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As Noites de Léo

Capítulo 1 – A Primeira Tragada

Léo encostou-se na poltrona gasta da sala, a janela entreaberta deixando entrar o vento morno da noite. A cidade respirava lá fora em buzinas distantes, cachorros latindo em becos, e um brilho alaranjado das luzes refletindo nas paredes do apartamento pequeno. Ele não tinha muito: alguns livros espalhados, discos de vinil empilhados, uma guitarra encostada e aquele sofá velho herdado da mãe. Mas tinha um maço amassado no bolso e dentro dele, enrolado com paciência quase artesanal, um baseado.

Não era a primeira vez que fumava, claro. Mas havia algo diferente naquela noite. Léo estava cansado, mas não era só físico. Era um cansaço da mente, uma exaustão que vinha de perguntas que nunca saíam da cabeça: o que estou fazendo da minha vida? Por que acordo, trabalho, como, durmo e repito tudo outra vez? Existe sentido? Ou somos apenas passageiros num ônibus sem motorista?

Pegou o isqueiro, rodou a pedra, e a chama tremeluziu. Acendeu. A primeira tragada veio forte, queimando os pulmões, mas trazendo logo depois aquela sensação quente que ia espalhando-se pelo corpo. Ele fechou os olhos.

O silêncio ganhou contornos. Cada som parecia se separar em camadas: o barulho da geladeira, o vento batendo na cortina, o zumbido quase invisível de um carro passando. Tudo era detalhe. Tudo fazia sentido, ainda que não soubesse explicar.

De repente, uma ideia veio como um relâmpago:

"E se o mundo for apenas uma projeção das nossas próprias crenças?"

Ele se ajeitou no sofá. A frase parecia não sair da cabeça. Começou a raciocinar, palavras surgindo como um rio que descia montanha abaixo.

— Se tudo que acredito molda minha percepção, então talvez a realidade seja mais maleável do que imagino — murmurou.

Léo sempre se considerou racional, mas ali, sob aquela fumaça, percebeu que a racionalidade talvez fosse só uma parte pequena da mente. E se, no fundo, fosse a imaginação quem ditava o mundo?

Pensou na infância. Nos monstros debaixo da cama que pareciam tão reais. Nos jogos que inventava com os amigos, mundos inteiros que desapareciam quando a brincadeira acabava. O poder da mente estava ali desde sempre, só que depois a vida adulta ensinava a sufocá-lo.

Tragou de novo. Sentiu-se leve.

— E se eu pudesse criar uma filosofia nova toda vez que fumasse? — sussurrou, como se estivesse revelando um pacto com o universo.

E como se tivesse ouvido, sua mente respondeu: então cada noite seria um portal.

A filosofia daquela noite ficou clara: “A realidade é um reflexo da crença.”

Ele ficou repetindo a frase como um mantra. Se acreditasse em algo de verdade, poderia trazer à tona.

Por um instante, riu sozinho. “Isso é só o barato falando”, pensou. Mas logo outra onda de pensamento veio: ou talvez seja o barato mostrando o que sempre esteve oculto.

As horas passaram. Ele pegou um caderno empoeirado que usava raramente e escreveu tudo o que lembrava da experiência. Cada detalhe da sensação, cada frase que surgia, cada raciocínio maluco. Escreveu até a mão doer.

Quando finalmente deitou, já era madrugada. A mente fervilhava, mas o corpo cedeu ao sono pesado.

Na manhã seguinte, algo o surpreendeu.

Assim que abriu os olhos, percebeu um detalhe estranho: o espelho do quarto, rachado há meses, estava inteiro. Sem rachadura, sem marcas. Como novo.

Ficou parado diante dele, esfregando os olhos. Será que eu consertei e não lembro? Mas não, impossível. Nunca mexera naquele espelho.

E então a lembrança da frase da noite anterior veio à tona como um soco:

“A realidade é um reflexo da crença.”

O coração acelerou. Ele tinha escrito no caderno, estava lá.

Sentiu um frio na barriga. Talvez fosse coincidência. Talvez não.

Mas uma coisa era certa: aquilo era apenas o começo.

Capítulo 2 – O Sussurro da Noite

Aquele espelho sem rachadura ainda estava na cabeça de Léo. Ele passava pelo quarto a cada minuto como quem verifica se um sonho ainda é real.

Não havia explicação. Ele se lembrava claramente: a rachadura cortava o reflexo em duas metades desiguais, como se sua própria imagem tivesse sido partida em pedaços. E agora estava ali, liso, perfeito, refletindo sua figura sem falhas.

No trabalho, passou o dia distraído. Respondia mecanicamente às perguntas do chefe, digitava relatórios sem alma e só pensava na noite anterior.

"Será possível?" — repetia em silêncio.

Quando voltou para casa, o sol já havia se escondido e a cidade brilhava em seus reflexos artificiais. As ruas eram um mosaico de luzes e sombras. Léo olhou para o céu escuro e respirou fundo: aquela noite seria diferente.

Ele não resistiu. Acendeu outro baseado.

A fumaça se espalhou pela sala e, com ela, veio aquela sensação conhecida: os sons se ampliaram, o tempo pareceu se esticar, as cores ganharam uma vibração nova.

Mas não era apenas sensação: sua mente se abria como uma janela para algo maior.

De repente, um pensamento tomou forma, claro como se alguém tivesse sussurrado em seu ouvido:

“O tempo não é uma linha. O tempo é um círculo.”

