NovelToon NovelToon

Usurpando o Amor

O Peso do Meu Nome

Mayara Marshall

Pobreza tem cheiro. Um cheiro que gruda na pele, no fundo da garganta, e nunca mais sai. É um misto de sabão diluído, pão dormido e umidade azeda. Eu nasci sentindo esse cheiro e jurei, aos sete anos, que um dia ele não me pertenceria mais.

Minha infância foi costurada com frustrações e promessas vazias. Meu pai desapareceu antes mesmo que eu aprendesse a falar seu nome. Minha mãe vendia cocada na porta da escola e dormia com os olhos abertos de tanto medo da vida. Eu a odiava por isso. Odiava sua resignação, sua fé tola em milagres e sua esperança podre. Mas talvez o que eu mais detestasse fosse me parecer com ela.

Aos dezessete, consegui um emprego como recepcionista num clube elitista da cidade. Foi lá que o cheiro da riqueza encostou em mim pela primeira vez. Couro caro. Perfume importado. Taças de cristal que tilintavam com arrogância. E foi lá também que conheci Eduardo Avelar. Um homem que carregava o mundo no terno alinhado e no sorriso contido. Casado, claro. Mas os homens como ele sempre são. E sempre traem.

Ele começou com gentilezas sutis. Uma flor sobre o balcão. Um elogio contido. Um convite inocente para almoçar. Eu soube, desde o primeiro olhar, que poderia tê-lo. Só precisava ser paciente.

— Você tem um brilho raro nos olhos. — ele disse certo dia, encostado no balcão, enquanto seus dedos brincavam com o gelo do uísque.

— Brilho não enche a geladeira, senhor Avelar. — respondi, com um sorriso que aprendi a usar como arma.

— Ainda assim, é difícil não reparar.

Era um jogo, e eu sabia jogar. As roupas ficaram mais ajustadas. O batom, mais vermelho. Os sorrisos, mais longos. E, quando ele finalmente tocou minha mão, soube que tinha vencido. Um ano jogando esse jogo e finalmente venci.

— Se minha esposa descobrir... — sussurrou no primeiro dia em que me levou a um hotel.

— Ela não vai. Não sou burra.

A amante perfeita. Era isso que eu seria. E fui. Por meses. Talvez anos. Não sei exatamente quando deixei de contar. Ele alugou para mim um apartamento, bancou minhas roupas, me levou a viagens curtas “a trabalho”. Eu fingia não me importar com a falta de reconhecimento público. Mas no fundo, eu contava os dias para dar o bote final.

E ele veio. Com duas linhas azuis no teste de farmácia. Quando contei da gravidez, Eduardo empalideceu como se tivesse visto a morte.

— Mayara... isso é sério demais. Eu não posso... — ele desviava os olhos, esfregando as mãos como se pudesse apagar o que ouviu.

— Pode, sim. E vai. — Cruzei os braços — Ou acha que vou criar um filho seu sozinha?

— Eu tenho uma família! Um nome!

— E eu tenho provas. Tem ideia de quantas fotos, recibos, áudios, tenho guardado?

Silêncio. Foi assim que ele cedeu. No dia seguinte, apareceu com a chave de uma casa nos arredores da cidade, um plano de saúde estendido e um cartão de crédito... limitado, infelizmente. Ainda não havia casamento. Nem sobrenome. Mas para mim, já era o suficiente. Por enquanto.

No dia do ultrassom, ele segurou minha mão como se tivesse esquecido de tudo.

— São duas. Meninas. — disse o médico, com um sorriso satisfeito.

Eduardo ficou sem palavras. Eu, por outro lado, pensei em dobro: dois nomes, duas chances, dois investimentos.

— Mayra e Mavis. — declarei — Os nomes são diferentes, mas nasceram para vencer.

Eduardo se emocionou. Mas eu só pensava na matemática do destino.

