Marcela sempre começava o dia cedo. O corpo era sua ferramenta de trabalho, e mantê-lo perfeito exigia disciplina. Às sete da manhã já estava na academia, moldando cada curva com repetições calculadas, como se esculpisse a si mesma diante de um espelho invisível. Depois do treino, seguia para o salão de beleza: unhas impecáveis, cabelos loiros sempre no lugar, pele hidratada como porcelana.
Era vaidosa, sim, mas também pragmática. Sabia que cada detalhe era parte do espetáculo que oferecia.
Na hora do almoço, o compromisso era médico. Exames ginecológicos eram rotina, quase diários. Não era paranoia, era método. “Profissão séria exige responsabilidade”, pensava. Enquanto muitas viam pecado, Marcela via apenas trabalho — e uma forma de transformar prazer em poder.
Havia uma regra, porém, que nenhuma cliente ousava quebrar: Marcela não beijava. Nunca.
Beijar era íntimo demais, envolvia algo que não estava à venda. Sexo podia ser encenação; o beijo, não. Era sua última fronteira, a única parte de si que ainda lhe pertencia.
Naquela tarde, a cliente a esperava em um flat luxuoso no centro da cidade. Trinta e poucos anos, bem vestida, perfume caro e olhar carregado de expectativa. O fetiche já havia sido combinado: ela queria se perder, queria ser dominada até o limite, até que a própria vulnerabilidade se tornasse prazer.
Marcela entrou usando lingerie preta rendada, salto agulha e batom vermelho. Não precisava de apresentações; sua presença preenchia o quarto antes mesmo de falar. Aproximou-se devagar, passos de felina, deixando o som dos saltos ecoar no silêncio.
— Você sabe exatamente o que está fazendo… — a cliente sussurrou, já trêmula.
Marcela inclinou o rosto, um sorriso frio desenhando sua boca.
— Eu sei o que você precisa. Mas só terá se me pedir direito.
A mulher mordeu os lábios, entregue antes mesmo de começar. Marcela não se apressou. A mão deslizou pela nuca da cliente, depois pelos ombros, pressionando-a contra a cama. Sua voz baixa, quase um comando:
— Abra as pernas. Quero ver até onde você aguenta.
O jogo se intensificou rápido. Marcela alternava entre lentidão calculada e investidas firmes, conduzindo como quem sabe exatamente onde provocar e onde torturar com desejo. A cliente gemia, arqueava o corpo, suplicava.
— Mais… por favor, mais…
Marcela apenas riu, com aquela frieza elegante que excitava ainda mais.
— Tão fácil te deixar de joelhos…
Quando o clímax chegou, foi violento. A cliente explodiu em prazer, e Marcela cumpriu o fetiche sem hesitar, deixando a mulher estremecer debaixo dela, completamente rendida. O quarto se encheu de respirações pesadas, gemidos sufocados e a sensação de um limite ultrapassado.
Alguns minutos depois, a cliente ainda arfava, agradecendo em sussurros. Marcela apenas se levantou, caminhou até o banheiro e lavou o rosto, sem perder a postura. Não havia envolvimento, apenas trabalho bem feito.
A cliente saiu radiante, mas Marcela permaneceu diante do espelho. O batom borrado, o rosto ainda úmido, os cabelos desgrenhados. Por um instante, o reflexo a encarou de volta, quase desafiador.
Naquele silêncio, ela se lembrou de sua regra. Nunca beijar. O beijo era íntimo, o beijo era alma, e alma nenhuma estava à venda.
O corpo dela podia ser de todas.
Mas o beijo… o beijo era só dela.
Para Marcela, sua casa era intocável. Ali não entrava cliente, não havia gemidos, não havia encenações. Aquele espaço era seu santuário: livros de Direito espalhados pela mesa, canetas marcando trechos de legislação, pilhas de resumos para a prova da OAB. Era o lugar onde ela voltava a ser apenas uma mulher com sonhos — não a prostituta que tantas conheciam de forma carnal.
