JAMILE — CAPÍTULO 1
(antes de Brasília, só eu, do começo ao agora)
Meu nome é Jamile.
Meu cabelo é negro como noite sem lua, liso, caindo pesado até a cintura, e sempre parece que tem pressa de tocar o chão. Minha pele carrega o dourado teimoso de quem nunca deixa o sol passar sem deixar marca. Minhas sobrancelhas são grossas, desenhadas pela natureza, sem pedir licença pra emoldurar meu olhar. Minha boca é cheia, pintada quase sempre em tons de pêssego — porque gosto de parecer pronta até quando o cansaço me empurra. Quando prendo o cabelo num rabo de cavalo alto, não é só vaidade. É bandeira: foco, disciplina, um lembrete de que nada me quebra sem luta.
Perfume suave, roupas firmes. Escolho o que visto como quem escreve um discurso: saia que valoriza meu corpo, camisa que não pede desculpa por ser justa. Brinco pequeno, relógio discreto, salto médio. Cada detalhe é mensagem. Não nasci forte. Virei.
Os 12 anos que me partiram ao meio
O mundo quebrou cedo. Eu tinha 12 quando meus pais morreram num acidente de carro. Era um sábado comum até o telefone tocar, a porta bater, a correria na sala. Lembro de um par de chinelos do meu pai virados na porta da cozinha — cena banal que virou tatuagem na memória. Depois disso veio o silêncio pesado, a papelada, a voz das pessoas sempre num tom baixo, como se falassem com medo de acordar minha dor. No dia do enterro, não chorei. Fiquei travada, como se meu corpo tivesse esquecido como se faz. A primeira lágrima só caiu três dias depois, no azulejo frio da casa dos meus avós, quando Vó Zuleide me abraçou e disse:
“Chora, minha filha. Água parada apodrece.”
Foi ali que aprendi que até o choro é sobrevivência.
O colo que me reergueu
Vó Zuleide e Vô Agenor viraram meu mundo. Ela com suas mãos pequenas, firmes no fogão, fazendo milagres com farinha e sal. Ele, homem de costas largas, silêncio sábio e frases curtas: “Não deve, não teme.” Foi o primeiro código penal que conheci, muito antes de abrir um livro de Direito.
Aos 13, eu já fazia arroz soltinho sem deixar papa, atravessava a cidade de ônibus, sabia sentir saudade pelo cheiro do travesseiro. Vô me buscava na escola com dois pães de queijo embrulhados em guardanapo e uma garrafinha de café. “Pra não estudar de barriga vazia”, dizia.
Adolescência como trincheira
Aos 14, descobri que responder não é grosseria — é defesa. Quando me mandavam sorrir, eu sorria só se tivesse vontade. Quando queriam que eu cortasse o cabelo, respondia: “Meu cabelo, minhas regras.” Descobri que feminilidade não é enfeite, é fortaleza com batom.
Aos 15, já era a aluna que emprestava caneta, fazia resumo e segurava a barra de quem desmoronava. Li Carolina Maria de Jesus antes da Constituição. Ninguém me contou que as duas falavam da mesma coisa: dignidade e sobrevivência.
A obsessão pelo diploma
Aos 16, inventei meu ritual: sexta-feira era dia de fazer as unhas, passar óleo no cabelo, organizar a escrivaninha e repetir pra mim mesma: “Você vai sair daqui com um diploma.” Não era vaidade. Era sobrevivência pintada de vermelho.
Aos 17, fiz vestibular estudando em mesa de plástico, com panela de pressão apitando e vizinho ouvindo música alta. Passei. Direito. O nome na lista foi como ouvir minha mãe de novo, só que na voz da Vó, chorando de alegria. Vô fingiu que era poeira nos olhos. “Vai, mas não esquece de onde veio.”
A faculdade e a forja
Aos 18, fiz minha primeira petição de mentira num júri simulado. Descobri que escrever podia mudar o peso do mundo. Aos 19, entrei como estagiária num gabinete da defensoria: dois dias por semana, salário pequeno, mas aprendizado imenso. Vi mulher fugindo de marido violento, menino embalado pelo sistema como mercadoria. Saía das audiências com raiva — mas a raiva não me azedou. Fiz dela combustível.
