O cheiro de café velho e marca-texto me embriaga enquanto rabisco anotações pela quarta vez. Meus olhos pulam de linha em linha, como se cada parágrafo fosse uma sentença de morte ou liberdade. Falta pouco. Pouco não, praticamente nada. Só mais essa última revisão e estarei pronta. Pronta pra enfrentar a bendita prova da Ordem e, quem sabe, finalmente deixar de ser a estagiária explorada do escritório pra virar oficialmente... advogada.
Meu Deus. A palavra até arrepia.
Advogada.
Sinto um orgulho bobo, quase infantil, enquanto imagino meu nome estampado num cartão de visitas. "Lana Duarte — Advogada". Chique, né? Me imagino entrando num tribunal, pasta na mão, blazer impecável, cara de quem não deve e não teme, pronta pra derrubar qualquer argumento com aquele tom de quem sabe mais que todo mundo.
Sorrio sozinha. Tô tão perto. Tão perto que já sinto o cheiro da vitória misturado com o suor da ansiedade. Me ajeito na cadeira, cruzo as pernas em cima da mesa, porque, sim, eu estudo como quiser, e volto pro Código Penal como quem lê fofoca no Instagram.
- Bora, Lana. Foco. Você nasceu pra isso. Falo pra mim mesma.
Nossa rotina é bem peculiar. Mamãe costuma ouvir aqueles podcasts de meditação que mais parecem mantras de exorcismo, e papai provavelmente tá trancado no escritório xingando o contador. Tudo normal.
Ou... deveria estar. Até que ouço algo fora do comum.
Um barulho seco corta minha concentração. Tipo... algo caindo.
Tento ignorar e manter o foco.
Deve ter sido a bendita da gata da vizinha que vive pulando o nosso muro e entrando em casa.
Volto pro livro. Mas, de repente, um grito.
Estridente. Rápido.
Mamãe!
- Ai, mãe... sério? Resmungo, revirando os olhos.
- O gato deve ter a tirado de sua meditação com um grande susto.
Sorrio, meio sem graça, meio tentando não me incomodar e volto. Só que aí... mais barulho. Alto. Vidro quebrando. Coisa caindo. Um estrondo forte fora do comum que vei lá de baixo.
O frio sobe pelas minhas pernas. Tenho uma sensação ruim.
- Que porcaria é essa...?
Me levanto devagar, o corpo inteiro em alerta. A mão meio tremendo segura a ponta da mesa. Tento ouvir. Tem vozes. Mas não são as vozes da minha mãe, nem do meu pai. São grossas, nervosas, rápidas. Mas não consigo entender sobre o que estão falando.
Sinto um arrepio na espinha que me faz gelar até a alma. Tenho certeza algo está errado.
- Isso não tá certo. Murmuro, com o coração disparando.
Dou dois passos até a porta. A mão na maçaneta, trêmula. Seguro o ar e, no impulso, abro.
Diante de mim, como um pesadelo materializado... um homem. Alto, forte, encapuzado. Rosto parcialmente coberto, luvas pretas, todo de preto. E, pendurada no ombro dele... uma arma.
Por instinto, faço a única coisa que meu corpo consegue: empurro a porta de volta na cara dele com toda a força que tenho.
- NÃO! Grito, girando a chave com as mãos tremendo.
Ele bate na porta.
Uma, duas vezes. Não forte. Não bruto. Calmo. Gentil. Mas firme.
- Abre, moça. Vai ser melhor pra você. Abre.
Melhor... pra mim? Só se for pra me matar mais rápido.
Corro até a escrivaninha, procurando o celular como quem procura o ar. Meus dedos esbarram nos livros, nas canetas, tudo cai no chão. Acho. Pego. Disco o 190.
"PÁ!"
Um tiro. A tranca voa. A madeira lasca. A porta se abre com um estalo seco, como se tivesse quebrado a espinha da casa.
- NÃO! Grito, tentando correr.
Mas ele é mais rápido. Me puxa pelo braço com uma força que quase desloca meu ombro.
- Anda. Sem gritar. Se fizer qualquer coisa te mato. A voz dele é fria. Seus olhos...é...como se já tivesse visto esse olhar antes.
Me arrasta pelo corredor, escada abaixo. Meu coração parece um tambor furado, batendo rápido e vazando desespero.
Quando chego na sala de jantar, o mundo simplesmente desaba.
Ali, amarrados em cadeiras, estão meus pais. Minha mãe, os olhos arregalados de pavor, lágrimas escorrendo. Meu pai, com a cara dura, tentando manter a pose de homem que nunca se curva, mesmo à beira do abismo. E... Marlene. Nossa governanta. Coitada. Tremendo feito vara verde.
