
Do outro lado, Lyanna mantinha o sorriso frio que aprendera com a mãe. Não sorria de verdade; apenas curvava os lábios como máscara.
— Os corvos parecem especialmente inchados hoje. — comentou Lady Selene, em tom baixo, mas alto o suficiente para os vizinhos ouvirem. — Deve ser difícil fingirem nobreza quando cheiram a ferro e pólvora.
Alguns riram discretamente. Lyanna, porém, permaneceu em silêncio. Sabia que cada palavra ali era uma arma, e o banquete inteiro era apenas um campo de batalha disfarçado de festa.
Ela ergueu os olhos e, por acaso ou não, encontrou o olhar pesado de Edric Morthain. O patriarca a encarava com a dureza de quem gostaria de esmagar todos à mesa. Por reflexo, a garota desviou, mas sentiu um arrepio subir-lhe a espinha.
A tensão aumentou quando o mestre de cerimônias, já embriagado, pediu um brinde à união do reino. As taças se ergueram, mas os olhares atravessaram a mesa como lâminas afiadas.
— À união. — disse Lady Selene, com veneno escondido no sorriso. — Mesmo quando uns sabem apenas destruir e outros sabem criar.
— À união. — respondeu Edric, sem disfarçar o desprezo. — Mesmo quando uns vivem de enganar e outros de lutar de verdade.
O cristal das taças tilintou, mas o som não foi de celebração. Foi de ameaça.
Mais tarde, quando a música recomeçou, a rivalidade deixou de ser apenas palavras. Um jovem soldado Morthain e um aprendiz de mago Valebryn se esbarraram no corredor lateral. O choque foi pequeno, mas o silêncio que se seguiu foi mortal.
— Abra os olhos, serpente. — cuspiu o soldado, empurrando o rapaz de volta.
— Cuidado, corvo. — retrucou o mago, as mãos já faiscando de energia. — Ou posso arrancar suas asas.
Em segundos, um círculo se formou em volta. Soldados de um lado, aprendizes do outro, prontos para transformar o corredor em um campo de batalha.
Caelan chegou rápido, segurando o braço do soldado com força. — Não aqui. — disse, a voz firme. — Eles querem uma desculpa. Não vamos dar.
Do outro lado, Lyanna surgiu como uma sombra, a mão sobre o ombro do mago. — Guarde sua magia. — sussurrou. — Este salão não é campo para sangue.
Por um momento, os dois líderes improvisados — Caelan e Lyanna — se entreolharam sem querer. Não havia ternura ali, apenas a compreensão do perigo. Ambos sabiam: bastava uma faísca para o banquete virar guerra.
Os dois recuaram ao mesmo tempo, e seus aliados, embora relutantes, obedeceram. O corredor se dispersou em murmúrios, mas o veneno da rivalidade só se espalhava ainda mais.
De volta ao salão principal, a música parecia estranhamente mais alta. Talvez fosse apenas para abafar o que quase acontecera.
Edric lançou um olhar fulminante ao filho. — Você devia ter deixado. Sangue Valebryn derramado é sempre um presente para os deuses.
Lady Selene, do outro lado, acariciava distraidamente o cálice. — Estão mais impetuosos do que nunca. Precisamos vigiar. Um corvo desesperado é mais perigoso que um corvo faminto.
Lyanna, no entanto, ainda sentia o peso da cena. A mão de Caelan segurando o braço do soldado, firme, controlada. Ele não parecera um bruto em busca de sangue, mas alguém tentando impedir que o fogo começasse. E isso, paradoxalmente, a deixava ainda mais inquieta.
A noite seguiu, mas a divisão no salão era clara. Riam, brindavam e dançavam, mas os olhos não paravam de vigiar.
O banquete não terminara em sangue. Mas todos sabiam: as muralhas de Drakenshold não segurariam essa tensão para sempre.
E quando ruíssem, não haveria mais música capaz de esconder o som da guerra.
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