Aos 20, já comprava meus próprios livros, ajudava nas contas da casa e desenvolvi um superpoder: detectar babaca em três frases. E a cura? Limite. Não gritava, não baixava a cabeça. Só colocava barreira. “Jamile é difícil.” Não. Eu só não sou fácil pra quem confunde gentileza com tapete.
O coração também prova
Aos 21, me apaixonei errado. Bonito, inteligente, mas frouxo de responsabilidade. Achei que poderia salvar. Aprendi que não dá pra resgatar quem não quer nadar. Terminei firme, sem voltar atrás. Vó me deu chá de boldo e disse: “O amor que vale é o que não te maltrata.” Escrevi no meu caderno: lembrete vitalício.
O corpo da mulher e a armadura
Aos 22, já tinha um terno preto que me deixava maior por dentro. Aprendi a dizer “não” em dois segundos, e a fazer um delineado em cinco minutos. Entrei numa ONG que oferecia orientação jurídica a mulheres. O ventilador fazia mais barulho que vento, mas foi ali que aprendi mais do que em muitas aulas: cada história que chegava àquela sala era faca e espelho.
Quem eu sou agora
Sou prática, direta, mas guardo poesia no bolso. Rio alto. Danço sozinha arrumando a cama. Não me explico pra quem não merece. Sou filha de tragédia, mas neta de sobrevivência.
Meus avós são minha pátria. Pagaram minha faculdade com aposentadoria apertada. Quando minhas notas caíam, Vó me botava pra andar. “Cabeça cansada precisa de céu.” O quartinho do fundo virou biblioteca improvisada, cheirando a mofo e promessa. Ali decidi: não basta saber lei. É preciso saber gente.
A virada: Brasília
Foi um professor quem me indicou a um escritório grande da capital. Disse que eu tinha cabeça e nervo. A notícia chegou numa terça. Na quarta eu já tinha lista de afazeres: encerrar estágio, separar documentos, procurar apartamento, levar o terço do Vô, o retrato dos meus pais, o brinco da aprovação.
Contei no jantar. Mesa com arroz, feijão grosso, bife acebolado. Vó sorriu de canto. Vô bebeu Coca-Cola e disse: “Vai. Estrada é feita andando. A gente empurra daqui com pensamento bom.”
Nos dias seguintes, arrumei minha vida em caixas. Deixei pra trás roupas que não me cabiam, culpas velhas, medos bobos. Guardei só o essencial: ossos, história, disciplina. Fiz minhas unhas vermelhas. Escrevi no espelho: “Guerreira de esmalte em dia.” Ri da minha própria breguice.
Na última noite, sentei no quintal com Vô e Vó. Céu cheio de estrelas que cidade grande engole. Eles contaram pela enésima vez como se conheceram num forró. Ri junto. Amor é isso: repetição que não enjoa. Prometi em silêncio honrar cada moeda sacrificada, cada ônibus que eles pegaram por mim.
Acordei cedo, coração em descompasso. Banho frio, hidratante de baunilha, cabelo penteado até obedecer. Rabo de cavalo alto. Saia creme, blusa preta, scarpin parcelado. Brinco da aprovação. Batom pêssego. Malas prontas.
Café na cozinha, cheiro de cuscuz e ovo mexido. Vó colocou um potinho de biscoito de polvilho na bolsa, junto com um bilhete: “Quando bater saudade, mastiga devagar.” Vô enfiou um maço de notas dobradas. “Pra imprevisto.” Tentei recusar, ele fingiu não ouvir.
No portão, benção outra vez. Chorei bonito, sem vergonha. O motorista perguntou: “Aeroporto?” Respondi sorrindo: “Rodoviária.” Ele riu junto, como cúmplices da mesma economia.
O carro foi se afastando. A rua ficou pequena, a casa menor, meus avós viraram dois pontos no retrovisor. Engoli o choro, coloquei fone, dei play numa música que me segura pelo peito. A rodoviária cheirava a pastel e correria. Meu ônibus já estava pronto.
Antes de subir, reli o bilhete da Vó. Mastiguei um biscoito devagar. O gosto era de infância. O futuro, pela primeira vez, tinha sabor de coisa que eu mesma podia temperar.
Subi os degraus, encostei a cabeça na janela. Brasília me esperava.
Ainda não tinha chegado — e era exatamente aí que eu queria estar: no meio do salto, sabendo que não caio. Eu pouso.
Eu sou Jamile.
E o resto, daqui em diante, é história que eu mesma vou escrever.