Nos anos seguintes, ele foi um pai presente e um homem generoso. Tínhamos estabilidade, conforto e uma rotina que beirava o luxo. Mas ele nunca assinou meu nome em papel algum. Nunca casamos. E isso me corroía por dentro. Porque eu sabia que, se algo acontecesse com ele, eu voltaria para o mesmo chão que jurei abandonar.

E foi exatamente o que aconteceu.

As meninas tinham cinco anos quando Eduardo morreu. Um infarto, fulminante, ali mesmo na sala de casa. Mavis chorava agarrada ao corpo dele. Mayra ficou muda, olhos arregalados. Eu? Eu fui direto ao cofre. Saquei o que pude da conta dele antes que a família bloqueasse tudo.

E bloquearam. A ex-esposa, os irmãos, até um sobrinho apareceu com advogado. A casa foi tomada, os carros vendidos. Tudo em nome da herança legítima. Como eu nunca fui esposa, não tinha direito a nada. Apenas uma pensão irrisória para as meninas, até completarem dezoito anos.

Foi quando decidi, se o mundo havia me virado as costas, eu usaria o que tinha. Minhas filhas seriam minha arma. Meu retorno. Meu legado de vingança e ascensão.

E tudo começaria com disciplina. Elas não teriam infância como a minha. Seriam moldadas para brilhar. Desde cedo, aulas de etiqueta, inglês, dança, dicção. Regras de peso, de postura, de comportamento. Viveriam para serem desejadas. E desejadas pelos certos: homens com sobrenome e fortuna.

Mayra me entendia. Sabia fingir, sorrir, manipular. Mavis era um problema. Queria ser normal. Sonhava com amor, simplicidade, um jardim com crianças rindo. Me envergonhava essa doçura toda.

— Mãe, por que eu tenho que usar esse vestido apertado? — ela perguntava com um biquinho infantil.

— Porque o mundo olha primeiro, depois escuta. E você vai aprender a ser vista antes de ser ouvida, Mavis. Guarde isso.

Elas cresceram lindas. Espelhos uma da outra. Mas só eu sabia quem era quem. Mayra, o fogo. Mavis, a brisa.

E agora, com vinte e dois anos, era chegada a hora de colher.

Aos olhos do mundo, eu era uma mãe dedicada, viúva precoce, batalhadora. Mas dentro de casa, eu era o que precisava ser: comandante, arquiteta de destinos. Minhas filhas não tinham o direito de escolher seus caminhos. Eu escolhia. Eu planejava. Eu investia. E elas obedeciam.

Mayra se moldou com facilidade. Desde criança, gostava de se olhar no espelho e perguntar se estava bonita o bastante para ser famosa. Dizia que queria ser atriz. Eu dizia que ela seria esposa de um milionário. Um não anulava o outro. Desde que ela soubesse seduzir e fingir, poderia ter tudo. E ela sabia.

Mavis, no entanto… ah, a minha decepção mais doce. Se parecia comigo no corpo, mas tinha a alma daquele homem fraco que a criou. Gentil, empática, simples. Gostava de andar descalça, de abraçar livros e bichos de rua. Era teimosa como o pai, com aquele olhar puro que parecia me acusar o tempo inteiro. Ela não me odiava, e talvez esse fosse o pior castigo.

Eu tentava trazê-la pro mundo real.

— Você precisa entender que o mundo não dá espaço pra quem sonha demais, Mavis. A vida é uma guerra. Quem não ataca, apanha.

— Eu não quero machucar ninguém, mãe. Eu só quero ser feliz.

— Felicidade não enche prato, menina. Amor não paga aluguel.

Mas ela não mudava. Cresceu gentil. Uma mulher linda, doce, mas com um caráter que era como âncora me puxando para a realidade. Ainda assim, mantive o plano. Enquanto Mayra brilhava nas festas e nos eventos sociais que eu fazia questão de levá-las, Mavis ficava nos cantos, sorrindo educadamente e depois voltava para casa, ler ou escrever. Achava isso patético.