A frase ecoou em sua mente como sinos. Ele riu sozinho, mas logo o riso parou.

— Um círculo… então nada começa, nada termina. Tudo retorna.

Pegou o caderno e escreveu com letras grandes:

> Filosofia da Noite 2: O tempo não é linha. O tempo é círculo.

E então, sua mente viajou.

Se o tempo fosse círculo, então todos os erros se repetiriam. Todas as vitórias também. Cada gesto de agora já teria acontecido e aconteceria de novo. A vida seria uma dança em looping infinito, cada passo já coreografado pela eternidade.

Léo encostou a cabeça na poltrona, o baseado queimando lento entre seus dedos.

— Talvez seja por isso que tenho a sensação de já ter vivido algumas coisas — murmurou. — Déjà vu não é ilusão. É só a lembrança do círculo.

Naquela madrugada, escreveu páginas e mais páginas. Imaginou que, se o tempo realmente fosse um círculo, ele poderia se antecipar, repetir escolhas melhores, corrigir o que já sabia que iria errar.

Quando o sono o venceu, fechou o caderno como quem guarda um tesouro.

---

Na manhã seguinte, a primeira evidência apareceu.

Léo saiu para trabalhar, atravessando a mesma esquina que cruzava todos os dias. E ali, diante da padaria, parou.

Um menino deixou cair uma bola vermelha. Um cachorro correu atrás. A dona do cachorro gritou, tropeçou e quase derrubou a sacola de pães.

Ele congelou.

A cena era idêntica a um déjà vu que lembrava de meses atrás. Não apenas parecida — era a mesma, como se tivesse sido repetida quadro a quadro.

Léo ficou sem ar. O coração acelerou.

A filosofia da noite anterior estava diante dele, viva: o tempo era um círculo, e ele acabara de sentir a dobra.

Não era mais só o espelho.

Agora, a própria vida estava se repetindo.

E no fundo da mente, um sussurro o provocava:

“Se o tempo é círculo… será que posso aprender a caminhar fora dele?”

Capítulo 3 – As Palavras que Criam

O espelho consertado e a cena repetida na rua não saíam da mente de Léo.

Ele não sabia se ria, se tinha medo, ou se simplesmente aceitava.

Tudo estava indo rápido demais.

Naquela noite, depois de um dia inteiro perdido em pensamentos, Léo voltou ao seu ritual. Fechou a janela, apagou a luz, deixou apenas a luminária baixa sobre a mesa.

Pegou o caderno, o isqueiro e um novo baseado.

— Hoje quero respostas — disse em voz baixa, como quem fala com alguém invisível.

Tragou fundo, fechou os olhos, e esperou o turbilhão chegar.

A fumaça o envolveu como um manto, e logo as ideias começaram a brotar.

Mas, dessa vez, não veio uma frase pronta como antes. Veio uma sensação. Algo vibrando na boca, na garganta, como se cada palavra dita carregasse um peso que nunca tinha notado.

E então, como um raio, a filosofia se formou:

“As palavras não descrevem o mundo. As palavras criam o mundo.”

Ele se assustou. Abriu os olhos, olhou ao redor da sala.

— Criam? Como assim criam?

A ideia latejou mais forte:

Quando você diz “a vida é dura”, a vida se torna dura.

Quando você diz “eu sou fraco”, você enfraquece.

Quando você diz “eu posso”, o mundo abre espaço.

Pegou o caderno, escreveu apressado, quase rasgando as folhas:

> Filosofia da Noite 3: As palavras criam o mundo.

Léo levantou-se, andou pela sala como um pregador em transe.

— Então… se eu disser que amanhã vai chover, talvez chova?

Se eu disser que alguém vai sorrir, talvez sorria?

O pensamento lhe pareceu ao mesmo tempo assustador e embriagante.

As palavras como feitiços. Cada frase, uma semente no solo da realidade.

Falou em voz alta:

— Amanhã, eu vou encontrar uma nota de cinquenta reais na rua.

Sorriu de si mesmo. Era ridículo. Era só a viagem da fumaça. Mas, no fundo, acreditava. Uma parte dele acreditava.

Naquela madrugada, dormiu com a sensação de que sua boca carregava mais poder do que imaginava.

---

Amanheceu.

O dia parecia comum. O mesmo caminho até o trabalho, a mesma esquina, as mesmas pessoas apressadas.

Mas no meio do trajeto, algo aconteceu.

Na calçada, perto de uma banca de jornal, o vento soprou um papel contra sua perna. Ele olhou para baixo, irritado, pensando que fosse lixo.

Não era.

Era uma nota. Uma nota de cinquenta reais, dobrada, um pouco suja, mas real.

Léo ficou parado, atônito, com a nota na mão. Sentiu o mundo girar ao redor.

Ninguém veio reclamar. Ninguém parecia notar.

Era dele.

Engoliu seco.

Na noite anterior, ele havia falado aquelas palavras quase como uma piada. E agora estavam ali, materializadas na palma da mão.

O coração bateu forte.

Era verdade. As palavras criavam.

No caminho até o trabalho, não conseguiu pensar em outra coisa.

E pela primeira vez em muito tempo, sentiu medo.

Não era mais coincidência.

Não era só uma viagem.

Algo estava acontecendo.

E uma pergunta ecoava, insistente, em sua mente:

“Se minhas palavras podem criar… o que acontecerá quando eu perder o controle delas?”

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