MAXIMILIANO
(antes de Brasília, só eu, do começo ao agora)
Meu nome é Maximiliano Andrade, tenho 35 anos.
Homem de 1,87m, ombros largos, corpo de quem moldou disciplina na academia, mas a verdadeira força nasceu antes, no peso da responsabilidade. Pele morena, barba cerrada sempre aparada no ponto certo. Meus olhos escuros já ouviram mais confissões do que palavras; muita gente se perde no silêncio deles antes de abrir a boca. Carrego correntes e relógios de ouro — não como ostentação vazia, mas como símbolos de legado e conquista.
Uso quase sempre preto: camisa social aberta no peito, calça sob medida, perfume marcante. Aprendi cedo que presença é arma. Entro em qualquer lugar e sei que vou ser notado — mesmo sem falar uma palavra.
---
Infância de mármore e ferro
Nasci em berço sólido. Meu pai, Roberto Andrade, era advogado criminalista, nome respeitado nos tribunais de Brasília. Cresci vendo meu sobrenome ser sinônimo de poder.
Minha mãe, Helena, era o equilíbrio. Enquanto meu pai me treinava pra vencer, ela me lembrava da compaixão. “O poder sem bondade é vazio”, dizia.
Na infância, não me faltou nada material. Mas sobrou disciplina. Enquanto outros meninos corriam na rua, eu ficava sentado na sala ouvindo meu pai discutir casos com colegas. Aos 10 anos já sabia o que era habeas corpus, aos 12 já folheava o Código Penal. Brinquedo era livro. Diversão era observar audiência.
---
Adolescência forjada na pressão
Minha adolescência foi um campo de treinamento. Meu pai me cobrava excelência em tudo. Notas abaixo de 9 eram motivo de discurso de uma hora. “O sobrenome Andrade não se arrasta, Maximiliano. Ele se impõe.”
Não tinha liberdade de errar. Meus amigos iam a festas, eu estudava retórica. Enquanto eles aprendiam a dirigir, eu aprendia a sustentar olhar firme sem piscar.
Essa criação me deu autoconfiança, mas também me deixou distante. Sempre fui cercado de gente, mas raramente íntimo de alguém. Desde cedo, entendi: no mundo, confiança é moeda rara.
---
O caminho inevitável: Direito
Aos 18, entrei na faculdade de Direito. Não foi escolha, foi destino escrito.
Ali ganhei a fama de arrogante. Talvez eu fosse. Estudava não para passar, mas para dominar. Enquanto alguns se preocupavam com a prova do semestre, eu já estava pensando em jurisprudência, em como usar cada brecha da lei a meu favor.
Tinha charme, sim. Mulheres me procuravam. Mas eu nunca permiti que ocupassem espaço maior que o necessário. Namoros curtos, sem raiz. O que eu queria mesmo era construir minha reputação.
---
Primeiros passos no tribunal
Aos 22, comecei a estagiar em escritórios pequenos. Quis provar que não dependia do nome do meu pai. Pegava casos que ninguém queria: furtos, brigas de bar, gente que não tinha dinheiro nem pra pagar consulta.
Foi nesses processos que aprendi a virar jogo com argumentos. Descobri que o tribunal não se vence só com lei — mas com postura.
Meu primeiro grande caso veio aos 25. Defendi um empresário acusado de fraude fiscal. A mídia dizia que ele estava condenado antes mesmo do julgamento. Eu virei a maré. Argumentei com sangue frio, quebrei testemunhas no interrogatório, usei brechas que ninguém tinha visto. Ganhei.
No dia seguinte, meu nome estava em jornais. Chamaram-me de calculista, frio, manipulador. Eu sorri. No Direito, reputação é faca: quanto mais afiada, mais útil.
---
O peso do sobrenome
Quando completei 30, meu pai decidiu se afastar. Cansado de décadas de tribunal, preferiu viajar com minha mãe, aproveitar a vida que sempre adiou. O escritório passou a ser meu. Não como presente, mas como teste: provar que eu não só herdei o trono, mas que sabia usá-lo.
Hoje, aos 35, sou dono de um dos escritórios mais respeitados de Brasília. Represento políticos, empresários, figuras públicas. Entro em qualquer audiência sabendo que o jogo só termina quando eu disser. Sou respeitado e temido na mesma medida.
---
Vida pessoal: terreno árido
Nunca me casei. Não pretendo. Pra mim, casamento é cela com grades douradas. Prefiro liberdade.