Passava horas estudando. Lia com atenção, fazia anotações, organizava prazos, decorava artigos. Sua ambição não se limitava ao corpo: queria mais, queria honrar a memória da mãe que a fez prometer que se formaria. E Marcela cumpriria, custasse o que custasse.
Mas havia a outra parte de sua rotina, aquela que garantia o dinheiro para manter tudo em movimento. Para isso, mantinha um flat em um bairro nobre, alugado especialmente para atender suas clientes. Diferente da simplicidade do lar, o flat era luxuoso: lençóis de seda, acessórios caros guardados em gavetas discretas, brinquedos selecionados com o mesmo rigor que alguém escolhe ferramentas de trabalho. Cada detalhe exalava profissionalismo e sofisticação.
Naquela noite, preparava o espaço com cuidado. Limpava as superfícies, trocava a roupa de cama, deixava à mão os acessórios que sabia que usaria. A cliente era uma mulher de 60 anos, com quem já tinha encontros frequentes. Gostava de sexo anal, de acessórios variados, e sempre exigia que Marcela ficasse de quatro. Marcela atendia com a mesma elegância de sempre, controlando a cena com segurança, sabendo exatamente como satisfazer.
O que a intrigava, porém, vinha depois. Terminada a intensidade do sexo, a cliente sempre abria uma garrafa de vinho, oferecia uma taça e puxava conversa. Falava da rotina cansativa, das reuniões que pareciam não acabar nunca, da solidão de chegar em casa, do casamento fracassado com outra mulher que nunca a entendeu.
Marcela ouvia. E, no silêncio atento, percebia que havia ali algo além de transação. A cliente se mostrava carinhosa, quase maternal em certos momentos, e aos poucos Marcela já a via como amiga. Era estranho, mas também reconfortante: naquele universo em que o corpo era vendido, ainda existiam laços que surgiam de forma inesperada.
Enquanto a cliente falava e o vinho enchia as taças, Marcela relaxava pela primeira vez no dia. As paredes do flat testemunhavam gemidos, mas também confidências. Entre uma gargalhada tímida e um olhar cúmplice, Marcela lembrava a si mesma de que, por mais que tudo começasse como trabalho, nem sempre terminava assim.
O corpo dela podia ser de todas, mas sua casa continuava sendo só dela. E era esse limite que a mantinha inteira — pelo menos até onde conseguia acreditar.
Alice.
Era assim que Marcela escolheu ser chamada quando cruzava a fronteira entre a vida real e o mundo que construiu para sobreviver. O nome verdadeiro era íntimo demais, sagrado demais. Alice, ao contrário, era uma personagem. Uma máscara que ela vestia com a mesma precisão com que ajustava a lingerie rendada no corpo.
O nome veio de um filme antigo, visto na adolescência. Uma stripper que dançava como se dominasse o mundo inteiro com o giro de seus quadris. Marcela nunca esqueceu. Apaixonou-se pela liberdade da personagem, pela ousadia dos passos, pela força que se escondia naquilo que muitos viam apenas como provocação.
Agora, aos vinte e oito anos, vivia esse duplo: Marcela, a mulher estudiosa, mergulhada nos códigos e artigos de direito; Alice, a cortesã de luxo, moldada em silêncio, criada para encantar, dominar e cobrar caro.
Naquela manhã, acordou cedo. O apartamento em que morava era seu refúgio, seu lugar sagrado. Ali, não havia espaço para clientes, acessórios ou gemidos pagos. Apenas livros de direito empilhados na mesa, o som suave da cafeteira e a ordem meticulosa de quem precisava de um porto seguro.
Mas o mundo de Alice chamava.
E era por isso que, após o café, Marcela vestiu uma calça justa, amarrou o cabelo loiro em um coque alto e saiu rumo ao estúdio de dança.