- Eu... eu já falei! Meu pai grita, a voz trêmula, mais de raiva do que de medo.
- A gente não tem mais nada! Pegaram tudo que podiam!
- MENTIRA! Outro homem, esse mais baixo, mais agitado, praticamente pula na frente dele, apontando uma arma pro rosto do meu pai.
- CADÊ O DINHEIRO?! O DINHEIRO?! EU SEI QUE TÁ AQUI!
- Não tá! Meu pai insiste.
O barulho que sai do peito do homem é quase um rosnado. Ele levanta o braço, pronto pra dar uma coronhada na cabeça do meu pai.
Só que...
PÁ!
Um disparo, um acidente.
A arma explode.
Meu pai!
O corpo dele cai pra frente, como uma marionete que teve os fios cortados. O sangue escorre. Minha mãe grita. Eu... eu não sei o que sinto. É como se o mundo congelasse, mas dentro de mim tudo estivesse pegando fogo. E eu paro no último degrau da escada. O homem que estava comigo corre até o outro.
- QUE MERDA VOCÊ FEZ?! O cara grita explodindo. Dá um soco no ombro do outro.
- AGORA A GENTE APAGA TODO MUNDO! O desastrado diz.
Sem nem hesitar, ele levanta a arma. Atira do lado da cabeça de minha mãe.
A bala atravessa a cabeça e também atinge a cabeça de Marlene. Um único disparo matou as duas.
Os corpos caem. Sem tempo pra despedida. Sem tempo pra mais nada.
O cano da arma vira pra mim. Eu encaro. Congelada. Sinto as pernas falharem, o corpo travar, a garganta fechar. É assim? É assim que eu morro?
O homem que me arrastou coloca a mão sobre a arma.
- Ela não! Ela pode ser útil.
- Ficou louco ela é testemunha. Diz o assassino.
Mas de repente...
Vrrr... Vrrr...
O som do portão da garagem abrindo invade a sala.
Ele olham em direção a porta. O nervosismo explode.
A distração. Minha única chance.
Sem pensar, sem planejar, simplesmente corro. Corro como se o inferno tivesse abrido a boca atrás de mim. Empurro a porta lateral, que dá acesso ao corredor atrás da mansão e saio disparada na direção do portão da garagem.
Vejo o carro. Vejo o motorista. E, mais importante, vejo Jr.
- AAAAAAAH! Grito, acenando desesperada. Para que ele não entrasse na garagem, ou eles também morreriam.
Ele engata a ré e sai acelerando, e em seguida fecha o portão. Eu corro, ouço as vozes atrás de mim.
- Peguem ela. Peguem. Eu corro em zig zag enquanto ouço os disparos.Eu me jogo no chão e deslizo pela pequena abertura que ainda havia do portão. Assim que caio na calça o portão se fecha.
- Senhorita! Senhorita! Entre. Grita Matias o motorista.
- ACELERA!!! ACELERA, PELO AMOR DE DEUS!
Matias, com reflexo de filme de ação, bate a ré. Os pneus cantam. Ele mete o pé no acelerador.
Daniel Jr está pálido, perdido, sem entender nada.
- O QUE TÁ ACONTECENDO?! Ele berra.
Eu fico calada.
- Senhorita? O que houve?
Eu permaneço calada. Em choque, revendo a cena em minha mente.
- Lana??? Lanaaaa??? A voz de Jr está longe.
- Senhoritaaa??
Até que Jr me chacoalha.Me fazendo retornar ao presente.
- Estão...estão todos mortos! Eu sussurro com as lágrimas rolando.
- Mortos? Quem? Porquê? Jr pergunta perdido.
- Todos mortos. Mamãe, Papai e Marlene.
Eles ficam calados e em choque.
- Mortos???Jr repete com uma dor imensa e eu o abraça apertado.
O carro voa pela rua. Cortamos esquina, quebramos limite de velocidade, passamos sinal vermelho. Chegamos na delegacia como quem chega fugindo do apocalipse.
Desço cambaleando, gritando por socorro. Meus braços tremem. Minha boca não funciona. Só sai choro, soluço, gemido. Ben, coitado, tá colado em mim, sem entender nada.
- Meus pais... meus pais... Tento dizer, mas a voz falha.
- Eles... eles...
Policiais correm. Perguntam. Anotam. Eu não lembro o que respondo. Só sei que, quando voltamos com a viatura, com sirenes rasgando o silêncio, eles já não estavam lá.