Minha rotina é simples: trabalho de dia, válvulas de escape à noite. Mulheres, boates, whisky, sexo sem promessas. Não me envolvo. Gosto de prazer imediato e silêncio depois.
Alguns dizem que eu vivo cercado de gente, mas no fundo sozinho. Talvez. Mas solidão é mais confortável que decepção. Aprendi a não precisar.
---
O homem de agora
Maximiliano Andrade: advogado, 35 anos, dono de uma reputação que carrega tanto poder quanto cicatrizes.
Tenho tudo: dinheiro, respeito, nome. Mas também carrego um vazio. Um buraco que nem vitória, nem sexo, nem aplauso consegue preencher.
Sou filho do Roberto e da Helena. O advogado que nunca perde. O homem que todo mundo respeita.
Mas no silêncio da noite, quando o terno está no cabide e o whisky no copo, sei que ainda falta algo que eu não sei nomear.
...
A manhã começou como qualquer outra: café preto sem açúcar, terno alinhado, corrente de ouro batendo contra o peito, carro importado ronronando pela W3 como se a cidade fosse feita pra mim. No espelho retrovisor, o mesmo olhar de sempre — sério, pesado, exigente.
Cheguei ao escritório e a rotina me recebeu como escrava obediente. Portas de vidro abrindo, recepcionista de sorriso ensaiado, advogados mais jovens correndo com pastas debaixo do braço como ratos assustados. Eu não sorrio, não cumprimento, só caminho. Minha presença já basta.
Entrei na minha sala. A vista de Brasília se estendia imponente: concreto, eixos, céu sem fim. Peguei a caneta Montblanc, joguei alguns papéis sobre a mesa e respirei fundo. Outro dia de guerra, outro dia de vitória.
Foi quando minha secretária, Renata, bateu à porta.
— Doutor, a nova estagiária chega amanhã.
Levantei os olhos devagar, arqueei a sobrancelha.
— Nova estagiária? Quem mandou contratar?
Renata engoliu seco.
— Ela vem recomendada… pelo seu padrinho.
Padrinho. A palavra pesou. Eu nunca ignoro quando ele se envolve. Respirei fundo, fechei a caneta e me recostei na cadeira de couro.
— Então a moça deve ser boa. Ou pelo menos precisa parecer.
Me levantei, caminhei até a janela, mãos nos bolsos, olhar perdido no horizonte de prédios e poder. Já conheço esse enredo: todo ano alguém novo tenta provar valor aqui. Poucos resistem. O escritório não é lugar de alma frágil.
— Que venha — falei com frieza, ainda de costas para Renata. — Mas avisa: aqui não tem espaço pra erro. Quem pisa no meu escritório trabalha, engole pressão e me entrega resultado. Senão, rua.
Renata assentiu em silêncio, como sempre fazia quando eu soltava ordens com aquele tom de sentença.
Me virei, ajeitei a manga da camisa, deixando o relógio de ouro brilhar na luz.
— Ah, e Renata… não quero ser incomodado com detalhes banais. Se essa garota der trabalho, me poupe da novela. Corte pela raiz.
Ela assentiu outra vez e saiu, fechando a porta atrás de si.
Fiquei sozinho, olhando para minha mesa lotada de processos. Sorri de canto. A vida me ensinou a desconfiar de todo mundo, principalmente de novatos. Essa moça, seja lá quem for, vai aprender rápido que no mundo dos Andrades, ou você nada… ou afunda.
MAXIMILIANO (continuação)
Renata tinha acabado de sair quando bateram de novo.
— Entra — falei sem levantar os olhos.
A porta abriu e apareceu Beatriz, uma das estagiárias do contencioso cível. Vinte e poucos anos, óculos redondos, postura de quem pede licença até pra respirar. Segurava uma pasta transparente com capa azul. Capa azul no meu escritório sempre significa a mesma coisa: rascunho pedindo misericórdia.
— Doutor, trouxe a inicial do caso da TechNorte — ela disse, depositando o arquivo na mesa como quem deixa um gato arisco no sofá.
Puxei a pasta. Dei uma passada de olho. Trinta segundos bastaram.
— Beatriz… — falei calmo, quase gentil. — Tu escreveu “Excelentíssimo Juiz de Direito da 5ª Vara”. Nosso caso é na 3ª Vara Empresarial. Começamos mal.