No estúdio, o cheiro de madeira encerada e perfume doce preenchia o ar. A professora ligou a música, um beat grave, lento, feito para despertar desejos ocultos. Marcela respirou fundo, e então Alice tomou o controle.
Saltos altos.
Corpo arqueado.
Quadris que deslizavam em movimentos calculados, cada gesto carregado de poder.
Enquanto os espelhos refletiam a imagem da loira, havia algo além do erotismo no olhar dela. Havia uma estratégia. Marcela sabia que quanto mais refinada fosse sua performance, mais caras seriam suas horas. O stiletto não era apenas dança; era investimento. Era como decorar um artigo do Código Penal — mas, dessa vez, para aplicá-lo na pele, não no tribunal.
— Mais força no olhar, Alice! — a professora corrigiu, usando o nome que Marcela deixava escapar às vezes. Ela sorriu, consciente de que até ali sua persona já se infiltrava.
E, de fato, havia uma força. Uma intensidade que não era apenas corporal, mas emocional. Enquanto deslizava as mãos pelas próprias coxas, enquanto curvava a coluna e deixava o pescoço exposto, Marcela refletia sobre sua escolha.
Beijar, por exemplo.
Ela não beijava clientes. Nunca. O beijo, para ela, era intimidade. Sexo podia ser encenação, podia ser entrega física, podia até ser arte. Mas o beijo era real demais. E o real era dela, apenas dela.
Os minutos passaram e o suor escorreu pelo seu corpo, desenhando linhas brilhantes sobre a pele branca. Quando a música terminou, Marcela respirou fundo, arfando. Alice, por ora, estava satisfeita.
De volta ao vestiário, ela trocou o figurino por roupas discretas e guardou os saltos na bolsa. O telefone vibrou. Uma mensagem de uma cliente para a noite seguinte. O flat luxuoso que alugava já estava reservado, cheio de acessórios, cheiros e lençóis de seda.
Mas, naquele instante, no silêncio do estúdio esvaziado, Marcela permaneceu imóvel por alguns segundos diante do espelho. Fitou a si mesma.
— Quem você é agora? — murmurou baixinho.
A resposta, como sempre, ficou suspensa.
Marcela.
Alice.
Mulher.
Prostituta.
Advogada em formação.
Todas coexistindo, todas necessárias.
E enquanto caminhava pela rua ensolarada, o salto dos sapatos ecoando contra o asfalto, ela tinha plena consciência de que sua história era escrita a cada movimento de quadril — e a cada página de código que sublinhava nas madrugadas.
O flat estava impecável. Alice — nome que Marcela usava como armadura e personagem — acendeu velas discretas, espalhou taças de cristal sobre a mesa e colocou a música certa. Não era apenas um encontro; era um ritual. O nome verdadeiro ela guardava como segredo, mas Alice… Alice era liberdade, era fogo, era o personagem que ela inventou depois de ver aquele filme na adolescência. A stripper que a marcou ainda vivia nela, como um lembrete de que o corpo também pode ser arte e poder.
A campainha tocou.
Alice abriu a porta e recebeu sua cliente de dois meses. Quarenta e cinco anos, olhar seguro, pele marcada por experiências que a deixavam ainda mais atraente. Era madura, sabia o que queria e como queria. O jogo de dominação já começava no sorriso de canto que lançou para Alice, como se dissesse: “Hoje você é minha.”
Alice entregou uma pequena caixa, elegante, como quem oferece uma joia.
— Hoje trouxe novidades. — sussurrou, deixando a cliente abrir e encontrar várias dedeiras delicadas. — Para você brincar com segurança… e me deixar perder o fôlego.
A outra arqueou uma sobrancelha, excitada pelo detalhe.
— Você sempre sabe como me provocar, Alice.
