“Como achaste que iria casar com alguém como tu?”
E foi ali que ela percebeu que nunca deveria ter aceitado aquele trabalho.
Capítulo 1
Yasmin apertou o lenço entre os dedos enquanto caminhava apressada pela calçada lotada. O calor de 38 graus fazia o ar parecer pesado, quase impossível de respirar, e cada passo parecia mais difícil com Luccas adormecido nos braços. Ela já estava atrasada para o segundo turno no restaurante, mas não tinha escolha. Depois do fim traumático com o pai de seu filho um homem violento e arrogante que só deixou cicatrizes , ela precisou assumir dois trabalhos para conseguir pagar o aluguel e manter comida na mesa.
No restaurante, a rotina já era difícil, mas piorava por causa de Carla, a colega de trabalho que a tratava como se fosse um estorvo desde o primeiro dia. Para completar, a gerente, dona Patrícia, dava ouvidos a cada provocação e nunca perdia a oportunidade de humilhar Yasmin na frente dos outros funcionários, como se tivesse prazer em vê-la desconfortável.
Naquela manhã, tudo começou a dar errado quando a vizinha ligou desesperada. Luccas estava com febre alta e chorava sem parar. Sem pensar duas vezes, Yasmin largou o avental e correu para pegar sua bolsa, tentando explicar entre lágrimas que precisava sair porque o filho estava doente. Mas Carla, com um sorriso disfarçado nos lábios, comentou alto que Yasmin vivia inventando desculpas para sair mais cedo. Patrícia, como sempre, não quis ouvir explicações, apenas cruzou os braços e decretou que se Yasmin saísse naquela hora, não precisava mais voltar.
E assim aconteceu. Sem chance de se defender, Yasmin foi despedida na frente de todos, recebendo olhares de pena daqueles que sabiam da sua luta, mas que também tinham medo de se envolver.
Corri até a porta, com Luccas ainda nos braços, e atendi a vizinha ofegante. “Ele está com febre alta, Yasmin! Por favor, leva ao hospital agora!”, ela implorou. Acalmei meu filho o melhor que pude, tentando não deixar o choro dele me deixar em pânico. “Calma, meu amor, mamãe vai cuidar de você”, sussurrei, sentindo o coração apertar. Saímos correndo, suando ainda mais com o calor que parecia queimar minha pele. Cada passo era uma preocupação: e se a febre piorasse no caminho?
No hospital, o corredor parecia interminável. As enfermeiras nos olharam com um misto de pressa e compreensão enquanto eu explicava os sintomas de Luccas. Sentia-me impotente, desejando ter uma varinha mágica para fazer a febre desaparecer. Após exames e algumas horas de espera que pareceram eternas, o médico passou a receita: antitérmico, soro e alguns cuidados em casa. Saímos aliviados, mas ainda tensos, com a lista de medicamentos em mãos.
Fui à farmácia mais próxima, tirando cada centavo da bolsa para conseguir comprar tudo. “Vai dar tudo certo, meu amor”, dizia, escondendo o choro que insistia em apertar meu peito. O suor escorria pelo meu rosto, e a preocupação com cada dorinha de Luccas me esmagava. Com os remédios na sacola, caminhei lentamente de volta para casa.
Quando entrei, deixei Luccas no sofá, que dormiu finalmente, exausto. Fechei a porta e desabei no chão da cozinha, sentindo o cansaço e a frustração me engolirem. Olhei para o espaço vazio do meu armário, para os sapatos rasgados de Luccas, e meu coração se partiu. Nem 20 reais eu tinha para comprar um tênis novo para ele. As lágrimas escorriam sem parar, misturando raiva, medo e uma tristeza que parecia infinita. Eu só queria dar uma vida digna para meu filho, mas parecia que o mundo conspirava para me impedir, e eu não sabia até quando conseguiria aguentar.
Capítulo 2
A madrugada havia sido interminável. Passei horas vigiando Luccas no sofá, com medo de que a febre voltasse de repente. Quando o sol nasceu, senti como se meus ossos estivessem em cacos, mas não havia tempo para descansar. Bati na porta da vizinha, já com o coração apertado.
— Pode deixar ele comigo, Yasmin. Vai tranquila, eu cuido do Luccas hoje — disse ela, com aquele olhar de compaixão que sempre me fazia sentir menos sozinha.
Abracei meu filho com força, beijei sua testa ainda morna e sussurrei baixinho:
— Mamãe já volta, meu amor.
Segui para o trabalho da manhã, o único que restava. Já tinha desistido do outro, porque não dava mais conta de tudo sozinha com Luccas. Ainda assim, cada dia parecia uma maratona. Fiz minhas tarefas como um robô, tentando não demonstrar o cansaço que me corroía por dentro. O suor escorria pelo rosto, mas a cabeça estava em outro lugar: em como arrumar uma saída para nós dois.