Ela engoliu em seco.
Virei a primeira página. O cabeçalho estava com margem errada, fonte trocada, espaçamento indeciso. Parecia texto feito às pressas num domingo de ressaca.
— Qualificação do autor… incompleta. Cadê o CNPJ? Cadê o e-mail indicado no art. 319 do CPC? — minha voz não subiu um milímetro. Não precisou.
Virei a segunda.
— Fatos em ordem cronológica? Não. Você começa pelo e-mail de cobrança de março e só depois conta o contrato de 2022. Parece novela com flashback ruim. O juiz não é plateia: ele quer linha reta.
Virei a terceira.
— Fundamentação jurídica… — fiz uma pausa curta, do tamanho de um veredito. — O caso é responsabilidade do fornecedor de software. Você citou Código Civil quando o CDC resolve metade da briga. Cadê art. 14, art. 6º, VIII? Cadê a tutela de urgência do art. 300? — levantei o olhar. — E essa jurisprudência aqui é de 2014. Jurisprudência velha é que nem prazo perdido: não serve.
Ela ficou branca.
— Doutor, eu…
— Anexos — continuei, ignorando. — Cadê a procuração? Cadê o contrato social? Cadê a printagem do erro do sistema que derrubou a plataforma do cliente? Você descreve, mas não prova. Processo não é crônica, Beatriz.
Virei pro fim.
— Pedidos frouxos. “Requer o que for de direito” não existe aqui. Quero pedido numerado: 1) inversão do ônus da prova; 2) obrigação de fazer em 48 horas sob multa diária; 3) danos materiais com base nos relatórios X e Y; 4) danos morais se couber, e se pedir, tem que fundamentar; 5) valor da causa — que você esqueceu. — Fechei a pasta. — E o fecho? “Nestes termos, pede deferimento” e… nada. Nem local, nem data, nem OAB. É o tipo de deslize que humilha a gente em cartório.
Silêncio. O relógio de ouro pesou no pulso. A cidade, atrás do vidro, se fingia de muda.
— Doutor, eu posso ajustar. É que eu assumi ontem e a doutora Letícia…
— A doutora Letícia não assina no meu lugar — cortei. — Você trabalha pra mim. E aqui tem regra.
Me levantei, fui até o quadro de vidro na parede e, com a caneta, escrevi devagar, letra firme, sem olhar pra ela:
CHECKLIST ANDRADE — INICIAIS CIVIS
Foro e Vara corretos + distribuição.
Qualificação completa (CNPJ/CPF, e-mail, endereço).
Procuração e documentos essenciais anexados e numerados.
Fatos: cronologia limpa.
Causa de pedir próxima e remota.
Fundamentação: artigos certos (CDC/CPC) + doutrina recente.
Jurisprudência dos últimos 3 anos, ementa clara.
Pedidos numerados + valor da causa.
Tutela de urgência quando houver risco e probabilidade.
Fecho, local, data, OAB.
Formatação padrão do escritório.
Revisão final: gramática, citações, anexos.
Virei de volta.
— Isso — apontei pro quadro — é o mínimo. Não é diferencial, não é “nossa, que brilhante”. É porta de entrada. Se não fizer, nem bate.
Beatriz assentiu com olhos de quem levou tapa d’água fria.
— Você vai pegar essa peça, reescrever do zero, anexar tudo que falta, atualizar as teses, trazer duas jurisprudências do STJ e uma do TJDFT que sirvam exatamente pra esse caso. Vai numerar pedido, somar prejuízo com base no relatório de queda e dar valor da causa coerente. Tem quarenta minutos.
Ela arregalou os olhos.
— Quarenta, doutor?
— Trinta seria ofensa — respondi, seco. — Quarenta é generosidade. E me poupe de lágrima. Quem chora aqui é protocolo quando leva carimbo errado.
Beatriz fez que sim, com a cabeça rápida, e saiu tropeçando no próprio pé. A porta fechou, e eu fiquei com a pasta na mão, o cheiro do papel ruim no ar. Passei álcool gel, hábito automático, e sentei.
Renata apareceu dois minutos depois, silenciosa, com duas pilhas de processo e um café.
— Acho que a Beatriz vai desmaiar no corredor — ela comentou, deixando o expresso na mesa.
— Se desmaiar, alguém busca água. Depois manda ela voltar e terminar a peça — respondi, sem humor.
