O Inferno nunca dói. Nunca cansa. Nunca surpreende. Séculos se acumulam e a dor não passa de uma lembrança distante, algo que só existe nos mortais que se enganam pensando que o sofrimento é novidade. Eu nunca senti dor. Nunca senti alerta. Nunca senti nada.
Meu nome é Azeriel. Para os que ousam murmurar sobre o Diabo, sou apenas sombra, silêncio, inevitabilidade. Para mim mesmo, sou apenas constante. Até aquela noite.
Estava sozinho na câmara mais profunda do Inferno, entre labaredas que não queimavam e correntes que não prendiam, contemplando o vazio que eu chamava de lar. Milênios de solidão não produzem tédio; produzem precisão, consciência absoluta do que é, do que será e do que jamais mudará.
E então, aconteceu.
Uma pontada atravessou minha essência. Um estalo, agudo, impossível. Não física, não mortal. Algo dentro de mim gritou, algo que nunca se atrevera a se mover. Eu senti dor. Pela primeira vez.
Minha cabeça girou. O Inferno inteiro parecia tremer levemente. Até mesmo os ventos carregados de cinzas pareciam se curvar à força que emergia em outro lugar. Eu não compreendia a origem, mas sabia que algo estava errado. Algo — ou alguém — havia quebrado a ordem.
— O que… — minha voz saiu mais baixa que um sussurro, e mesmo assim reverberou pelas câmaras vazias. — …o que é isso?
Nunca senti dor. Nunca senti alerta. Nunca senti desordem como essa. Mas agora… cada fibra da minha existência gritava que algo no mundo fora alterado, que uma força antiga acabara de ser liberada. Uma energia pura, intensa, que mesmo distante conseguiu atravessar dimensões e tocar a sombra de quem eu sou.
Não havia sangue, nem batalha, nem gritos de revolta. Apenas… algo nascendo. Um poder antigo, escondido, recém-colocado no mundo. Eu não sabia onde. Eu não sabia como. Eu não sabia quem. Só sabia que algo mudou. E isso era perigoso.
A dor passou tão rápido quanto veio, mas deixou uma marca, uma lembrança inquietante. Um alarme silencioso que me dizia: “O equilíbrio foi quebrado. Fique atento. Algo nasceu que não deveria existir — ou que ainda não deveria existir.”
Eu me levantei, andando entre as labaredas que não queimavam, tentando localizar a fonte, mas não havia nada. Nenhum sinal de invasão, nenhuma brecha, nenhuma alma humana ou criatura tentando atravessar as portas do Inferno. Apenas o alerta persistente na minha essência, como um dedo invisível apontando para o mundo que eu havia deixado lá em cima.
Nunca havia sentido nada assim. Nem a perda, nem a raiva, nem a malícia. Dor? Alerta? Algo que dizia que a ordem antiga não existia mais? Isso era novo. Um aviso que cortava mais fundo do que qualquer lâmina.
— Então… algo está acontecendo — murmurei, meus olhos negros se fechando enquanto tentava compreender a dimensão do que sentira. — Algo que eu… não posso ignorar.
E não podia.
A força que senti era pura, antiga, inconsciente. Ainda sem forma, ainda sem corpo, mas já suficiente para atravessar planos e me tocar. Um nascimento de poder que eu jamais esperaria sentir. Uma luz latente que anunciava mudanças irreversíveis no mundo humano.
Se houvesse algum modo de ver através do véu do tempo, eu teria visto: uma criança, recém-nascida, envolta em calor e vida, chorando de forma inocente, inconsciente do que corria em suas veias. A essência do Sol, colocada dentro dela pelo destino — ou pelo acaso — despertava uma reação que atravessava mundos.
E eu senti isso.
Nunca senti antes. Uma dor, um alerta, uma desordem que me dizia que algo importante, algo perigoso, tinha começado. Eu não sabia quem era. Eu não sabia onde. Mas sabia que algo no mundo humano acabara de mudar.
Minha mão se fechou em punho, e mesmo no Inferno, onde nada deveria ser perturbador, eu fiquei inquieto. Nunca ficava inquieto. Nunca sentia a necessidade de mover-me sem razão. Mas aquela sensação era diferente de tudo que eu conhecia: uma vibração na essência do mundo, um aviso de que algo crescia silenciosamente, e que iria afetar tudo que eu conhecia.
— Curioso — murmurei, mais para mim mesmo do que para qualquer outro ser. — Muito curioso…
E, pela primeira vez em milênios, percebi que o impossível estava acontecendo. Um poder que eu jamais detectaria se estivesse dormindo, se estivesse ignorante, se não fosse eu, que senti cada ondulação do universo.
O Inferno estava calmo. As chamas dançavam lentamente, as correntes permaneciam no lugar. Mas algo havia mudado fora daqui. Algo estava nascendo. Algo que eu não conhecia, e ainda assim, já me afetava.