Só...
Os corpos.
O cheiro de pólvora e sangue.
E o som de um futuro que, até duas horas atrás, parecia promissor... agora estilhaçado.
Pra sempre.
Dr Silveira, a quanto tempo é advogado de nossa família? Uns dez ou quinze anos? Pergunto.
- Na verdade são 32 anos.
- Então sabe muito bem quem era meu pai. Não podemos perder a mansão.
- Senhorita Lana. Eu compreendo o que está dizendo. Mas me compreenda, a Mansão foi dada como garantia em um empréstimo, ainda resta 3 anos para finalizar, e a Srta não tem como assumir essa dívida.
- Mas essa casa é nossa e foi construida pelo papai. Ele idealizou e projetou tudo.
- Sim eu entendo que haja um valor sentimental, mas durante a pandemia, as empresas do Sr Daniel enfrentaram dificuldades, ele abriu capital para ver se melhoraria mas não foi o suficiente e hipotecou a mansão para conseguir um emprestimo.
Eu reviro os olhos com a notícia.
- E as contas? Sei que o papai tinha dinheiro.
- Sim. Uma parte os bandidos conseguiram transferir e o restante só é liberado após inventário.
- E os investimentos, a participação do Papai nas empresas?
- Sim! Segue o mesmo principio, somente após o inventário. E isso daqui no minimo 1 ano.
- E os nossos investimentos, eu e Daniel Jr. temos nossa conta com reserva de emergência e as ações para a aposentadoria?
- Isso você pode mexer. Mas o Daniel Jr. também requer um processo por ele ser menor de idade.
- Srta. posso lhe dar um conselho?
- Claro!
- Tenha paciência! Melhor perder a mansão e ter dinheiro para sobreviver, do que pagar e não ter mais nada.Ele diz em tom acolhedor.
- Isso vai se resolver. Só que não é rápido.
- Isso não é justo! Digo indignada.
- E onde eu e Jr vamos morar?
- Bem... era sobre isso que eu queria falar. O Sr Daniel comprou um imóvel e o colocou em seu nome e no nome de seu irmão. Ele escolheu esse imóvel com um propósito...
...****************...
- Então Senhorita? O que achou? Perguntou a responsavel pela empresa que administra o lugar.
- É grande, o condôminio é fechado, parece seguro.
- Ha Ha Ha! Ela começa a rir.
- Seguro? "Security" foi projetado para ser o lugar mais seguro no mundo para se viver.
- Temos vigilância 24 horas, na portaria identificação facial e biometrica. Guardas motorizados, escaner corporal e raio - x na entrada. Fora os drones e cães rôbos que circulam pelo condôminio. Esse lugar é nível máximo de segurança sem parecer uma prisão. Graças a tecnologia. Ela diz orgulhosa.
- Huummm!! Respondo sem empolgação.
- Srta quero ressaltar que não basta ter dinheiro ou interesse para morar aqui. Mas antes é realizada uma minuciosa avaliação do perfil família. Em outras palavras...as familias interessadas são selecionadas com rigor.
- Entendi.
- Tudo bem Srta Lana? Pergunta o Dr. Silveira que estava me acompanhando.
- Eu não tenho outra escolha. Não é? Respondo e ele sorri sem jeito.
Me olho no espelho tentando reconhecer quem sou agora.
...****************...
Abro o portão de vidro com o controle no chaveiro e o carro desliza devagar pela entrada da nova casa.
Jr, no banco do passageiro, cola a testa no vidro como uma criança num aquário. A boca dele se abre, mas nenhuma palavra sai. Ele só observa, a ausência de muros, a fachada clara, o paisagismo impecável, os vidros enormes refletindo o céu da manhã.
- Bem-vindo à nossa casa nova. Digo com o sorriso mais firme que consigo fabricar.
- Isso é... nosso? Ele pergunta, ainda com a voz baixa.
- É sim.
Paro na garagem. Cabem três carros ali, mas agora só temos um.
Ele olha as paredes laterais brancas, o chão de pedra lisa e antiderrapante. A casa é um sobrado elegante, moderno, mas sem ostentação. Um design limpo, tudo em linhas retas, com detalhes em madeira e vidro. Nada de colunas gregas ou lustres de cristal como na antiga casa.
Entro com ele pela porta principal. Piso de cimento queimado polido, sofá cinza grafite, cozinha integrada com ilha de mármore preto fosco e armários que parecem obra de arte. Cada detalhe da casa grita “novo”, “futuro”, “recomeço”.
- Tem cheiro de coisa nova. Jr comenta, andando pelo espaço como se estivesse visitando um cenário de série.