— Quer que eu peça os prints pro cliente da TechNorte?
— Já deveria estar pedindo — falei, olhando pro computador. — E Renata… manda recado pro time inteiro: padrão mínimo não é elogio. É obrigação.
Ela saiu. Abri o e-mail. Tinha cobrança de cliente, convite pra palestra, uma ameaça de ação da concorrência. O comum da minha manhã. O telefone tocou; eu atendi no terceiro toque.
— Andrade.
Do outro lado, um empresário que acha que gritar aumenta a razão. Deixei falar. Ele despejou ansiedade, números, pressão. Quando respirou, eu entrei.
— Pare de gritar e anote — falei, no tom que uso pra ajeitar vértebra de gente grande. — Vamos fazer acordo agora pra não sangrar em juízo depois. Me mande o contrato em PDF e Word, as mensagens, e prepare proposta fechada com multa escalonada. Sem isso, não tem reunião.
Desliguei. Mensagens assim eu faço de olhos fechados. Não é talento, é músculo.
Dei uma olhada no relógio. Dezenove minutos. Bati o dedo na mesa, impaciente. A porta se abriu com cautela.
Beatriz voltou. Rosto tenso, documento impresso, desta vez com clipe, não a capa azul — já entendeu que comigo é papel discreto.
— Coloca aqui — apontei.
Li em silêncio. Agora sim: 3ª Vara Empresarial, qualificação completa, fatos de janeiro a março, linha do tempo respirando. Fundamentação com CDC e CPC, tutela de urgência com probabilidade do direito e perigo de dano. Jurisprudência do STJ de 2023, TJDFT de 2024. Pedidos numerados, valor da causa calculado com base nos relatórios. Fecho com local, data, OAB. Formatação padrão.
Levantei o olhar.
— Melhor. Ainda tem vícios — deslizei o dedo. — Falta sumário porque ficou com mais de 20 páginas. E essa frase aqui está com verbo no futuro; petição não promete, afirma. Troca pro presente. Arruma e protocola ainda hoje. E manda pro meu e-mail em PDF e em Word. Se vier só em PDF, volta. Se vier só em Word, volta. Se vier com fonte trocada, volta duas vezes.
Beatriz respirou pela primeira vez desde que entrou.
— Sim, doutor. Obrigada pela… orientação.
— Isso não foi orientação, foi mandamento — respondi, seco, mas com meio canto de boca que quase virou sorriso. — Agora vai trabalhar.
Ela saiu. Renata reapareceu, como se tivesse sensor.
— Quer que eu providencie uma cartilha com esse checklist pra todo mundo?
— Não. Quero que decorem. Cartilha vira peso de papel.
Peguei o casaco, dei dois passos até a janela. Brasília brilhava com aquele céu impossível. Por alguns segundos, me vi lá embaixo, andandinho, só pra lembrar a sensação de não ser ninguém. É saudável.
Quinze minutos depois, meu telefone vibrou. Beatriz mandou a peça revisada e o print do protocolo. Conferi. Ok.
Respondi com um “Recebido. Não esqueça o prazo do agravo se a tutela cair.”
Ela mandou um “Sim, doutor 🙏”.
Bloqueei a visualização de emoji. No meu escritório, oração não substitui prazo.
Renata entrou de novo.
— Agenda da tarde: reunião com a SunWay às 14h, call com o Sérgio às 16h, e o padrinho ligou confirmando que a nova estagiária chega amanhã cedo.
— Anota aí — falei, sem virar. — A partir de agora, toda peça passa pelo checklist. Toda. Quem errar, treina. Quem repetir erro, dança.
— E a nova?
— Mesma regra. Nome não segura cadeira aqui.
Renata assentiu. Saí da janela e voltei pra mesa. As coisas estavam nos eixos. Gosto assim: ordem, ritmo, resultado. Meu escritório não é sala de aula. É trincheira. Quem entra aprende rápido — ou aprende saindo.
Peguei a caneta, assinei três despachos, fechei a pasta da TechNorte. O relógio marcou meio-dia. Pedi almoço, sem conversa. Enquanto esperava, abri a agenda de amanhã. Linha a linha, tudo no lugar.
Arrogante? Eu chamo de padrão. Quem confunde firmeza com grosseria nunca carregou um prazo nas costas.
Amanhã tem gente nova. O mundo gira, eu não. Quem quiser ficar, aprende a girar na minha órbita.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!