Lobão 🐺
O barulho dos tiros ecoava pelo Jacarezinho como se fosse fogos de artifício no ano novo. Só que ali, não tinha festa. Tinha guerra. E no meio do caos, quem manda sou eu. Quem vacila, sangra.
— Fica na contenção, não deixa os cara avançar! — eu gritei, AK no peito, sangue nos olhos.
Os alemão da facção rival tentaram invadir de novo, pelo lado da viela da Laje Azul. Mas esqueceram que aqui tem dono. Aqui é território do Lobão, e eu não sou de recuar.
Eles vieram com tudo, achando que iam tomar o beco no grito. Mas a quebrada já sabia o que fazer. Meu bonde tava em posição antes mesmo deles botarem o pé. Só ouvir o primeiro pipoco e os meus já estavam prontos pra guerra. Fogueteiro mandando sinal, rádio estourando nos ouvidos, e a comunidade toda se fechando — porque quando o bicho pega, o povo confia em mim pra manter a paz dentro do inferno.
Paz? No morro, paz só existe quando o inimigo tá enterrado.
Eu avancei na linha de frente, igual sempre fiz. Não mando fazer nada que eu mesmo não tenha coragem de fazer. Já vi muita coisa nesse chão manchado de sangue. Já perdi irmão, parceiro, e até parte de mim nessa guerra sem fim. Mas se tem uma coisa que eu nunca perdi foi o respeito.
Os alemão bateram de frente, mas vacilaram. Tava escrito na testa de cada um que iam correr quando vissem o verdadeiro dono do morro.
E correram.
— É isso, porra! Aqui é o Lobão, caralho! — eu berrei, com o dedo no gatilho, vendo os ratos sumirem no mato, largando arma e honra pra trás.
Depois do confronto, o silêncio pesa. O morro respira, mas nunca relaxa. Todo mundo me cumprimenta com o olhar. Uns com medo. Outros com admiração. Mas todos com respeito.
Já tive fome, já dormi no chão, já vi minha coroa chorar porque não tinha um arroz pra botar na panela. Cresci no meio do lixo, mas nunca deixei a sujeira me engolir. Entrei pro crime com 13, pra levar pão pra dentro de casa. Minha mãe, dona Selma, sempre foi guerreira... Ela me deu amor, quando o mundo só me dava tapa na cara.
Hoje, com 38 anos, eu sou o chefe mais temido e respeitado do Rio. Mas não foi sorte. Foi sangue, lágrima e pólvora.
Aqui, no Jacarezinho, só existe uma lei: a minha. E quem desafia... desce de caixão.
O sol nem se despediu direito e eu já tava na ativa. No morro não tem folga pra patrão. Aqui é 24 por 48, fuzil na mão e olhar atento.
— Traz os rádio, vê se a contenção da viela do campinho tá atenta... e manda o blindado abastecer. Hoje tem baile, e eu quero tudo no esquema, falei pro playboy, meu fiel de frente.
No Jacarezinho, ninguém respira sem eu saber. Tudo que entra, tudo que sai, passa por mim. Droga, dinheiro, fofoca... tudo. E quem vacila, dança. Quem fecha comigo, cresce.
Desci o morro devagar, carro filmado, vidro fechado, dois na frente e mais quatro atrás, todos de fuzil em punho. Os cria que tavam na esquina abriram passagem na hora. Os moleque me olham como se eu fosse um rei. E de certo modo, eu sou mesmo.
Aqui, minha palavra é lei.
Cheguei na laje que dá visão pra comunidade inteira. Um dos meus já tinha montado a base com caixa de som estourando os paredões de funk. A quebrada já começava a se agitar, a fumaça subindo, os copão de whisky rodando. As novinha já dançando com a alma, corpo grudado, rebolando sem vergonha.
— E aí, Lobão, hoje vai ser daquele jeitão, né? — gritou o Negrete, vindo com uma taça na mão. Riu, me cumprimentou no estilo, tapa forte na mão e abraço no ombro.
— Hoje é baile de patrão. Quero o morro sorrindo e os inimigo recuando, respondi, com um sorriso de canto.
Subi no camarote armado só pra mim. Sofá de couro, narguilé aceso, bebida de mil reais e meu bonde em volta. Todos prontos pro que der e vier. Os fuzil tava ali, mas escondido. Só mostrava se fosse necessário.
As mulher já colavam. Loira, morena, ruiva... tudo querendo atenção. Eu não nego fogo. Mas nenhuma me prende. No final da noite, sempre levo duas ou três pro meu QG. Mas sentimento? Isso eu enterrei faz tempo.
