O despertador tocou às seis e meia da manhã, como fazia religiosamente todos os dias úteis. O som estridente preencheu o quarto pequeno, mas Amanda não se apressou em desligá-lo. Ficou deitada por alguns instantes, observando o teto branco levemente amarelado pelo tempo, tentando reunir forças para enfrentar mais um dia igual a tantos outros.
Ela tinha vinte e oito anos e, muitas vezes, sentia que a vida lhe escorria pelos dedos. Não havia nada de particularmente errado — tinha saúde, um emprego, um lar modesto —, mas havia um vazio persistente, uma sensação de que ainda não vivera nada de realmente grandioso.
Quando finalmente se levantou, seus pés tocaram o chão frio de madeira. Caminhou até a cômoda e se encarou no espelho oval. O reflexo que a observava de volta trazia-lhe sentimentos contraditórios. Cabelos negros caíam em ondas suaves até a altura dos ombros, os olhos escuros eram profundos, quase sombrios, e as sobrancelhas grossas davam intensidade ao olhar. Ainda assim, havia um traço angelical em sua face, uma suavidade que contrastava com a força de suas feições.
Algumas vezes, estranhos na rua lhe diziam que tinha um rosto marcante, como se fosse inesquecível. Mas Amanda raramente se via dessa forma. Para ela, era apenas o mesmo rosto cansado, que carregava preocupações, expectativas não realizadas e segredos que nunca contara a ninguém.
Suspirou e amarrou os cabelos em um coque improvisado. O relógio na parede indicava que já estava atrasada para abrir a livraria. Vestiu uma blusa simples de lã clara, calças confortáveis e o casaco cinza que herdara da mãe.
Na cozinha, preparou café preto forte. O aroma encheu o pequeno apartamento, trazendo-lhe uma sensação de aconchego. Partiu um pedaço de pão amanhecido, passou manteiga e comeu devagar, ouvindo apenas o som dos carros distantes na rua. Gostava daquele silêncio matinal. Gostava da ideia de que, por alguns minutos, o mundo ainda não a cobrava nada.
Quando saiu de casa, o ar fresco da manhã bateu em seu rosto. A cidade acordava lentamente. Algumas lojas já estavam abertas, a padaria da esquina exalava o cheiro doce de pães recém-assados, e o barulho ritmado de saltos apressados ecoava pelo calçamento. Amanda caminhava com passos firmes, as mãos nos bolsos do casaco, tentando se proteger do vento que soprava suave, mas frio.
Levava no bolso um molho de chaves. Gostava de sentir o metal frio entre os dedos, como se fosse um pequeno talismã. Aqueles objetos simples representavam responsabilidade, mas também pertencimento: eram as chaves da livraria da família, seu refúgio silencioso, o lugar onde passava a maior parte de seus dias.
A fachada da livraria era discreta, com janelas largas e cortinas claras. O letreiro de madeira já mostrava sinais do tempo, mas Amanda sentia orgulho em mantê-lo sempre limpo. Empurrou a porta de vidro e o pequeno sino pendurado acima tilintou, saudando-a com seu som familiar.
Assim que entrou, respirou fundo. O cheiro de papel e tinta era como um abraço. Sempre acreditara que cada livro guardava não apenas histórias, mas pedaços da alma de quem o escrevera. E, de certa forma, sentia que também havia pedaços seus ali, entre aquelas páginas silenciosas.
Acendeu as luzes, arrumou algumas pilhas de livros sobre a mesa principal e varreu o chão, como fazia todas as manhãs. Depois, sentou-se atrás do balcão e abriu um caderno de capa azul onde anotava ideias, pensamentos e sonhos. Quase ninguém sabia daquilo. Era sua forma de conversar consigo mesma, de colocar no papel sentimentos que jamais teria coragem de compartilhar em voz alta.
Enquanto escrevia, ouviu o movimento da rua através das janelas. Carros passavam, vozes se confundiam, e a vida seguia lá fora com pressa. Amanda, no entanto, permanecia naquele espaço de calma e silêncio, quase como se estivesse em outro mundo.
Naquele momento, não fazia ideia de que estava sendo observada. Do outro lado da rua, um carro preto estacionara discretamente. O vidro escuro escondia o homem que, em absoluto silêncio, acompanhava cada gesto dela.
Amanda ajeitou os cabelos atrás da orelha e voltou a escrever em seu caderno. O sol começava a iluminar as estantes de madeira escura, projetando desenhos dourados no chão. Era apenas mais um dia comum. Pelo menos, era o que ela acreditava.
O salão de reuniões estava impregnado de vozes monótonas, gráficos projetados e copos de água intocados. Andrew Donovan sentava-se à cabeceira da mesa de carvalho polido, o semblante impecável, a gravata ajustada com precisão, mas o olhar distante. Os homens e mulheres à sua frente falavam de números, estratégias de expansão, riscos de mercado. Ele respondia com acenos ocasionais, como se cada palavra fosse analisada com frieza, mas a verdade é que sua mente estava em outro lugar.