Quando o expediente terminou, respirei fundo e segui para a rua com uma pilha de currículos na bolsa. Eu precisava tentar. Entrei em lojas, escritórios, padarias, entregando papéis e repetindo meu discurso, quase decorado, pedindo apenas uma oportunidade. Algumas pessoas aceitavam com pressa, outras nem estendiam a mão.
O sol castigava, e o corpo já doía de tanto andar. Comprei um geladinho numa barraquinha, só para aliviar o calor e enganar o estômago vazio.
Foi então que o destino resolveu brincar comigo. Uma mulher elegante, de salto alto e perfume forte, passou apressada e esbarrou em mim. O geladinho escorregou da minha mão e foi direto contra a saia clara dela.
— Mas é o fim do mundo! — ela exclamou, olhando-me com desprezo. — Gente como você devia ter mais cuidado. Olha só o estrago!
Senti todos os olhares se virarem para mim. O coração disparou, a vergonha queimava meu rosto. Quis explicar, pedir desculpa, me justificar… mas nada saiu. Apenas abaixei a cabeça, engolindo o choro.
A mulher continuava resmungando, limpando freneticamente a saia como se eu tivesse cometido um crime imperdoável. Meus currículos haviam caído no chão, espalhados pelo vento, enquanto eu me abaixava às pressas para recolher os currículos espalhados, uma mão firme pegou um deles antes de mim. Levantei os olhos devagar e vi um homem alto, de presença marcante, cabelos negros penteados com naturalidade e olhos castanhos profundos que pareciam me examinar com intensidade.
— Amor… — a mulher reclamou, ainda limpando a saia suja de geladinho. — Olha o que essa desastrada fez comigo!
Ele a encarou de lado, erguendo uma sobrancelha com um sorriso quase irônico.
— Um acidente, Vanessa. Mas, claro, é mais fácil dramatizar do que perceber que às vezes um pouco de gelo não é o fim do mundo. — A pausa dele foi curta, calculada. — Afinal, pior que uma saia manchada é perder a elegância.
A mulher ficou vermelha, abrindo e fechando a boca, sem resposta. Algumas pessoas que assistiam a cena riram discretamente.
Ele então voltou-se para mim, estendendo o currículo que havia recolhido.
— É seu, não é?
Assenti, com a garganta seca. Peguei o papel com cuidado, tentando não tremer.
Ele leu rapidamente meu nome impresso e depois ergueu os olhos de novo, fixando-os nos meus com uma intensidade que me deixou sem ar.
— Está procurando emprego? — perguntou, a voz grave, mas sem julgamento.
A mulher se adiantou, visivelmente incomodada.
— Henrique, vamos logo, não temos tempo pra isso!
Ele, no entanto, não tirou os olhos de mim, como se a urgência dela não tivesse importância nenhuma. E, por um instante, eu senti que aquele encontro não era simples coincidência.
Ele soltou um leve suspiro, ignorando a pressa da esposa, e estendeu um cartão elegante em minha direção.
— Me procure — disse, firme, mas em tom baixo, como se quisesse que apenas eu ouvisse. — Quero conversar melhor sobre esse currículo.
Engoli em seco, sem conseguir responder. Minhas mãos suadas receberam o cartão com cuidado, como se fosse um pedaço de esperança materializado ali, no meio da rua.
A mulher bufou, segurando o braço dele com força.
— Henrique, chega! Você não percebe que ela está tentando se aproveitar?
Ele virou-se para ela com um olhar calmo, quase cortante.
— Às vezes, Vanessa, quem mais julgamos é justamente quem mais merece uma chance.
Ela ficou sem palavras, apenas puxando-o para longe com passos apressados. Antes de se afastar por completo, ele ainda voltou o rosto para mim, com um olhar que parecia prometer algo além daquela confusão.
Fiquei parada no meio da rua, o coração disparado. Segurei o cartão contra o peito como se fosse a última âncora da minha vida. Não sabia se era um sonho ou o início de uma mudança real… mas, pela primeira vez em muito tempo, um sopro de esperança atravessou o peso da minha rotina.
Capítulo 3
Quando cheguei em casa, Luccas correu para meus braços, como se eu tivesse estado fora por dias. O alívio de sentir sua pele fresquinha, sem sinais de febre, foi maior que qualquer cansaço que me consumia. Abracei-o forte, respirando seu cheirinho, como se aquele momento pudesse apagar as angústias da rua.
— Mamãe voltou, meu amor… — sussurrei, e ele sorriu, aliviando minhas dores mais do que qualquer remédio faria.
Preparei o jantar simples de sempre — arroz, feijão e um pouco de frango desfiado. Enquanto ele comia, eu observava suas bochechas coradas e pensava que tudo aquilo valia a pena. Por ele, eu suportaria o mundo inteiro.
Depois de colocá-lo para dormir, sentei na beira da cama e encarei o espelho da cômoda. O reflexo mostrava meus olhos cansados, olheiras profundas e… o cabelo. Ainda longo, caindo sobre os ombros, exatamente como ele sempre gostou.
Uma lembrança atravessou minha mente como uma lâmina afiada.