— Esse é o Lobão, porra! O rei do RJ! — uma gritou, jogando o cabelo e subindo no palco. O povo vibrou.
Me levantei devagar, olhei pro baile inteiro, levantei o copo e brindei pro alto.
— Jacaré tá fortão, cria! Quem comanda aqui é o Lobão!
A quebrada gritou. Fogos estouraram. Meus olhos correram cada canto do morro. Ali era meu território, meu império.
E se alguém ousar botar o pé aqui... vai cair.
Bruna

Eu gosto do silêncio da minha casa. Daquele momento em que o mundo lá fora tá gritando, mas aqui dentro tudo parece em paz. Passo meu hidratante no rosto, ajeito os cílios no espelho e tiro uma selfie rápida. O Instagram já é parte da minha rotina, tipo café da manhã. Tem gente que acha futilidade, eu chamo de autoestima.
Meus olhos são verdes, clarinhos, daquele tipo que ninguém esquece depois que cruza. Já ouvi de tudo: que parece pedra preciosa, que hipnotiza, que dá medo. Mas quem me conhece sabe... por trás desse olhar calmo, tem uma mulher que já engoliu muito choro em silêncio.
Meu cabelo é preto, liso, bem tratado, bate na cintura. Me dá trabalho, mas eu gosto. Gosto de ver ele brilhar na luz. Gosto da sensação de estar arrumada, mesmo quando por dentro tudo parece bagunça. Sempre fui vaidosa. Não por status. Mas porque se cuidar foi o único jeito que encontrei de não me perder.
— Linda como sempre, né, princesa? — comentou uma seguidora.
A gente tenta, respondi com um emoji de coração.
Sou vaidosa mesmo. Gosto de unha bem feita, cabelo alinhado, pele cheirosa e brilho nos olhos. Mas não se engane... não é só pra agradar os outros, é por mim. Por tudo que já vivi. Pela Bruna que eu me recuso a deixar morrer.
Trabalho num salão aqui mesmo no morro, o Estilo & Poder. Faço de tudo: unha, pé, alongamento, cílio fio a fio. E quando sobra tempo, ainda dou aquela moral no Instagram, mostrando o antes e depois das clientes, dicas de beleza e um pouco da minha rotina.
— Bru, tá pronta? Tem uma cliente na cadeira 2 pra cílios — gritou a Lari, do balcão.
— Tô indo, miga. É a de ontem, a loirinha?
— Ela mesma. Disse que só confia em você.
Sorrio com o canto da boca. Gosto de fazer bem feito. No salão, sou conhecida como "a mão de fada". No morro, a mulherada vive me chamando pra marcar horário. E onde eu passo, nego vira o pescoço. Não é arrogância. É que eu me cuido... e talvez, por isso, incomode.
Não sou de sair. Baile? Só se for muito especial. Festa? Prefiro Netflix e um hidratante no rosto. Mas mesmo assim, parece que o morro inteiro sabe quem eu sou. Talvez seja o Instagram, talvez seja o jeito de andar... talvez seja só o fato de que eu não me misturo com qualquer um.
Minha mãe sempre diz que eu tenho um brilho diferente. Eu só quero paz. Quero crescer, montar meu próprio estúdio, sair daqui um dia.
____
Tava de boa no meu quarto, deitada, mexendo no celular. Aquela hora que a gente só quer esquecer o mundo e relaxar. Acabei de sair do banho, cabelo ainda molhado, e aquela brisa gostosa batendo na janela. Meu corpo cansado, mas a mente a mil.
Entrei no Instagram pra responder uns directs, olhar comentário da selfie que postei mais cedo. Tudo normal, elogio aqui, coraçãozinho ali... até que apareceu uma notificação estranha.
@user_falso827:
> “Tu se acha demais, né? Olha no espelho e vê se tu é isso tudo mesmo, sua nojenta. Ninguém te suporta.”
Travei.
Li e reli umas três vezes.
Sem entender.
Sem acreditar.
Fechei o celular por um segundo, respirei fundo. Abri de novo. A mensagem tava lá. Direta. Crua. Sem motivo nenhum. Um fake. Zero seguidores. Sem foto. Sem coragem.
— Mãe! — gritei. — Vem cá rapidinho.
Ela veio da cozinha enxugando a mão no pano de prato, com aquele jeito apressado dela.
— Que foi, menina? Aconteceu alguma coisa?
Mostrei o celular. Ela leu a mensagem, ficou um tempo calada. A expressão dela foi mudando devagar... da curiosidade pro desprezo, e do desprezo pra raiva.
— Essas menina do morro são tudo baixa, Bruna. Inveja pura. Isso é recalque de quem não tem coragem de ser quem você é.