- É porque é. A casa tava fechada. Mas... era do papai. Ele acabou de construir.
Ele se vira devagar, franzindo a testa.
- Como assim era dele?
Respiro fundo. Aqui vem a parte difícil.
- Bem... nós perdemos a outra casa.
- Como assim “perdemos”? Ele pergunta, agora mais firme.
- Tinham uma dívida enorme... e com o processo todo...bem eu tentei, eu juro. Mas não dava pra manter aquilo. Era enorme, cara, cheia de funcionários.
Ele abaixa o olhar, e eu vejo o peso pousando nos ombros dele.
- Mas... completo, tentando suavizar
- Essa casa foi um presente. O papai comprou antes de tudo acontecer. Disse que era pra você crescer num lugar seguro, moderno, onde pudesse ter liberdade.
Jr olha em volta, os olhos ainda brilhando com um quê de revolta, mas também de curiosidade.
- E agora? A gente mora aqui?
- Agora a gente mora aqui. Repito, com a voz mais quente do que o coração sente de verdade.
Ele entra em um dos quartos e abre o guarda-roupa embutido. Espia o banheiro da suíte e sorri sem querer.
- Tá melhor que muito hotel.
- E veja pelo lado bom... Me aproximo com um sorriso maroto.
- Os móveis são todos modernos. Nada daquelas poltronas horrorosas de braço entalhado da mamãe.
Ele ri, meio envergonhado.
- Parecia que a gente morava num museu. Ele completa.
- Pois agora é quase uma nave espacial.
Descemos juntos e eu o puxo até a porta da frente. O sol da manhã tá tímido, mas já espalha luz suficiente pra iluminar o que mais me encantou nesse lugar: o condomínio em si.
- Vem ver isso. Digo, abrindo a porta.
Andamos até a calçada.
As ruas são largas, tranquilas. As casas seguem aquele mesmo estilo clean, com fachadas amplas, vidros, madeiras e jardins bem cuidados. Cada árvore ao redor parece ter sido escolhida a dedo. Jabuticabeiras, pitangueiras, até umas mangueiras baixas espalhadas.
- Aqui tem tudo, Jr. Tem pista de corrida, piscina, mercado, academia, quadra. É tipo uma cidadezinha. Segura.
Ele respira fundo e fecha os olhos por um segundo.
- E ninguém aqui vai querer nos matar, né?
Eu congelo por um momento, mas sorrio.
- Não, Jr. Aqui, a única coisa que pode te atacar... é uma manga madura caindo na cabeça.
Ele ri de verdade agora. É o primeiro riso desde... tudo.
Eu seguro a mão dele com força. E pela primeira vez, em dias, sinto que talvez, só talvez, a gente tenha onde recomeçar.
A delegacia tem aquele cheiro estranho de café requentado e papel amarelado que parece impregnado nas paredes. Entro com passos duros, ignorando os olhares curiosos dos policiais que andam de um lado pro outro. Não é a primeira vez que venho aqui, e pelo jeito também não vai ser a última.
Sou recebida por um policial e trnho que esperar por quase uma hora para ser atendida pelo delegado.
Quando estou quase indo embora o delegado Gerson, um homem grisalho, rosto cansado e um semblante que parece pedir desculpas só de existir, resolve me atender.
- Doutora Lana. Ele diz, forçando um sorriso cordial.
- Entre, por favor. Vamos até a minha sala.
- Desculpe ter feito a Dra esperar. Sabe como é...muito trabalho, eu estava em outiva de um suspeito. Ele diz enquanto eu o sigo até a sala.
Entramos, e eu me sento na cadeira diante da mesa, cruzando os braços.
- Alguma novidade? Disparo, sem rodeios.
Ele suspira. O tipo de suspiro que já me irrita só de ouvir.
- Infelizmente, ainda não.
- Como assim? Minha voz sai mais alta do que eu queria.
- Delegado já se passaram dias. E nada?
Gerson recosta na cadeira, com aquele olhar burocrático de quem já deu essa mesma explicação vinte vezes.
- Dra estamos com um efetivo reduzido e o seu caso não é o único que temos que investigar. Precisa de ter paciência.
- Com todo respeito delegado. Estamos falando de um triplo homicidio causado por um latrocinio. Se não fosse a sorte, seriam quatro mortos e não três.
Ele dá um leve sorriso.
- Srta não podemos afirmar que foi um latrocinio. Está mais parecendo um homicidio culposo.
- Isso não foi um simples homicio. Não mesmo! Digo irritada.