E mesmo sem saber quem, mesmo sem saber onde, a primeira dor havia me avisado: o mundo humano estava prestes a ganhar uma luz que ninguém poderia ignorar. E, de alguma forma, aquela luz começava agora.
E eu sabia. Eu sempre sei.
Porque quando o equilíbrio se quebra… o Diabo sente.
Nasci em uma manhã comum, com o céu pintado de tons suaves de azul e dourado, como se o mundo estivesse tentando me cumprimentar. Para mim, era apenas a primeira sensação do calor do sol na pele, o cheiro de flores e de terra molhada. Não havia nada extraordinário naquele instante — mas, aos poucos, fui percebendo que, para mim, o mundo tinha nuances que outros não pareciam notar.
Minha infância foi feita de pequenos detalhes que ninguém explicava: livros que pareciam abrir sozinhos nas páginas que eu precisava, luz que parecia mais intensa quando eu estava feliz ou assustada, e plantas que cresciam mais rápido ao meu redor sem motivo aparente. Meus pais diziam que eu tinha imaginação fértil, que era sonhadora, curiosa, mas eu sentia algo diferente. Algo dentro de mim que não sabia nomear.
Crescer foi uma mistura de inocência e perguntas silenciosas. Aprendi a andar, correr, cair e levantar como qualquer criança. Mas havia momentos em que eu sentia calor sem explicação, uma energia que parecia querer sair de mim, mas eu não conseguia controlar. Uma vez, quando tinha seis anos, coloquei a mão sobre a janela e senti a luz do sol pulsar de forma intensa, quase como se ela respondesse ao meu toque. Minha mãe me olhou assustada, e eu sorri, sem entender o motivo do susto dela.
Os dias se sucediam com a normalidade de uma vida humana: escola, amigos, festas de aniversário, pequenas frustrações e alegrias simples. Mas por mais que eu tentasse ser comum, havia momentos em que as coisas ao meu redor pareciam reagir à minha presença — o vento mudava de direção, sombras se afastavam, o calor do sol parecia me envolver como se estivesse vivo. Eu nunca contei a ninguém, nem mesmo a meus pais, que eram humanos comuns e me amavam com toda a simplicidade que podiam oferecer.
Aos oito anos, percebi que meus sonhos eram diferentes dos dos outros. Não eram apenas sonhos comuns, mas experiências vívidas: paisagens de luz, fogo que não queimava, vozes distantes chamando meu nome. Eu acordava com o coração acelerado, os olhos brilhando com uma sensação que eu ainda não conseguia explicar. Mas, no fundo, havia uma felicidade estranha — uma certeza de que eu era especial, mesmo que não soubesse exatamente o porquê.
Durante a adolescência, tudo ficou mais intenso. Minha curiosidade cresceu, junto com a sensação de que havia algo dentro de mim que não podia controlar. Se ficava muito tempo sob o sol, sentia calor demais, como se ele reagisse à minha presença. Eu me perguntava se todos sentiam isso, mas os olhares dos outros me diziam que não. A cada aniversário, a cada passagem de ano, percebia que eu era diferente.
Quando completei quinze anos, notei que minhas emoções começavam a influenciar o ambiente de forma mais evidente. Se eu estava triste, a luz ao redor parecia se apagar, e as plantas murchavam levemente, mesmo que eu não entendesse o motivo. Quando estava alegre, a luz parecia se intensificar, e pequenas faíscas douradas surgiam na ponta dos meus dedos sem eu tocar em nada. Cada gesto, cada sentimento, tinha um efeito que eu não compreendia.
Mesmo assim, a vida humana continuava. Eu estudava, tinha amigos, festas e pequenas aventuras comuns. Era tudo o que eu conhecia. Mas, entre sorrisos e conversas, havia sempre aquele sentimento de que eu carregava algo mais — um poder adormecido que não sabia usar e nem deveria existir ali.
Os dezoito anos chegaram silenciosamente. Nenhum alarde, nenhuma grande revelação. Apenas o dia que marcou minha passagem para a vida adulta. Eu ainda não sabia quem era realmente. Ainda não sabia que carregava o poder do Sol dentro de mim. Mas naquele aniversário, percebi algo diferente: uma sensação de energia que se acumulava, pulsando dentro do peito, intensa e quente, como se estivesse esperando o momento certo para se manifestar.
Naquele instante, eu não entendia nada. Só sentia que estava prestes a mudar. O mundo que eu conhecia como humano estava prestes a se expandir, a se revelar em cores e forças que ninguém poderia imaginar. E, sem saber, eu estava pronta para o despertar daquilo que me tornaria mais do que apenas humana.