— Mas eu nem sei se é do morro, mãe. Pode ser qualquer um...
— Claro que é do morro! Isso é alguém que te vê todo dia, que acompanha tuas postagens, que sabe da tua beleza e da tua presença. Não aguenta ver você sendo elogiada, bonita, bem cuidada, trabalhando. Isso incomoda muita gente.
Suspirei.
Olhei de novo aquela mensagem.
Era só uma frase, mas doía. Não porque eu acreditava... mas porque eu sabia que era verdade: tem gente que odeia só porque você tá bem. Só porque você sorri.
— Não vale a pena responder isso não, né mãe? — perguntei baixinho, só pra confirmar o que eu já sabia.
— De jeito nenhum. Deixa essa pobre se remoendo sozinha. Quem se esconde atrás de fake é covarde. Tu sabe quem tu é. Tu é luz, minha filha. Luz incomoda quem vive na sombra.
Dei um sorriso fraco. Me sentei na cama, com ela do meu lado, passando a mão nas minhas costas. A presença da minha mãe sempre me trouxe paz. Mesmo nos dias mais difíceis.
Ela é braba, sabe? Criou eu sozinha, depois que meu pai morreu.
Ele foi morto num confronto aqui mesmo no morro. Era envolvido, soldado do tráfico. Ela nunca aceitou isso. Nunca perdoou. Mas também nunca deixou de me amar dobrado por conta da falta dele.
— Essas menina não sabem o que você passou, Bru... não sabem o quanto a gente já chorou junto aqui dentro desse quarto. Se soubessem metade, pensavam duas vezes antes de te atacar.
Assenti. Porque era verdade. A vida me ensinou cedo que ser bonita, arrumada, independente, incomoda. E que ser mulher no morro é carregar peso nos ombros e sorriso nos lábios ao mesmo tempo.
— Relaxa, mãe. Eu não vou deixar isso me afetar. Se alguém quis me atingir, errou de alvo. Só me deixou com mais vontade ainda de brilhar.
Ela sorriu. Orgulhosa. Me deu um beijo na testa e voltou pra cozinha.
E eu?
Eu deitei de novo.
Postei uma nova foto só de raiva.
E pensei comigo mesma:
Se ser eu incomoda, então vou ser mais ainda.
Bruna
O dia tava quente, mas Bruna tava fervendo era por dentro. Desde cedo, ela já tinha se arrumado toda: cabelo liso escorrido até a cintura, soltinho, aquele brilho que chamava atenção de longe. Short jeans colado, top coladinho também — mostrando o corpo que Deus e a genética deram, sem cirurgias, só charme natural e autoestima nas alturas.
Ela se olhou no espelho, deu uma risadinha e falou com si mesma:
— Hoje eu estou pra jogo.
Subiu pro terraço da laje com o ring light na mão, celular na outra, ajeitou o enquadramento com o fundo da favela e o céu azul lá atrás. Quando bateu o play, a batida já tava rolando. Era um funk novo que tava viralizando.Me ligou na madrugada no meu sono de beleza larrisinha carente não dorme sem mamadeira Ela começou a dançar com naturalidade, rebolando com precisão, com o olhar direto pra câmera, fazendo carão, jogando o cabelo de lado — daquele jeito que parava o feed de qualquer um.
Postou sem pensar duas vezes
depois de alguns minutos começou a surgir os comentários de seus amigos
> "Linda demais🔥"
"Braba do Jacaré 😍"
"A favela do jacaré tá bem representada
Ela atualizava a cada segundo e o número de seguidores só subia. 10... 20... 30 mil visualizações.
No meio da tarde, já tava com 20 mil seguidores. O celular vibrava sem parar, e ela não conseguia tirar o sorriso do rosto. Tirou print, mandou pra mãe:
— Mãe, olha isso! Eu tô crescendo!
A mãe respondeu com um coração e um “orgulho de você, minha filha”, mesmo ainda tendo o pé atrás com essa exposição toda.
Bruna só queria curtir aquele momento. Sentia que, pela primeira vez, tava sendo vista, admirada, desejada, mas não por ser "filha de fulano" ou "bonitinha do morro", e sim por ela mesma.
Quando o sol se pôs e ela foi deitar, já de pijama e com o ventilador ligado no máximo, abriu o Instagram de novo e não acreditou: 25 mil seguidores.
Sussurrou com um sorriso cansado:
— vinte e cinco mil... caralho...
Fechou os olhos com o coração acelerado. Mal sabia que aquele vídeo também iria chamar atenção de gente perigosa — e não só das invejosas que mandavam mensagem fake.