Mas a sociedade adorava gêmeas. Idênticas. Atraentes. Educadas. Com passados tristes e mães que vendiam a imagem da superação. E foi nessa brecha que enxerguei Jensen Montserrat.

Bilionário. Dono de casas noturnas, hotéis, torres empresariais. Um homem reservado, ferido pela viuvez precoce, avesso a escândalos. Discreto, intenso, solitário. Um prato cheio para alguém como Mayra. Bonita, vaidosa, e com a língua treinada para agradar qualquer tipo de ego masculino.

Eu investiguei tudo sobre ele. A rotina, os lugares que frequentava, as pessoas com quem falava. E quando descobri que ele voltaria a investir em eventos sociais após um tempo recluso, tratei de inscrever Mayra em tudo que ele poderia cruzar o olhar. Desde aulas de polo a convites para jantares beneficentes.

Ela relutou no início, mas bastou ver a primeira foto dele para que sorrisse com malícia.

— Então esse é o alvo? Ele é charmoso. Parece o tipo que gosta de ser desafiado.

— Ele é o tipo que precisa acreditar que tem controle. Dê isso a ele. E depois tire.

E ela fez. Com maestria.

As coisas aconteceram rápido demais. Primeiro o olhar cruzado num leilão de arte. Depois uma taça de vinho dividida num jantar da prefeitura. Uma conversa longa demais sob o pretexto de negócios. Jensen caiu. E Mayra foi o laço de cetim no abismo que ele não percebeu.

Quando ele a pediu em casamento, achei que era um sonho. Finalmente, tudo que planejei estava prestes a se realizar. Eu já visualizava meu novo lugar no mundo. Afinal, a sogra da esposa de um Montserrat não é alguém tão dispensável, e a mãe da esposa do Montserrat é quase realeza.

Só que no dia do casamento… ela fugiu.

Mayra, a filha perfeita. A que sempre entendeu o jogo. A que sempre me jurou fidelidade. Fugiu.

Deixou um bilhete. Frio. Rápido. Egoísta.

— “Não nasci pra isso. Não posso viver essa mentira. Me perdoe, mamãe. Mas eu escolho ser livre.”

Ela escolheu ser livre. E me deixou presa no maior vexame da minha vida. A igreja lotada. A imprensa do lado de fora. Os convidados. As alianças. Jensen.

E foi então que, pela primeira vez em anos, olhei para Mavis como solução. Ela tentou fugir, chorou, implorou. Mas eu sou uma mulher treinada para vencer. Estratégica, eu tinha meu plano b.

— Eu estou doente, Mavis. Preciso de uma cirurgia cara. Se você me ama, não vai me deixar morrer assim. Você é igual à sua irmã. Ninguém vai perceber. Case-se no lugar dela. Só até resolvermos tudo. Depois você some.

Ela estava pálida, tremendo. Mas quando viu o envelope com exames falsificados que mandei imprimir, ela desabou.

— Isso é loucura, mãe…

— Loucura é você me ver morrer por orgulho. Jensen não vai perceber. Ele mal a conhece. Você pode fazer isso por mim. Por nós.

Ela assentiu. Chorando. Mas aceitou.

E eu respirei. Pela última vez antes da próxima luta.

Porque a partir dali… tudo mudaria.

Um Felizes Para Sempre Incompleto

Jensen Montserrat

Algumas pessoas acreditam que só se ama de verdade uma vez na vida. Por muito tempo, eu acreditei nisso também.

Soraya… ela era tudo que eu queria e tudo que eu perdi.

Nos conhecemos em uma reunião informal da empresa, num daqueles jantares de fim de ano em que todos se esforçam para parecer mais amigáveis do que realmente são. Eu estava sentado ao lado de Alceu, um dos meus sócios mais antigos, quando ela apareceu. Soraya Azevedo, a filha dele. Cabelos castanhos ondulados, sorriso que abria sem esforço e olhos cheios de inteligência. Havia algo nela que desarmava, mesmo à distância.