Era assim havia anos. Andrew crescera dentro daquele universo de exigências, herdeiro de uma das famílias mais influentes do país. Desde jovem, aprendera que não havia espaço para falhas, nem para hesitação. Sua postura precisava ser firme, sua presença, imponente. O nome Donovan era mais que um sobrenome: era um peso que ele carregava como corrente invisível.
Quando a reunião terminou, fechou a pasta de couro com um estalo e levantou-se, despedindo-se com a mesma elegância automática de sempre. Caminhou até o elevador de mármore, onde os espelhos refletiam sua imagem: trinta e dois anos, traços fortes, pele clara levemente marcada pelo estresse, cabelos escuros e enrolados que insistiam em cair sobre a testa. Ele se via como um homem feito de concreto — sólido, calculado —, mas ao mesmo tempo sentia-se cada vez mais oco por dentro.
No térreo, o motorista já o aguardava com o carro preto brilhante. Andrew entrou sem dizer palavra. O couro macio do banco deveria transmitir conforto, mas apenas reforçava a sensação de estar enclausurado.
— Para casa, senhor Donovan? — perguntou o motorista, um homem acostumado ao silêncio do patrão.
Andrew hesitou. A ideia de voltar para o apartamento luxuoso, amplo e vazio, lhe deu um gosto amargo na boca.
— Não. Dê a volta pela parte antiga da cidade — ordenou.
O carro deslizou pelas ruas movimentadas. Andrew observava pela janela as pessoas comuns: mães apressadas com crianças, jovens carregando mochilas, vendedores abrindo suas lojas. Havia algo na simplicidade daquilo que o fascinava e ao mesmo tempo o entristecia. Ele, rodeado por luxo e abundância, nunca tivera de correr atrás de um ônibus, de negociar o preço de um pão ou de se preocupar com a conta de luz. Mas talvez fosse justamente por isso que sua vida lhe parecia tão sem sabor.
Foi então que a viu.
Ela atravessava a rua com uma pilha de livros nos braços, o casaco cinza solto balançando ao vento. Os cabelos negros caíam sobre os ombros, e quando ergueu a cabeça, o sol da manhã refletiu em seus olhos escuros. Andrew sentiu o peito apertar de repente, como se algo dentro dele despertasse após anos de silêncio.
— Pare aqui. — Sua voz soou mais firme do que pretendia.
O motorista encostou o carro ao lado da calçada. Andrew não desceu; apenas observou. A moça colocou os livros sobre uma pequena mesa na entrada da livraria e, com um gesto delicado, ajeitou uma mecha rebelde atrás da orelha. Não parecia notar ninguém ao redor.
Era diferente de todas as mulheres que Andrew conhecera. Não havia maquiagem pesada, nem joias chamativas, nem roupas caras. Ainda assim, havia nela uma presença que o desarmava. Talvez fosse a serenidade com que se movia, ou a expressão suave do rosto que parecia esconder histórias não contadas.
Ele permaneceu ali por alguns minutos, imóvel, como se temesse que qualquer movimento pudesse quebrar aquele feitiço silencioso.
— Senhor Donovan? — a voz do motorista quebrou o transe. — Deseja que eu estacione?
Andrew respirou fundo, recostando-se no banco. — Não. Continue.
O carro voltou a se mover, e a livraria desapareceu no retrovisor. Mas a imagem da moça permanecia gravada na mente dele com clareza inquietante. Por que aquilo o abalava tanto? Não era um homem de se impressionar facilmente. Mulheres belas sempre circularam ao seu redor, atraídas pelo poder, pela riqueza, pelo mistério que ele cultivava. Mas aquela… aquela era diferente.
O coração ainda batia acelerado quando chegaram ao edifício luxuoso onde morava. Andrew subiu para o apartamento e, ao abrir as cortinas da sala ampla, deixou que a luz inundasse o espaço frio e silencioso. Largou a pasta sobre a mesa, retirou o paletó e caminhou até a estante repleta de livros que nunca lera.
Sentou-se em uma das poltronas de couro e apoiou a cabeça nas mãos. Tentou retomar a concentração nos negócios, nos compromissos do dia seguinte, mas era inútil.
O rosto dela voltava à sua mente como se tivesse sido desenhado a fogo. Os cabelos negros, o olhar profundo, o jeito angelical de quem parecia pertencer a um mundo completamente diferente do dele.
Pela primeira vez em muito tempo, Andrew sentiu que havia algo fora de seu controle. E, no fundo, teve certeza: não seria a última vez que a veria.