A música começou. Alice calçou seus saltos finos, caminhou até o centro do quarto e deixou o corpo responder. A dança de Stiletto era um espetáculo à parte: quadris ondulando, mãos deslizando pela própria pele, cada passo ensaiado para parecer natural. O strip-tease era lento, provocador, roupas caindo peça por peça enquanto a cliente a observava, mordendo o lábio, bebendo cada movimento.
O primeiro gole de vinho veio acompanhado de risadas baixas. Alice, ainda em performance, se aproximou, sentou-se no colo da cliente e, sem pressa, deixou o decote roçar o queixo dela.
— Quero ver você perder o controle. — murmurou no ouvido.
E assim começaram. As taças de vinho foram abandonadas quando os corpos se buscaram com fome. Alice de joelhos, chupando o clitóris da cliente até sentir o corpo dela estremecer e a respiração falhar. Depois, a inversão: sua cliente se debruçando entre suas coxas, a língua firme, sem pressa, tirando dela gemidos sinceros.
Alice nunca fingia. Nunca. E era isso que mantinha aquelas mulheres voltando. Se não gozasse, dizia. Se o prazer era real, mostrava. E naquele momento, gemia sem pudor, corpo entregue, suado, vivo.
Ainda ajoelhada, Alice vestiu uma das dedeiras e deslizou os dedos pela intimidade da cliente. Penetrou-a devagar, depois mais firme, observando a mulher fechar os olhos e arfar. A cliente gemeu seu nome, arrastando cada sílaba:
— Aaaalice…
Alice apenas sorriu, o olhar profundo cravado nela, segura do poder que tinha naquele instante. Não precisava de palavras; bastava aquele sorriso para dizer tudo.
Quando o orgasmo explodiu, o flat inteiro pareceu se encher de calor. Alice se afastou devagar, tirou a dedeira, limpou-a com cuidado e voltou a sentar-se ao lado dela, rindo baixo, cúmplice. As duas brindaram com mais um gole de vinho, como se acabassem de selar um segredo.
Na pele de Alice, Marcela respirava fundo. Era mais do que sexo. Era poder, era entrega, era uma verdade que ela conseguia viver apenas ali.
Alice estava deitada na cama do flat, ainda nua, o suor secando lentamente sobre a pele. A cliente tinha ido embora há menos de meia hora, deixando no ar o cheiro adocicado do vinho e o rastro de uma noite intensa. O lençol amassado parecia guardar segredos, mas para Alice havia apenas uma certeza: ela não fingia. Nunca fingia.
Enquanto acendia um cigarro — ritual que reservava só para aquele apartamento —, sua mente viajava. Ela lembrava do olhar da mulher pouco antes de gozar, o jeito como a cliente gemeu o seu nome como se ele fosse uma oração. Alice. Não Marcela. Não a advogada em formação. Não a filha que prometeu à mãe realizar um sonho. Mas a personagem, a fantasia.
E ainda assim, havia uma verdade ali.
Alice não oferecia beijos, não oferecia a intimidade que o beijo carregava. Para ela, o beijo era uma confissão, um deslize perigoso que poderia confundir os limites entre trabalho e desejo. Mas quando dava prazer, dava por inteiro. Nunca fingia orgasmos, nunca simulava arrepio. Se gozava, era porque realmente sentia. Se não, dizia sem rodeios.
Essa sinceridade, descobrira, era o que prendia suas clientes. Muitas confessavam em conversas pós-sexo que estavam acostumadas com fingimentos, com parceiras que diziam o que elas queriam ouvir. Alice, ao contrário, mostrava quando algo a excitava de verdade — e quando não. Transformava cada encontro em um jogo de descobertas.
Ela se lembrava da primeira vez em que uma cliente lhe perguntou:
— Você sempre goza comigo?
E Alice, com um meio sorriso, respondeu:
— Nem sempre. Mas quando acontece, você sabe que é real.
Era isso. A verdade nua e crua. Sem máscaras além daquela que escolhera para trabalhar.