— Então você é o famoso Jensen Montserrat… — disse ela, puxando uma cadeira ao meu lado — Já ouvi tantas histórias sobre você que nem sei se devia estar sentando aqui.

— E você acredita em tudo que ouve? — retruquei, sorrindo.

— Só nas partes boas. — ela piscou.

Soraya era leve. Inteligente, sarcástica no ponto certo, rápida com as palavras e com um senso de humor raro. Ao longo daquele jantar, esquecemos do resto do salão. Conversamos sobre música, ela amava Queen, como eu, sobre filmes antigos, sobre livros que marcaram nossas infâncias. Era como reencontrar uma parte de mim que nem sabia que faltava.

O namoro começou alguns dias depois. Não houve joguinhos, nem promessas em excesso. Foi fácil. Leve. Natural.

— Você tem essa mania de me olhar como se já me conhecesse há anos. — ela dizia, deitada no meu peito nas manhãs de domingo.

— E talvez eu tenha mesmo. Só não sabia ainda que era você que faltava. — eu respondia, sempre com os dedos brincando nos cabelos dela.

Durante um ano, fomos inseparáveis. Viajamos, reformamos um apartamento juntos, escolhemos cortinas que nenhum de nós realmente entendia, mas nos divertíamos fingindo que sim. Ela adorava fazer planos. Era do tipo que rabiscava no canto do caderno o nome dos nossos futuros filhos.

— Se for menina, quero que se chame Lara. Se for menino, Caio. Promete que vai deixar?

— Prometo. Desde que o segundo possa se chamar Freddie. Em homenagem ao Mercury.

— Combinado, rockstar.

Eu nunca imaginei que algo pudesse nos tirar aquele futuro. Por isso, quando a pedi em casamento, coloquei tudo naquele momento. Alianças feitas sob medida, um jantar no lugar onde nos conhecemos, uma carta escrita à mão.

Ela chorou. Eu tremi. E por um instante, acreditei que o mundo realmente podia ser justo.

Nos casamos em uma cerimônia pequena, cercados por flores brancas e pessoas que amávamos. Soraya parecia ter saído de um sonho. Vestido rendado, sorriso emocionado, olhos brilhando de esperança. Eu me lembro do cheiro dela naquele dia. Lavanda e Rosas.

— Eu nunca mais vou deixar você sozinho. — ela disse no altar, entre lágrimas e risos.

Mas ela deixou. Uma semana depois.

Foi um acidente idiota. Um táxi desgovernado, uma tarde chuvosa, um retorno de um almoço com as amigas. Ela não estava comigo. Eu nem sabia que ela tinha saído. Recebi a ligação às 15h42, do hospital. A voz da pessoa do outro lado era fria demais para a gravidade que carregava.

— “O senhor Jensen Montserrat?”

— “Sim.”

— “Sua esposa, Soraya Azevedo Montserrat… sofreu um acidente. Ela está em estado crítico. Precisa vir imediatamente.”

O mundo se apagou. Saí correndo da empresa, o coração aos pulos, a respiração falha. Quando cheguei, ela ainda estava viva, mas apagando aos poucos. A costela dela havia perfurado o pulmão. Sangramento interno. Muita dor. Muito pouco tempo.

Entrei na sala de emergência e quase não a reconheci. Rosto machucado, cabelos sujos de sangue, os olhos tentando ficar abertos só para me ver.

— Jensen… — ela sussurrou — Desculpa… eu só queria… queria comprar aquele vinho que você gostou…

— Não fala. Não precisa falar nada. Estou aqui… Soraya, por favor, fica comigo. Fica comigo…

Ela tentou sorrir. As lágrimas escorreram antes que o monitor ficasse mudo.

Eu gritei. Três enfermeiros me tiraram da sala. E junto com eles, levaram a minha esperança.