- Srta a única coisa concreta que temos é o seu depoimento. As imagens da sua casa foram apagadas. Provavelmente de dentro no próprio sistema. As câmeras da rua captaram veículos, mas as placas eram clonadas. Os rostos estão cobertos. Luvas, toucas, nenhum DNA. Nem uma digital fora do lugar. Ou seja, não temos nada.
Sinto minha garganta secar. A impotência que se espalha é absurda.
- E é só isso?
- Infelimente sim. Não temos nada concreto. Agora vamos recomeçar de outro ponto.
- Estamos investigando os processos em andamento do seu pai, o juiz Daniel Duarte. Alguns casos envolvem facções, contrabando, tráfico... Pode ser que a invasão tenha sido encenada, e seja algo diferente do que a Srta afirma.
- Uma distração para encobrir um acerto de contas.Por exemplo. Mas tudo demonstra que foi apenas um homicidio culposo.
- Sim foi só um homicidio! Causado pelo latrocinio. Mas acredito que não seja só isso. Rebato.
- Eles estavam atrás de joias, dinheiro. Eles... eles se assustaram! E aí mataram todos como se fosse nada!
- Mas pelo que disse o disparo foi acidental.
- Não está me dizendo que quer levar isso como um homicidio culposo (sem intenção de matar)? Sabe que a pena é de 1 a 3 anos. Enquanto um latrocinio (roubo seguido de morte) é de 10 a 30 anos. Homicidio seria uma pena injusta delegado.
- Sim, e é exatamente isso que nos queremos evitar. Gerson diz.
- Mas a Dra sabe muito bem que precisamos de provas.
- Se o plano fosse execução, não haveria a encenação do roubo. Pode ter sido uma queima de arquivo, mas feita pra parecer crime comum.
- Delegado só quero uma resposta e que a justiça seja feita. Então resolvam! Façam o trabalho de vocês!
Ele baixa os olhos.
- Doutora... eu entendo sua dor. De verdade. Mas não é tão simples. Não há pistas. Nenhuma. E quando não há caminho, só nos resta cavar devagar.
Me levanto com tanta força que a cadeira arrasta no chão com um rangido agudo.
- Lentidão e incompetência. Esse é o resumo. Vocês não fazem ideia de quem mataram. Nem do que destruíram.
Ele abre a boca pra responder, mas eu já estou virando as costas. Saio pisando forte, com o sangue fervendo e os olhos úmidos.
O sol já começa a baixar quando chego em casa. O Jr, como sempre, está afundado no sofá com o videogame ligado, fone torto e os olhos vermelhos de tanto encarar a tela.
- Jr, leva o lixo, por favor.
Nada. Nem um “hã?”. Nem um grunhido. Só o barulho das explosões digitais.
- Jr!
- Tá, já vou! Ele responde, automático, sem nem desviar o olhar da TV.
Reviro os olhos, respiro fundo e pego o saco de lixo eu mesma. A casa está silenciosa demais. Vazia demais. Fria, apesar do sol.
Saio pela porta lateral e caminho pela calçada até a lixeira do condomínio, próxima ao portão de entrada. Os pássaros fazem seu canto final do dia, e o cheiro das flores das árvores frutíferas parece mais forte com o fim da tarde. Quase me acalma. Quase.
Jogo o lixo no contêiner e respiro fundo, olhando o céu laranja por um instante. Não tenho nem forças pra chorar. Só raiva e cansaço.
No caminho de volta, meus passos diminuem quando me aproximo da minha casa. Passo pela casa 33, que me chama a atenção.
Olho para a janela da frente, ao lado da porta de entrada, a porta vermelha e lá está ele.
O vulto, uma sombra, no escuro. Uma presença.
Atrás da cortina branca, a silhueta inconfundível de um homem alto e largo, como um guarda-costas de filme. Ele está ali. Imóvel. Observando.
Paro no meio da calçada. Meus olhos se fixam no retângulo da janela, na leve ondulação da cortina contra o corpo dele. Por um instante, parece que o tempo congela.
E então, como num passe de mágica... ele recua.
Some para dentro da casa.
Cortina balança. Silêncio total.
Sinto um arrepio subir pela minha nuca. Aquele misto estranho de medo e curiosidade. O tipo de sensação que diz:
"Você está mais perto do que imagina. E não faz ideia do que está prestes a descobrir."
Volto pra casa, tranco a porta com mais firmeza do que o normal.
No fundo, sei que o caso dos meus pais não está resolvido.
E talvez...
A resposta esteja mais próxima do que a polícia é capaz de enxergar.
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