Enquanto apagava o cigarro no cinzeiro de vidro, Alice se levantou, enrolou-se em uma seda leve e foi até a janela. O flat no centro da cidade oferecia uma vista iluminada, prédios altos e carros em constante movimento. Ninguém ali sabia quem era a mulher de cabelos loiros que se escondia atrás do nome falso. E ela gostava assim.
Mas havia algo que sempre a fazia pensar. Aquela linha tênue entre Marcela e Alice. Entre a estudante de direito, dedicada, que passava horas mergulhada em livros de processo civil, e a cortesã luxuosa que alugava flats caros e dançava Stiletto para provocar suas clientes.
O reflexo no vidro lhe devolveu a imagem: loira, sexy, olhos vivos, mas também um cansaço discreto na expressão. Ela sorriu de leve.
“Talvez meu segredo seja esse… nunca dar tudo, mas dar o suficiente para que sintam que tocaram algo verdadeiro.”
Deixou a seda escorregar pelo corpo, nua outra vez, como se reafirmasse a si mesma: Alice não fingia. E isso, paradoxalmente, era a mentira mais sedutora que oferecia ao mundo.
...🌃...
Miranda estacionou o carro em frente ao prédio discreto, daqueles que escondem mais do que revelam. A advogada bem-sucedida, dona de uma reputação implacável nos tribunais, tinha atravessado a vida acreditando que sexo era algo íntimo, carregado de vínculos e afetos. Pagaria, sim, por livros raros, vinhos envelhecidos, viagens de luxo — mas nunca por um corpo. Até agora.
A curiosidade, no entanto, era uma chama que queimava lento e constante. Num grupo de WhatsApp restrito, onde mulheres lésbicas dividiam confidências, surgira um nome repetido em sussurros digitais: Alice.
Elas falavam dela com devoção quase religiosa. Elogiavam o jeito de não fingir, de ser transparente até na entrega. Chamavam-na de vício.
Miranda riu sozinha na primeira vez que leu. Um absurdo. Pagar por sexo? Ridículo. Mas o riso não foi suficiente para silenciar a semente que brotou em sua mente.
Alice.
Um nome que não saía da sua cabeça.
E assim, sob a desculpa de pesquisa para seus contos eróticos — uma verdade pela metade —, Miranda marcara o encontro.
O flat de Alice era luxuoso e gelado. O ar-condicionado mantinha a sala numa temperatura quase cruel, como se a própria atmosfera estivesse disposta a testar a resistência de quem entrava. Luzes baixas, cortinas pesadas, móveis de linhas retas. Nada gritava vulgaridade. Tudo era calculado, quase elegante demais para a função que servia.
E então Alice surgiu.
Não como a jovem comum que Miranda talvez tivesse imaginado, mas vestida exatamente como a fantasia da cliente exigira: saia lápis preta, camisa branca abotoada até o pescoço, salto agulha e óculos de armação fina. Uma advogada. Um reflexo distorcido de si mesma.
Miranda estremeceu.
Era como encarar um espelho erótico — provocador, insolente. A cópia idealizada de sua própria imagem, mas carregada de uma sensualidade que ela nunca ousara mostrar nos corredores de tribunais.
Alice caminhava devagar, cada passo medido, os saltos ecoando como marteladas na mente da cliente. O olhar dela não era servil, tampouco distante. Era de quem sabia exatamente o valor que carregava.
— Doutora Miranda — disse Alice, a voz suave, quase debochada. — Seja bem-vinda.
O tom atravessou a advogada como um desafio. Miranda sorriu de canto, acostumada a ler subtextos, mas surpreendida por sentir, naquele instante, que estava em desvantagem.
O jogo estava armado: duas mulheres poderosas, duas máscaras sociais, frente a frente em um teatro privado.
Mas o narrador, cúmplice oculto, já sabia — naquela sala gelada, entre espelhos e silêncios, quem realmente conduziria a narrativa não era a cliente curiosa. Era Alice, a mulher que nunca fingia.