Enterrei Soraya com as próprias mãos, num caixão branco que parecia zombar da nossa história curta. Na noite do dia que a enterrei sofri um acidente de carro que ironicamente me deixou uma cicatriz na costela. Durante semanas, fiquei trancado no nosso quarto. O apartamento cheirava a lavanda e ausência. Eu não comia. Não dormia. Olhava para as fotos e esperava que tudo fosse um pesadelo.

Nunca mais consegui ouvir Queen sem chorar. Nem assistir aos filmes que ela amava. Cada canto daquela casa era uma lembrança. Cada peça de roupa esquecida num canto, uma faca no peito.

— Você prometeu que nunca ia me deixar sozinho. — eu sussurrava no escuro.

Mas ela deixou.

E eu morri junto com ela. Só que continuo aqui… respirando o que sobrou.

Seis anos se passaram desde o último adeus. O luto deixou cicatrizes invisíveis, mas reais. Voltei ao trabalho cedo demais, escondendo meu vazio atrás de contratos milionários e copos de uísque que nunca me embriagavam o suficiente. Me tornei mais frio, mais seletivo. E completamente indiferente a relacionamentos. Até aquela noite.

Foi em um evento beneficente. Eu tinha sido um dos patrocinadores e, como de costume, precisei comparecer. Estava entediado, pronto para sair mais cedo, quando a vi.

Ela usava um vestido vermelho discreto, mas que a deixava com uma elegância difícil de ignorar. Os cabelos castanhos estavam presos em um coque baixo, e os olhos… ah, os olhos carregavam algo que me puxou antes mesmo que eu pudesse pensar.

— Boa noite. — Ela sorriu, estendendo a mão — Sou Mayra Marshall. Nos conhecemos?

— Ainda não. Mas pretendo corrigir isso agora. Jensen Montserrat. — Apertei sua mão e senti algo estranho. Um calor discreto. Um clique silencioso.

Conversamos por longos minutos. Depois por horas. Ela era sagaz, educada, surpreendentemente culta. Sabia citar autores clássicos e ao mesmo tempo debatia cinema com leveza. Tinha o tipo de humor refinado que me fazia rir mesmo sem perceber.

Mas o que me intrigou foi sua reserva.

Nas semanas seguintes, saímos várias vezes. Restaurantes, jantares sociais, caminhadas tranquilas. E em todos esses encontros… nada de beijo.

Ela desviava o rosto, sorria tímida, recuava com delicadeza.

— Está tudo bem? — perguntei uma vez, quando nossos rostos quase se tocaram ao final de uma noite.

— Eu só… não costumo correr com certas coisas. — Sua voz era suave — Não me leve a mal. Gosto de você. Mas prefiro esperar.

— Esperar o quê, exatamente?

— O momento certo. — E desviou os olhos com um rubor que me confundia.

Voltei para casa naquela noite tentando entender o que havia ali. Era medo? Trauma? Jogo? Mas havia uma doçura tão sincera nela, uma hesitação que me tocava. Comecei a acreditar que Mayra talvez fosse… virgem.

A ideia me pegou de surpresa, mas explicaria tanta coisa. E me deu ainda mais vontade de proteger aquela mulher. Comecei a observá-la com outros olhos. Cada gesto, cada palavra, cada recuo. Comecei a vê-la como algo raro. Precioso.

Certa noite, comentei com Enzo, um amigo antigo e sócio:

— Acho que estou me apaixonando de novo.

— Por uma mulher que ainda nem te beijou? — ele riu, apoiado no balcão do nosso bar particular.

— Justamente por isso. Ela me faz querer mais. E não falo de cama. Falo de vida. De futuro. Com Soraya foi rápido, intenso. Com Mayra… é calmo. E ainda assim, avassalador.

Enzo me olhou por um momento, mais sério:

— E você tem certeza que está pronto pra isso?

— Não. Mas pela primeira vez em seis anos… eu quero tentar.

E eu tentei. Na semana seguinte, a pedi em casamento.

— Jensen… — Ela arregalou os olhos — Tem certeza?