A livraria estava envolta em um silêncio acolhedor, quebrado apenas pelo leve ranger das estantes antigas e pelo som distante de páginas sendo folheadas. Amanda ajeitava com cuidado uma pilha de livros recém-chegados, concentrada em deixar cada volume no devido lugar. O cheiro de papel novo misturava-se ao aroma do café vindo da pequena máquina no balcão, criando uma atmosfera que para ela sempre foi um refúgio contra o mundo exterior.
O dia estava tranquilo, mas dentro de Amanda uma inquietação latejava. Desde que completara 28 anos, sentia um peso diferente no peito. Os sonhos que antes pareciam possíveis agora começavam a se dissolver em dúvidas. Será que um dia encontraria algo que realmente a fizesse sentir viva?
Ela suspirou, tentando afastar aquele pensamento. Passou os dedos delicadamente sobre a lombada de um romance clássico, quando a porta de vidro se abriu, e um homem entrou.
O sino pendurado sobre a porta tilintou.
Amanda ergueu os olhos.
Andrew Donovan atravessava o limiar com passos firmes. Vestia um terno escuro perfeitamente alinhado, mas havia nele algo mais — um ar contido, um olhar intenso que parecia observar o mundo com distância e curiosidade. Os cabelos enrolados caíam levemente sobre a testa, e os traços fortes davam-lhe uma presença marcante.
Amanda sentiu um arrepio involuntário, mas logo voltou a atenção para a pilha de livros, tentando parecer indiferente. Não era incomum que clientes elegantes aparecessem ali, afinal, a livraria ficava próxima à região nobre da cidade. Ainda assim, algo nele parecia deslocado, como se não pertencesse àquele espaço simples, mas ao mesmo tempo se encaixasse perfeitamente.
Andrew caminhou lentamente pelo corredor de estantes, os dedos percorrendo os títulos, mas a verdade é que pouco via os livros. Ele apenas buscava uma desculpa para se manter ali, perto da moça que dias atrás observara da janela de seu carro. Desde aquele momento, sua imagem o perseguia como um segredo impossível de ignorar.
— Posso ajudá-lo em algo? — perguntou Amanda, com sua voz suave, mas firme o suficiente para tirá-lo do transe.
Andrew voltou o olhar para ela. Sentiu-se atingido como se tivesse sido exposto a uma luz repentina. Os olhos dela eram ainda mais intensos de perto, tão profundos que ele temeu perder-se dentro deles.
— Estou… procurando um livro — respondeu, com uma pausa que traiu a segurança habitual de sua voz.
— Qual gênero? Romance, história, filosofia? — Ela inclinou levemente a cabeça, curiosa.
Ele hesitou. A verdade é que não tinha ideia do que buscava. Nunca fora leitor assíduo; os livros em sua casa eram mais ornamentos do que companheiros.
— Romance — disse, quase sem pensar.
Amanda sorriu discretamente, como quem reconhece uma escolha inesperada. Conduziu-o até uma estante e puxou um volume de capa azul.
— Esse é um clássico. Uma história de amor intensa, mas cheia de escolhas difíceis. — Estendeu o livro a ele. — Talvez goste.
Andrew pegou o exemplar, mas não desviou o olhar dela. O gesto simples de oferecer o livro parecia carregado de uma delicadeza que o desconcertava.
— Obrigado… — Ele parou, como se procurasse algo a mais a dizer. — Qual é o seu nome?
Amanda hesitou por um instante. Não costumava compartilhar sua vida com estranhos, mas havia algo na presença dele que transmitia segurança, ainda que envolta em mistério.
— Amanda. — Seus lábios pronunciaram o nome com suavidade, quase como um sussurro.
Andrew repetiu em pensamento, saboreando cada sílaba. Amanda. O nome soava como música, como algo que deveria ter sempre ao alcance.
— Sou Andrew — disse, e estendeu a mão.
O toque de seus dedos foi breve, mas suficiente para provocar uma corrente invisível. Amanda sentiu o coração acelerar, surpresa com a intensidade daquele contato tão simples.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável, mas carregado de algo que nenhum dos dois soube definir. Era como se, naquele instante, o mundo lá fora deixasse de existir.
Amanda foi a primeira a recuar, puxando discretamente a mão de volta. — Se precisar de mais alguma indicação, estarei por ali. — Apontou para o balcão, tentando recuperar a naturalidade.
Andrew assentiu, mas seus olhos continuaram a segui-la enquanto ela se afastava. Havia em cada gesto dela uma naturalidade que contrastava com o universo artificial em que ele vivia.
Enquanto Amanda atendia outro cliente, Andrew manteve o livro nas mãos, sem ao menos olhar a capa. A única coisa que lhe importava era o nome dela ecoando em sua mente.
Naquela tarde, Andrew Donovan comprou o primeiro romance de sua vida. Mas, mais do que isso, comprou uma desculpa para voltar.
E ele sabia que voltaria.
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