Lobão 🐺
A noite mal tinha caído e o ar já tava denso no Jacarezinho. Carga pesada ia descer, e Lobão não era homem de deixar nas mãos dos outros. Cada quilo de pó, cada tablete de maconha, cada frasco de lança, tudo passava pelo olhar dele. Não confiava em ninguém — só na mão que ele mesmo armava.
Três motos chegaram cortando o beco. Numa delas, um dos pilotos jogou uma mochila preta no chão. Depois outra, depois mais duas. Quatro mochilas abarrotadas. A tropa já sabia o esquema: descarrega, leva pra casa de apoio, confere, embala e distribui pros pontos.
— Bora, porra! Vamo agilizar! — gritou Lobão, a Glock presa no cós da bermuda e o olhar duro, varrendo o terreiro.
Enquanto contava os pacotes, algo chamou atenção dele. Um dos soldados da parte baixa, novinho, devia ter uns dezoito, tava encostado num poste com o olho semi-cerrado. Corpo mole, cabeça tombando. Cochilando no plantão.
Lobão nem pensou duas vezes. Caminhou firme, pesado. O som da chinela batendo no chão ecoou mais que tiro. Parou na frente do moleque, puxou ele pela camisa com brutalidade.
— Tu tá me tirando, arrombado?! Plantão não é cama, não, caralho!
— Foi mal, Lobão... juro que não dormi... só dei uma descansada no olho...
— Descansada o caralho! Imagina se os vermes do Mandela sobem aqui agora e tu tá aí babando no poste? Hein? Eu que vou segurar o caixão da tua mãe?
O moleque baixou a cabeça, tremendo.
— Desce pra base agora. Vai tomar um banho de água fria e volta com o olho arregalado. E agradece que eu tô de bom humor. Da próxima, tu vai pra contenção do lixão sem colete. Se vier tiro, é por tua conta.
— Valeu, chefia... não vai se repetir...
Lobão virou de costas com desprezo, ajeitou o boné na cabeça e voltou pro esquema. Conferiu tudo, deu a benção pros pacotes serem espalhados, passou na laje da contenção e trocou duas palavras com os gerentes. Depois disso, subiu pra casa dele — a fortaleza escondida no alto do morro, cercada de mata, com visão de 180 graus das bocas.
Ali era o único canto onde ele largava a postura. Só um pouco.
Jogou o rádio em cima da mesa, pegou o isqueiro e acendeu um baseado grosso, cheiroso, que já tava no ponto desde cedo. Deu uma puxada funda, sentou no sofá velho da varanda e deixou a fumaça sair pelas narinas. O mundo parecia mais calmo quando o THC batia.
Pegou o celular. Entrou no Instagram — aquele fake, sem foto, nome genérico, sem seguidores. Só usava pra stalkeá geral. Polícia tava na cola, ele não podia dar vacilo.
Rolava o feed no modo automático, até que o dedo parou. Um vídeo.
Ela.
Bruna.
Cabelo preto lisinho, batendo no meio das costas, short jeans colado, top cavado. Rebolava no ritmo de um brega funk, e o sorriso dela era sacanagem. Sorriso de mulher que sabe o efeito que tem.
Mas o que travou Lobão foi o fundo do vídeo.
— Caralho... isso é aqui.
A laje da casa do vídeo dava direto pro complexo. Favela do Jacarezinho no fundo, clarinha, inconfundível.
— Como assim essa gata mora aqui e eu nunca vi?
Entrou no perfil: @bruna_dantas13
Bio simples: "Deus na frente ✨"
Mais de 20 mil seguidores. Vídeo com quase 200 mil visualizações. Nos comentários, vários moleques da favela babando, mandando foguetinho, coração, elogio barato. Ele leu tudo em silêncio, o olho fixo.
Rolou o feed devagar, analisando cada foto. Piscina, espelho, vídeo dançando, boomerang mandando beijo. Linda. Corpo absurdo. Rosto de boneca. Jeito de mulher feita.
Deu mais uma tragada e balançou a cabeça, rindo sozinho, malicioso.
— Cê tá brincando comigo, né?
Ele não era homem de se apaixonar. O coração dele era blindado. Mas desejo? Desejo ele sentia fácil. E com Bruna, foi mais que isso. Foi obsessão à primeira vista.
— Essa daí vai sentar no pai... — murmurou, encostando a cabeça no encosto do sofá e salvando o vídeo no celular, mesmo sabendo que nunca ia admitir isso pra ninguém.
Ali, no meio da madrugada, cercado de silêncio e fumaça, nascia o início de um interesse perigoso.
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