— Não. Mas eu tive certeza com Soraya, e veja no que deu. Talvez amar seja isso: arriscar sem ter garantias. Só me diga que vai ficar.

— Eu vou. — Ela sorriu — Mas promete que vai segurar se eu cair?

— Prometo. Até mesmo se o mundo cair.

O dia do casamento chegou. O céu estava limpo, a igreja decorada com lírios brancos e velas suaves. Minhas mãos estavam frias e o coração acelerado como há muito tempo não sentia. Vesti o terno cinza escolhido por ela, e ao me olhar no espelho, senti uma paz diferente.

Os convidados foram chegando. Minha mãe, alguns amigos antigos, sócios, empresários. A cerimônia estava marcada para as 17h em ponto. Quando o relógio marcou 17h15 e nada da noiva, senti um leve desconforto. Mas não me preocupei. Noivas sempre se atrasam. É tradição, não é?

E então… os portões se abriram.

Lá estava ela.

Atravessando a igreja com o braço enlaçado ao da mãe. O véu cobria seu rosto, mas havia algo em sua postura… na suavidade dos passos… que me paralisou. Senti um arrepio na espinha, uma pressão no peito. Quando chegou perto, e sua mãe colocou a mão dela na minha, senti meu coração tropeçar uma batida. Minha respiração falhou. Era como se meu corpo soubesse o que minha mente ainda não conseguia entender.

O padre começou a cerimônia. As palavras passaram por mim como se eu estivesse submerso. Só voltei à realidade quando chegou o momento do beijo.

Ela estava ali. Diante de mim. E mesmo sem ter visto nitidamente seu rosto, eu sabia: era agora. Era o momento que eu havia esperado por meses.

— Finalmente… — sussurrei, emocionado — O nosso primeiro beijo.

E então, levantei o véu.

Seus olhos se encontraram com os meus. E por um segundo, tudo em mim silenciou. O mundo parou. O ar sumiu. Eu não soube quem eu era, nem onde estávamos. Só sabia… que ali, nos braços dela, eu poderia morrer e viver ao mesmo tempo.

E a beijei.

Jensen Montserrat

Mavis/Mayra Marshall

As Cores Que Apaguei de Mim

Mavis Marshall

Dizem que a memória guarda o que a alma se recusa a esquecer. E eu me lembro de tudo.

Dos dedos do meu pai afagando meus cabelos enquanto contava histórias. Do cheiro de perfume cítrico que ele trazia nos braços após um dia de trabalho. Do modo como ele dizia meu nome como se fosse uma canção:

— Mavis, minha pequena estrela. Promete que nunca vai deixar esse mundo endurecer você?

— Prometo, papai. Mesmo se o mundo virar pedra, eu vou continuar flor.

Ele ria alto, os olhos brilhando de orgulho. Ele me chamava de sua luz. E por muito tempo, eu fui.

Mas então… a luz dele apagou.

Eu tinha apenas cinco anos quando vi a morte roubar o que eu mais amava.

Estava sentada no tapete da sala, desenhando. Meu pai assistia futebol, como todo domingo. Quando o silêncio caiu repentino, olhei para o sofá. Ele estava imóvel, a mão no peito, os olhos vidrados. Corri até ele.

— Papai? Papai, responde…

Mas ele não respondeu. E meu choro rompeu o mundo.

Abracei seu corpo que começava a ficar gelado, gritei por socorro. Ninguém veio a tempo. Ninguém poderia devolver meu pai.

Naquele dia, eu aprendi que a morte não tem pena. E que amor nenhum é eterno.

Depois disso, tudo mudou.

Minha mãe se fechou. Primeiro chorava à noite. Depois passou a me olhar com uma dureza que eu não entendia. E então vieram as ordens. As regras. As imposições.

— Essa roupa está larga demais. Vista esse vestido justo.

— Mas eu não gosto, mãe…

— Ninguém perguntou. Você precisa aprender a ser notada.