O salto de Alice se arrastou pelo mármore até parar diante de Miranda. Não havia pressa em seus movimentos. Não havia nervosismo, tampouco hesitação. Era a calma de quem sabia que já tinha vencido antes mesmo da primeira jogada.
Miranda, porém, cruzou as pernas e manteve o queixo erguido. Estava ali sob uma desculpa frágil — pesquisa literária — mas não se permitiria ceder a um terreno onde não controlava as regras.
Alice serviu vinho sem perguntar, os dedos firmes na garrafa, e deixou a taça diante dela. Depois sentou-se no sofá de frente, pernas também cruzadas, a saia justa moldando curvas estudadas. Não sorria. Apenas observava, como quem desmonta uma testemunha no tribunal.
— Então — disse Alice, a voz baixa, grave, arrastando cada sílaba —, você me contratou… para conversar.
A ironia era clara. Um desafio mascarado de constatação.
Miranda levou a taça aos lábios, disfarçando a súbita onda de calor que lhe subia pela pele.
— Já deixei claro no início. Não comprei o seu corpo. — Deu uma pausa, medindo a reação. — Comprei a sua experiência.
Alice inclinou o rosto, os óculos refletindo a luz suave do abajur.
— E você acha que experiência é menos íntima do que o corpo?
A pergunta bateu fundo. Miranda sentiu o ar rarefeito, o vinho áspero descendo pela garganta. Ela queria retrucar, mas a voz de Alice era uma corrente que a arrastava para fora de suas certezas.
Alice se inclinou para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, a boca a centímetros da pele de Miranda. Não a tocou. Apenas sussurrou, carregando no tom uma lascívia calculada:
— Sabe por que elas falam de mim, doutora? Porque eu nunca finjo. Nunca beijo um cliente. Nunca ofereço mais do que sou. É por isso que me desejam… e é por isso que você está aqui.
Miranda respirou fundo, o corpo reagindo contra a própria lógica. Não desejava. Não pagaria para isso. Não era como as outras. Mas havia algo de perigoso em ouvir uma mulher se proclamar com tanta convicção.
Ela sorriu de canto, a voz carregada de ironia para disfarçar o arrepio.
— Você parece se orgulhar de ser exceção.
— Não — Alice recostou-se, deslizando lentamente a mão pela própria coxa, sem pudor, sem vergonha. — Eu me orgulho de ser verdadeira. A maioria mente no corpo, mente no prazer. Eu não. E você, Miranda… — a voz se estreitou, como lâmina no escuro —, quando foi a última vez que não precisou mentir?
O silêncio estourou entre elas, denso, sufocante.
Miranda sentiu o golpe. Alice a havia despido sem sequer encostar um dedo.
— Você acha que me conhece? — retrucou, num sussurro que mais parecia rendição.
Alice sorriu, aquele tipo de sorriso que não pede permissão.
— Eu sei que você veio aqui pensando que estaria no controle. Mas a única coisa que controla, doutora, é a sua toga. Aqui… — ela abriu os braços, deixando o ambiente falar por si — você é só mais uma mulher curiosa.
Miranda apertou a taça, o vinho manchando levemente os dedos. O corpo reagia à provocação de formas que ela não queria admitir. O coração acelerado, o calor espalhado entre as pernas.
Mas não. Ela não iria ceder. Não iria.
E então ela riu, baixinho, quase amarga.
— Você é perigosa, Alice.
— Só para quem tem medo de se olhar no espelho — respondeu, a voz suave como veneno.
Aquela noite não teve sexo. Não houve beijos, nem toques roubados. Mas Miranda saiu do flat com algo que doía mais do que qualquer entrega física: a sensação de que Alice a havia atravessado por dentro, arrancando máscaras que nem ela sabia que usava.
E no silêncio do carro, estacionado sob as luzes da cidade, Miranda percebeu — não era o corpo de Alice que tantas mulheres elogiavam.
Era o poder.
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