O quarto em meia-luz. O cheiro forte de bebida impregnado no ar. Eu encolhida no canto, tentando me proteger dos gritos que vinham junto com a mão pesada dele. Cada vez que me levantava, cada vez que tentava reagir, o mundo desabava sobre mim em golpes. E depois… o falso arrependimento.
Ele passava a mão pelos fios do meu cabelo, murmurando:
— Eu só perco a cabeça… Mas você sabe que eu amo o seu cabelo comprido, não é? É tão bonito assim…
Bonito. A palavra sempre vinha junto com a dor. Como se meus fios fossem correntes invisíveis que me prendiam ao passado.
Pisquei forte, afastando as lágrimas. Levantei, fui até a cozinha e peguei a tesoura. O coração batia acelerado, como se fosse um ato proibido. Segurei a primeira mecha e, por um instante, quase ouvi a voz dele ecoando em minha mente, ameaçadora. Mas engoli o medo.
— Acabou. — murmurei, firme, como se falasse para o fantasma dele.
O som metálico da tesoura cortando os fios encheu o silêncio da casa. Mecha por mecha, o peso do passado ia caindo no chão. Cada pedaço arrancado era como um grito preso finalmente liberto. Quando terminei, o espelho refletia uma mulher diferente. Mais leve, mais dona de si.
Passei a mão pelos fios curtos e, pela primeira vez em anos, não senti vergonha, nem medo. Senti liberdade.
Voltei ao quarto, deitei ao lado de Luccas e beijei sua testa. Ele suspirou no sono tranquilo, e eu sorri com os olhos marejados.
Talvez o futuro ainda fosse incerto. Talvez amanhã a vida me jogasse outra vez no chão. Mas, naquela noite, eu havia dado um passo.
Um corte simples, mas que me lembrava: eu não era mais a mulher aprisionada do passado.
Eu era Yasmin. Mãe, guerreira. E agora, finalmente, começando a renascer.A manhã começou na correria de sempre. Dei banho rápido no Luccas, preparei sua mochilinha com fraldas, mamadeira e o ursinho de pelúcia que ele não largava por nada. Ele resmungava no meu colo, ainda meio sonolento, mas abriu um sorriso largo assim que chegamos à porta da vizinha.
— Bom dia, Yasmin. Pode deixar comigo — ela disse, recebendo-o nos braços.
Luccas me olhou com aqueles olhos grandes e balbuciou:
— Mamãe volta?
Ajoelhei-me diante dele, ajeitando sua mãozinha pequenina na minha.
— Claro que volto, meu amor. A mamãe sempre volta.
Beijei sua testa e, com o coração apertado, segui para o trabalho.
As horas passaram lentas, cada tarefa feita no automático, como se meu corpo estivesse ali, mas a mente em outro lugar. O cartão dentro da bolsa parecia pesar o dobro, chamando minha atenção a cada instante.
Quando finalmente terminei o turno, despedi-me das colegas e caminhei pela rua, sentindo o calor do sol bater forte. Parei embaixo de uma sombra e respirei fundo. Peguei o celular, encarei o cartão novamente e, com as mãos trêmulas, disquei o número.
O telefone chamou uma, duas vezes… até que a voz grave respondeu:
— Alô, Henrique falando.
Meu coração disparou. Por um instante, pensei em desligar, mas a imagem de Luccas sorriu em minha mente, me dando coragem.
— Oi… é a Yasmin. — Minha voz saiu quase um sussurro. — Eu… o senhor me deu um cartão ontem.
Do outro lado, houve uma breve pausa, seguida por um tom firme, mas acolhedor:
— Sim, eu lembro de você. Fico feliz que tenha ligado. Podemos conversar?
Engoli em seco, olhando ao redor como se o mundo todo estivesse esperando minha resposta.
— Podemos.
Ele continuou, com uma calma que me desconcertava:
— Não precisa se preocupar. Não é nada complicado. Quero entender melhor sua situação… e talvez, oferecer uma oportunidade. Você teria como vir até meu escritório amanhã?
Olhei para o céu, buscando forças. Parte de mim gritava para desconfiar, para não me iludir. Mas outra parte — a que carregava esperança — sussurrava que era uma chance real.
— Sim. Eu vou.
— Ótimo. Anote o endereço — disse ele, e em seguida me passou as informações. Sua voz firme parecia atravessar minhas inseguranças. — Yasmin… eu sei que não é fácil confiar, mas agradeço por dar esse passo.
Desliguei com as mãos suadas, o coração acelerado. Guardei o celular e, por um instante, fechei os olhos. Talvez fosse apenas uma conversa. Talvez nada mudasse. Mas só o fato de alguém acreditar que eu merecia uma chance já era diferente de tudo que eu tinha vivido até agora.
Com passos apressados, voltei para buscar meu filho. Luccas correu até mim, os bracinhos abertos.
— Mamãe!
Abracei-o forte, escondendo o cartão no bolso como se fosse um segredo precioso. Um pedaço de esperança, que talvez pudesse mudar nossas vidas.
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