Começou com os vestidos. Depois os perfumes doces demais. Os saltos altos que machucavam meus pés. A maquiagem carregada que me fazia sentir outra pessoa no espelho. Os penteados elaborados demais para uma adolescente.

Eu queria livros, plantas e tardes tranquilas. Ela queria um troféu moldado à força. E sempre me comparava à minha irmã.

Mayra… minha gêmea idêntica. Mesmo rosto. Alma oposta.

Ela adorava o brilho. A atenção. As festas. Os olhares. Sempre foi bonita, charmosa, vaidosa. E mesmo assim, nunca me fez sentir inferior. Pelo contrário, era ela quem me defendia quando a mamãe exagerava.

— Mãe, para. Deixa a Mavis em paz. Nem todo mundo precisa ser como eu.

— Você fique calada, Mayra! Só porque você consegue, não significa que pode me ensinar a ser mãe.

Mayra revirava os olhos, mas desistia. Eu só abaixava a cabeça.

Festas e eventos se tornaram rotina. Eu odiava todos. Ficava nos cantos escuros, fugindo dos olhares e das taças de champanhe. Até aquela noite.

Foi em uma festa de aniversário de um empresário influente. Luzes demais, risos falsos demais. E eu, encolhida atrás de uma pilastra decorada, tentando não chamar atenção. Foi ali que o vi. Sozinho, também deslocado.

— Escondida também? — ele perguntou, com um sorriso torto.

— Eu prefiro a parte silenciosa da festa.

— Eu também. Meu nome é Ezra.

— Mavis.

Conversamos por uma hora. Depois por duas. Ele era diferente. Gentil. Desajeitado. Distraído. Me fez rir. E riso, naquela fase, era coisa rara.

Trocamos números. Nos falamos por mensagens. Passeios. Cafés. Em dois meses, estávamos namorando. Eu tinha dezoito.

— Você confia nele? — Mayra perguntou certa noite, me vendo sair.

— Acho que sim. Ele me trata bem.

— Só fique atenta. Às vezes, a doçura vem antes da mordida.

Minha mãe não gostava de Ezra no começo. Chamava-o de novo rico sem educação. Mas algo mudou de repente. Ela ficou gentil. Permitindo saídas. Dando espaço.

— Que bom que encontrou alguém que goste de você. — disse ela, com um sorriso estranho — Só não decepcione. Ele pode ser útil.

Eu não entendi. Mas estava apaixonada demais para pensar. Ezra era amoroso. Atencioso. Até que deixou de ser.

— Você nunca me beija de verdade. Nunca me deixa tocar você. — ele reclamou uma vez, num banco de praça.

— Ezra, eu… não sou contra isso. Mas eu quero esperar até o casamento.

— Isso é coisa do século passado, Mavis. Acha mesmo que vou esperar anos por isso?

— Se me ama, vai respeitar meu tempo.

Ele suspirou. Aceitou. Por fora. Porque por dentro, algo já havia mudado.

Dois meses depois, veio o primeiro tapa.

Foi após um jantar, por causa de uma roupa que ele considerou provocante demais. Um tapa seco. Estalado.

— Desculpa. Foi o estresse. Eu estava nervoso. Não era com você.

Na semana seguinte, cem rosas vermelhas e um colar de diamantes chegaram no meu quarto. Junto com uma carta de amor.

Mayra quis matar ele. Mas minha mãe… minha mãe silenciou.

— Ele perdeu a linha, mas homens são assim. Se você reagir, perde ele. E perder homem bom é burrice.

— Um homem bom não bate. — eu disse, com a voz fraca.

— E mulher fraca nunca conquista nada.

O pior ainda estava por vir.

Um mês depois, após uma discussão por ciúmes, Ezra me bateu. De verdade. Várias vezes. Chutes. Socos. Me deixou caída no chão, com os lábios sangrando e os braços marcados.

Mayra me encontrou. Quis chamar a polícia.

— Eu vou matar esse desgraçado! — ela gritava.