O Inferno é silencioso. Sempre foi. Labaredas dançam em passos previsíveis, correntes se estendem em ritmos que ninguém mais consegue notar. Eu me movo entre tudo isso como parte do próprio equilíbrio.
Passei séculos procurando algo que pudesse perturbar minha essência, algo que pudesse quebrar o equilíbrio que eu, inevitavelmente, mantenho. Mas nunca encontrei. Nada despertava a sensação que há milênios não sentia: dor. Não física, não mortal. Um aviso do universo.
Eu pensei que não aconteceria de novo. Que aquela sensação era uma ocorrência única, ligada a eras passadas que o tempo havia apagado. Mas estava errado.
O tempo passou. O mundo humano continuou sua rotina previsível, sem perceber as ondas que atravessam dimensões. E então, após dezoito anos de silêncio… senti.
Uma pontada atravessou minha essência. Aguda. Estranha. Queimando de uma forma que eu nunca havia sentido. Uma dor que era aviso, alerta, ruptura. Algo fora do lugar. Algo crescendo silenciosamente no mundo dos mortais.
Minha primeira reação foi ignorar. Sempre tento ignorar. Mas meu corpo… minha essência… não permitiu. Aquela energia não podia ser ignorada.
— Não… — murmurei, cruzando os braços, enquanto as chamas ao redor se agitavam sutilmente. — Não é possível… Não deveria haver mais nada…
Mas havia.
A dor não me mostrava o motivo. Não me dizia onde ou quem. Apenas gritava que algo estava acontecendo, algo que quebraria o equilíbrio se ninguém interviesse. Algo tão potente que atravessava dimensões e me alcançava aqui, no Inferno, intacto e impossível de esconder.
Decidi subir. Subir ao mundo humano. Precisava investigar. Precisava sentir a origem. Precisava ver o que havia causado essa perturbação que, de alguma forma, atravessara séculos de silêncio e milênios de ordem.
O mundo humano me recebeu com cores fracas demais e barulhos demais, mas eu não me importei. Nada era tão importante quanto a sensação que pulsava em minha essência.
E então eu a encontrei.
Ela não sabia nada. Nunca havia suspeitado de seu poder. Nunca sentira nada além do calor humano comum. Mas estava ali, andando distraída, carregando livros, imersa em sua vida humana de dezoito anos, totalmente inconsciente da energia que emanava.
O encontro não foi planejado. Não houve aviso, não houve drama, apenas um esbarrão casual. Ela bateu em mim sem perceber. Um choque mínimo de contato físico, e, de repente, a sensação que eu sentira no Inferno voltou com intensidade multiplicada.
O calor queimou minha essência de forma diferente, mas fascinante. Era energia viva, pura, indomável. Um alerta que eu não conseguia ignorar. Pela primeira vez, não havia frieza em minha curiosidade — apenas fascínio e sede de entender o que acontecia.
— Interessante — murmurei, meu olhar percorrendo cada detalhe dela. — Muito, muito interessante…
Ela recuou, os olhos enormes de surpresa, ainda segurando os livros.
— Oh! Desculpe… eu não vi você — disse, completamente confusa, olhando para mim como se eu fosse uma loucura ambulante.
— Não, você não viu — disse eu, mantendo os braços cruzados, a voz baixa, fria, mas com um toque de curiosidade afiada. — Mas de alguma forma, conseguiu me atingir. E isso… — meus olhos se estreitaram — …isso é impossível de ignorar.
Ela piscou, incrédula.
— Me atingir? Eu… não sei do que você está falando. — Ela recuou mais um passo. — Você está louco?
Sorri de lado, mas não com gentileza. Um sorriso que mistura sarcasmo, surpresa e fascínio.
— Talvez eu seja. Ou talvez você seja. Porque algo dentro de você acabou de… mexer com o mundo. E eu senti.
Ela franziu o cenho, completamente perdida.
— O que você quer dizer com isso? Eu não sei do que você está falando! — disse, tentando manter distância.
— Não precisa saber — murmurei, os olhos ainda fixos nela. — Por enquanto. Mas saiba disso: algo dentro de você mudou tudo. E eu… nunca senti nada assim antes.
Ela piscou novamente, sem entender nada. — Você é louco. Definitivamente louco.
E eu percebi, pela primeira vez desde que subi ao mundo humano, que não precisava de respostas imediatas. Apenas precisava observar. Porque aquele toque, aquele esbarrão, revelou mais do que qualquer explicação poderia.
O poder dela não era apenas um alerta. Era vivo. Pulsava, queimava e chamava atenção de uma maneira que me deixou curioso como nunca antes.
E, pela primeira vez em milênios, algo humano conseguiu despertar meu interesse sem que eu tivesse que buscar, sem que eu soubesse o nome, sem que eu tivesse qualquer pista do que se tratava.
E isso… era perigoso.
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