— Não. Por favor… só me ajuda a sair daqui.

Dessa vez, minha mãe não defendeu.

— Se ele se aproximar de novo, eu mesma acabo com ele. — disse, os olhos cheios de fúria.

Mas não o fez. Não precisou.

Eu terminei. Me afastei. Tentei reconstruir minha vida. Mas Ezra não esqueceu. Me perseguia pelas redes. Aparecia perto do meu trabalho. Mandava presentes. Tentava me convencer de que era amor.

Três anos depois, ele ainda me assombra.

E agora… estou casando com um homem que não é meu. Com um nome que não é meu. Vivendo uma mentira que me destrói mais do que os socos de Ezra.

Os aplausos da igreja soavam distantes, abafados, como se eu estivesse submersa. O mundo girava em câmera lenta ao meu redor. Flores brancas, sorrisos falsos, olhares curiosos. E eu ali, parada, com o coração tropeçando e os pulmões esquecendo como respirar.

O véu cobria meu rosto, mas não o bastante para esconder a verdade de mim mesma: eu estava prestes a ser beijada por Jensen Montserrat. Um homem que, há dois dias, casou no civil com a minha irmã. Sim. Meu cunhado. Eu era a cópia. O fantoche. A sombra viva de uma mentira cruel.

Minha mãe, supostamente doente, me implorou com os olhos para fazer isso. Disse que não tínhamos dinheiro para o tratamento. Que só eu podia salvá-la. Mas uma pergunta insistente me perfurava o peito desde que subi nesse altar:

Será que Mayra sabia da doença antes de fugir?

Mas toda dúvida sumiu quando Jensen levantou o véu.

Foi como se o tempo parasse.

O rosto dele se revelou diante de mim com uma beleza grave, dolorosa. Tão perto. Tão real. Os olhos dele me encontraram e, naquele segundo, meu corpo esqueceu como funcionar. Minha mente berrava que aquilo era errado, mas meu coração… meu coração apertava como se, de alguma forma estranha, me reconhecesse nele.

Eu queria me afastar. Gritar. Fugir. Mas não consegui. Estava presa. Nos olhos dele. No toque suave quando segurou minha mão. No modo como ele sorria. No modo como ele me desejava… achando que eu era outra.

O padre anunciou o beijo. Jensen se aproximou com os olhos úmidos de emoção. E então disse:

— Finalmente… o nosso primeiro beijo.

E me beijou.

Ah, se ele soubesse…

Os lábios dele tocaram os meus com uma delicadeza dolorosa. Era suave, profundo, inteiro. Um beijo que não pedia permissão, mas também não forçava. Apenas tomava… como se fosse destino.

Minha mente gritava "não". Meu coração gritava "sim". Uma guerra interna explodiu dentro de mim e eu não sabia quem venceria. Mas meu corpo já havia se rendido. Meus olhos fecharam. Minhas mãos cederam. Meu peito afundou contra o dele.

E por um instante… eu beijei como se fosse verdade.

Quando ele se afastou, os olhos fixos nos meus com uma paixão tão sincera que me cortou, senti meu coração se partir em silêncio. Eu não era a esposa dele. E ainda assim, o beijei como se fosse.

Meu corpo implorava para viver aquele momento. Minha alma… queria desaparecer.

Olhei para o lado, procurando algum fragmento de realidade. E vi minha mãe. Sentada na primeira fileira. Com um sorriso satisfeito no rosto e um sinal de positivo com os dedos.

"Mal feito, feito..." como em um feitiço sombrio de um dos meus livros favoritos de Harry Potter. Um juramento que não poderia mais ser desfeito.

Eu queria contar a verdade para Jensen. Gritar que eu não era a mulher que ele acreditava ter escolhido. Mas então pensava na minha mãe. No exame. Na promessa de que, se eu recusasse, ela poderia morrer.

E eu não queria ser a responsável por essa morte.

Para mais, baixe o APP de MangaToon!

novel PDF download
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!